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4. A POLÍTICA DOS NÚMEROS: DADOS PRECÁRIOS, RELATÓRIOS CONTRA-

4.3 A proliferação dos dados

Em maio de 2016, pouco tempo após o início do mapeamento, a Rede Trans Brasil criou um site99 que foi atualizado diariamente com os dados sobre assassinatos e outras violações de

direitos. A ação foi divulgada em diversos meios de comunicação e a Rede Trans Brasil

99 No último acesso que fz ao site, esse se encontrava desatualizado e sem maior parte das informações relativas aos monitoramentos antigos ou a estrutura organizacional da Rede. Talvez isso tenha ocorrido em função da saída de Sayonara Nogueira da Rede Trans Brasil, no fnal de 2017, que era responsável pela realização do monitoramento e também pela manutenção periódica do site. Ao longo do meu campo percebi que sites desatualizados e instáveis é uma constância entre as organizações do movimento social de pessoas trans. Muitas vezes os sites são lançados, atualizados durante um período e aos poucos abandonados, até que surja outra iniciativa de retomada que reinicia o ciclo. Ao longo do período que acompanhei, as páginas de Facebook se mostraram atualizadas com maior frequência e fontes mais confáveis de dados. Para acessar a página da Rede Trans Brasil: <http://redetransbrasil.org.br/> Último acesso em: 05.06.2018

produziu, ao longo de 2016 e 2017, diversas imagens informando a quantidade atualizada de mortes até aquele momento e chamando para o site. Tais imagens foram compartilhadas na página ofcial do Facebook da Rede Trans Brasil100 e no perfl pessoal das ativistas dos grupos

fliados.

Figura 08 – Divulgação dos Assassinatos de Julho/2017

Fonte: Acervo Pessoal, 2017

Essa ação ganhou visibilidade nacional e internacional. Vários veículos midiáticos, pesquisas acadêmicas e até mesmo gestores têm se utilizado dos dados de assassinatos produzidos pela Rede Trans101. Segundo Tathiane Araújo, em sua fala no workshop de

Uberlândia, esse trabalho promoveu tamanho reconhecimento que fez com que a Rede fosse a única organização a ser reconduzida para a chefa de uma Câmara Técnica, a de Segurança, no Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT, sem a necessidade de fazer conchavos ou negociações. Sayonara Nogueira, em entrevista, faz uma avaliação similar. É essa forma de produção de conhecimento que, na opinião da entrevistada, faz a Rede Trans se diferenciar, ser notada e promove novas conquistas: “Ela nço tinha visibilidade, né? É depois da construaço do

100 https://www.Facebook.com/redtransbrasil/ Acesso em: 11.09.2017

101 Apenas a título de exemplo, o lançamento do mapeamento foi noticiado pelo portal R7 em agosto de 2016, internacionalmente os dados da Rede Trans fguraram em reportagem do New York Times de 2017 sobre o assassinato brutal da travesti Dandara dos Santos. Notícia R7: <http://r7.com/rZRS> Acesso em 02.03.2018 Notícia NYT: <https://www.nytimes.com/2017/03/08/world/americas/brazil-transgender-killing-video.htmla mwrsm=Facebook&_r=0> Acesso em: 02.03.2018

site e do dossiê que ela faz parceria com a ONU, tem a parceria com o Transgender Europe, eu viajei para a LGA. Entço, ela sai num cenário até internacional” (NOGUEIRA, SAYONARA, 2018).

Uma vez que uma forma de ação é bem-sucedida, ela fca disponível para ser adotada por outras organizações de movimentos sociais para os mesmos propósitos ou ainda outros (TAYLOR; VAN DYKE, 2004; TILLY, 2006). A realização de mapeamentos de mortes não é algo absolutamente novo, diversos movimentos sociais o fazem, dentre eles: o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que o faz para a população indígena (CIMI, 2017) e a Comissão Pastoral da Terra, que o faz para trabalhadores e trabalhadoras rurais (CANUTO; LUZ; ANDRADE, 2016). A própria contagem de mortes de pessoas trans não é uma novidade no Brasil, essas já eram contadas no mapeamento mais amplo realizado pelo Grupo Gay da Bahia. Todavia, foi a partir do sucesso da iniciativa da Rede Trans Brasil que essa estratégia ressoou mais fortemente dentro do campo do movimento trans e fez com que outras organizações começassem a produzir dados similares.

Figura 09 – Divulgação Periódica dos Dados da ANTRA

Em 2017, a ANTRA, organização da qual a Rede Trans Brasil surgiu como uma divergência, iniciou seu próprio mapeamento de assassinatos de pessoas trans. A iniciativa é coordenada por Bruna Benevides, de Niterói (RJ). Em entrevista, Bruna (BENEVIDES, 2018) afrmou que começou seu próprio mapeamento por infuência do trabalho da Rede Trans, pois considerava essa iniciativa da Rede como muito genérica. Além de assassinatos, a Rede Trans Brasil mapeava suicídios e outras violações de direitos humanos e Bruna avaliava que isso fragilizava o trabalho, por ser metodologicamente mais difícil de ser realizado. O desejo da ANTRA era de construir um mapeamento mais específco, focado exclusivamente nos assassinatos. A metodologia utilizada foi quase idêntica: coleta de notícias de jornais e outros portais da internet a partir de busca de palavras-chave e checagem de denúncias recebidas por Whatsapp e outras redes sociais. Os assassinatos eram compilados em um mapa do Google Maps102 que era divulgado nas redes sociais, uma vez que até aquele momento essa

organização não possuía um site próprio. Desde então, as ativistas da ANTRA fazem questão de, a cada novo assassinato, postar o número atualizado de mortes no ano, sempre seguido da frase Dados da ANTRA, para demarcar a disputa pela contagem das mortes das pessoas trans.

Assim como a Rede Trans Brasil, a ANTRA organizou um relatório de seu mapeamento de assassinatos que foi lançado no Dia da Visibilidade Trans em 2018 (ANTRA, 2018). Ambos são bastante similares e utilizam de estratégias variadas para convocar a autoridade científca para si: apresentam os dados de forma técnica; explicitam a metodologia de coleta de dados; e trazem pequenos textos que analisam os dados e outras questões relevantes para a população de pessoas trans. Enquanto o relatório da Rede Trans Brasil privilegiou pessoas trans da própria rede como autoras desses textos complementares, o relatório da ANTRA convidou pessoas cis para contribuir, dentre eles Paulo Iotti, advogado e doutor em Direito Constitucional e Mario Leony, delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Essa diferença aponta para estratégias distintas de legitimação. A Rede aposta na busca por uma legitimidade interna, tanto no sentido de valorizar ativistas do próprio grupo, quanto no de reconhecer o valor epistêmico da voz de pessoas trans falando sobre si e suas questões. A ANTRA aposta numa busca por legitimidade externa, ao convidar acadêmicos e profssionais cis de diferentes áreas, que conferem a sua credibilidade ao grupo, seu relatório e suas demandas políticas.

É curioso que os relatórios recentes do Grupo Gay da Bahia (2013, 2017, 2018), inspiração para os relatórios da ANTRA e Rede Trans, são muito mais simples. Não trazem muitos textos explicativos, artigos de pessoas parceiras, referências bibliográfcas, nem outras estratégias de legitimação. Os relatórios contêm os dados, gráfcos e tabelas que apresentam os números e, ao fnal, uma lista traz os nomes das pessoas mortas. Se parecem mais com um briefng, voltado para a mídia, do que com um documento voltado para o Estado ou um texto acadêmico. Não tenho condições de explicar as razões que levam o GGB a escolher tal formato, mas acredito que o público-alvo dos textos seja distinto e que, talvez, por se tratar de uma iniciativa mais antiga, realizada desde a década de 1980, e de ser coordenada por Luiz Mott, que é doutor em Antropologia e professor universitário aposentado, essa já possua um grau maior de legitimidade do que as iniciativas recentes, coordenadas por pessoas trans sem inserção na academia.

Ao mesmo tempo que os relatórios das organizações do movimento social de pessoas trans buscam pela autoridade científca, tais documentos não ocultam suas fnalidades políticas. A linguagem dos Direitos Humanos e da cidadania está presente em todos os relatórios e dão sentido aos números apresentados ali. Assim, as mortes das pessoas trans são confguradas em ambos relatórios como uma violação do dever do Estado brasileiro de proteger essa população. A estrutura argumentativa da introdução do relatório para 2016 da Rede Trans Brasil é simbólica nesse sentido: abre afrmando que a Constituição de 1988 traz uma concepção ampliada de cidadania e, logo em seguida, afrma que essa não é concretizada para a população trans, o resto da introdução elabora o argumento da não concretização da cidadania em vários âmbitos, com ênfase para as mortes (NOGUEIRA, SAYONARA; AQUINO; CABRAL, 2017, p. 4–5). O relatório da ANTRA vai além, é mais propositivo e mais claramente endereçado ao Estado, principalmente ao governo federal. Após a apresentação dos dados estatísticos e antes dos artigos dos convidados, há uma seção de Propostas de Ação:

A partir dos levantamentos destes dados e das discussões sugeridas ao longo deste relatório, pretendemos destacar metas e ações importantes a serem construídas, apoiadas e desenvolvidas em parcerias com o poder público, a fm de combater a violência contra a população de Travestis e Transexuais no Brasil, e que serão amplamente divulgadas e discutidas nos espaços propícios, seja na esfera pública ou da sociedade civil, em que houver representações da ANTRA (ANTRA, 2018, p. 29).

Esse trecho deixa bem claro a função contra-pública dos referidos relatórios. O conhecimento sobre a morte das pessoas trans serve para construir uma narrativa dessas pessoas como vivendo numa cidadania precária e do Estado brasileiro como não cumpridor das promessas constitucionais da cidadania universal. Em seguida dessa introdução são apresentadas 10 propostas de ação voltadas para a segurança pública que, na opinião da ANTRA, serviriam para o “resgate da cidadania da populaaço de Travestis e Transexuais” (ANTRA, 2018, p. 1).

Ao longo de 2017 e 2018, a produção de relatórios estatísticos sobre mortes tem se ampliado ainda mais, tornando cada vez mais parte do conjunto de ações adotado pelos movimentos sociais de pessoas trans e LGBT em seu cotidiano. O FONATRANS começou, a partir de 2018, a realizar um mapeamento da transfobia com recorte racial. A coordenadora nacional, Jovanna Cardoso, em 31 de março de 2018, anunciou em diversos grupos da militância, de Whatsapp e Facebook, o início desse mapeamento e a busca por pessoas para auxiliar na elaboração técnico-jurídica dos relatórios (CARDOSO, 2018). Surgiram iniciativas similares até mesmo fora do movimento trans, como é o caso do projeto Lesbocídio – as histórias que ninguém conta, coordenado por professoras da UFRJ, e que publicou em 2018 um primeiro relatório compilando e analisando os casos de assassinatos de lésbicas entre 2014 e 2017 (PERES, MILENA CRISTINA CARNEIRO; SOARES; DIAS, 2018). O projeto continua mapeando esses assassinatos em 2018 e divulgando-os em suas redes sociais103.

Apesar da Rede Trans ser a organização que disparou esse processo de proliferação dos números, a continuidade desse projeto naquela organização é incerta. No fnal de 2017, por divergências internas, Sayonara Nogueira se desfliou da Rede Trans. Segundo me relata, Sayonara se sentia limitada e por estar na Rede não conseguia dialogar e trabalhar em conjunto com outras organizações do movimento social de pessoas trans. Dessa maneira, se desfliou e fundou, junto a travesti curitibana Andrea Cantelli, o nstituto Brasileiro Trans de Educaaço104 (IBTE). Como explica Sayonara, agora tem mais possibilidades de parcerias “porque o BTE nço é uma rede, né? Ele é um nstituto de Pesquisa. Ele é algo mais

103 Para mais informações, ver o site ofcial do projeto. Disponível em: <http://lesbocidio.wordpress.com> Acesso em: 01.04.2018

independente. Entço, tanto eu posso trabalhar com a ANTRA, como eu posso trabalhar com a Rede” (NOGUEIRA, SAYONARA, 2018). A fundação desse instituto Com isso, o relatório referente às mortes de 2017 (NOGUEIRA, SAYONARA; CABRAL, 2018) foi publicado em janeiro de 2018 pelo Observatório Trans, que integra o IBTE como um projeto de monitoramento de assassinatos e outras violações de direitos das pessoas trans. A Rede Trans Brasil não lançou um relatório próprio para o ano de 2017, mas continua anunciando em seu site o monitoramento e é possível encontrar em sua página de Facebook alguns posts que dão indícios de que esse mapeamento continua a ser feito em 2018.

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