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1 POÉTICAS DO COTIDIANO: O ORDINÁRIO E O DETALHE NAS NARRATIVAS DO CONTEMPORÂNEO

1.4 A proliferação desordenada dos resíduos

Por que caminhos se tem traçado este gesto de desvio que termina por evitar a grandiloqüência em nome de uma crônica mais delicada, dos pequenos detalhes – minimalista, talvez – no cinema contemporâneo? É a partir desta interrogação que podemos introduzir um universo de questões que desde sempre se apresenta e persiste no horizonte das preocupações que norteiam este estudo: se a proliferação de estilos, narrativas, temas e interesses na cultura midiática reflete a própria heterodoxia do cotidiano, em sua multiplicidade de experiências que não se deixam apreender facilmente – e que só se aceitam nomear como exceção, existência fora dos modelos e sistematizações –, como circunscrever a particularidade deste olhar voltado ao efêmero, ao ordinário? Se o conceito de vida cotidiana se mostra incerto e por vezes tão difícil de definir (FEATHERSTONE, 1997, p.82-83; FELSKI, 1999-2000, p.15), como recorrer a ele para uma genealogia das micronarrativas do audiovisual e suas poéticas do mínimo, do detalhe? E sendo o dia-a-dia o substrato das vivências humanas e abrigando, assim, a banalidade e o excepcional, a repetição dos gestos mecânicos e a diferença que reside nas mais sutis escolhas, serviria ele como critério e base suficiente a partir da qual estabelecer distinções? Por fim, levantamos a dúvida: sendo a quase onipresença da cultura de massa, em grande medida, elemento para uma intensa transformação da vida comum em espetáculo e a noção de heroicidade cada vez mais uma qualidade buscada na desordem de um meio social hostil – em que (sobre)viver já constituiria uma prova de força8 – como operar, entre os filmes, essa separação entre feitos heróicos e ações comuns?

Um modo possível de transitar em meio a esse campo de incertezas seria, em primeira instância, definir o que de fato procuramos. São os recortes instituídos sobre a infinidade de discursos e narrativas que permeiam o contemporâneo que nos permitem identificar aquilo que, sutilmente, pode caracterizar um tipo de sensibilidade, que pede atenção pelos modos como aponta para novas formas de olhar; uma promessa que, se não explica, ao menos acena para outras possibilidades de apreensão da experiência. Afinal, se as particularidades que compõem o repertório de imagens constituído por um determinado conjunto de produções audiovisuais não são facilmente nomeáveis, tampouco se tornam, por isso, menos perceptíveis. (E não se trataria, justamente, de questionar essa supremacia da capacidade de nomear como critério máximo para o

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Note-se, a este respeito, a forma como a narrativa dos “não-heróis” cubanos no filme Suite Habana (2003), de Fernando Pérez, termina por propiciar uma leitura dos afazeres cotidianos dos personagens apresentados como símbolo de resistência e força do povo cubano frente às adversidades de uma rotina por vezes exaustiva.

reconhecimento da experiência, mesmo entendimento que condena o resíduo por não ser este nomeável pela narrativa histórica?).

Passemos, então, a este pequeno inventário de pressupostos.

O cotidiano como significante serve, dentre outras coisas, para nomear páginas policiais, bem como cadernos e editoriais que tratam das muitas mazelas urbanas – relatos de periferia que se multiplicam nas grandes metrópoles. Pode-se argumentar, no entanto, que essa exposição do “presente sem particularidades” do cotidiano como notícia se dá pela sua transcrição como evento informado, denunciado, sensacional (BLANCHOT, 1987, p.18); só pode ocorrer pela conversão da fala cotidiana e seu rumor (Idem, p.17) em relato estabilizado e ostensivo.

Daí porque concordamos com Denilson Lopes (2007, p.102) quando este inscreve em sua abordagem das poéticas do cotidiano, no que se refere particularmente ao cinema brasileiro, as “imagens-sínteses” mais evidentes da favela e do sertão como contrapontos, muito distintos sem dúvida de uma poética da intimidade e da afetividade. Tal recorte visa, assim, diferenciá-las não como geografias ou universos de preocupações temáticas – o que poderia soar como um elitismo injustificável – mas como recursos estratégicos que elegem o discurso social engajado como foco privilegiado de interesses e que, encontrando forte eco na tradição militante do cinema latino- americano, por exemplo, estariam mais próximos de um modo utópico, fortemente alegórico. Assim, é evidente que tais paisagens poderiam também comportar este “tom menor”, fragmentário e subjetivo9 que prestigia a dúvida e a incerteza, muito mais que as afirmações e denúncias. O que destoa de nossa proposta aqui é o modo como o recurso a “imagens-sínteses” tem sido fonte infindável para a busca do choque, da violência e da catarse, tão caros a uma “estética do efeito” (Idem, p.90). Daí porque não seria, certamente, este cotidiano o que nos interessa aqui.

Por outro lado, parece-nos necessário chamar a atenção para um ponto não-circunscrito por algumas outras abordagens, como a de Denilson Lopes, e que particularmente nos interessa: as formas pelas quais elementos estruturantes da vivência social em seu sentido mais amplo são percebidos e significados a partir deste tom menor, como o mundo do trabalho e as dinâmicas relacionais e afetivas, com seus códigos e conflitos, que se dão a partir dos inúmeros fluxos e movimentos de ocupação e interação no espaço urbano. Arriscamos assim um salto mais amplo no intuito de discutir não apenas a intimidade, o espaço da casa (Lopes, 2007), mas estes outros aspectos tão assediados pelas macronarrativas. Tal interesse seria marcado não pela insistência em uma vontade de inferir o global pela observação minuciosa das representações destes campos no

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A construção deste olhar mais intimista e subjetivo a partir de uma narrativa situada no sertão nordestino pode ser percebida, por exemplo, em filmes como Cinema, aspirinas e urubus (2005), de Marcelo Gomes, e também em O céu

audiovisual, mas justamente para investigar como, para além de um entendimento social mais amplo, estas instâncias podem nos falar sobre a constituição de subjetividades, sobre modos muito particulares e sensíveis de apreender a relação de alguns sujeitos com as demandas do social e como as potencialidades e limitações impostas por estas duas esferas – o produtivo e o urbano – se conectam ao universo delicado de aspirações e anseios pessoais.

Um terceiro recorte norteia e direciona nosso olhar a um aspecto mais específico, qual seja, as narrativas do cotidiano em cinematografias constituídas em localidades periféricas – neste caso, em particular, o cinema latino-americano. Dentre as muitas formas pelas quais o cotidiano se faz presente nas narrativas audiovisuais hoje, é possível identificar um conjunto de elementos capazes de sugerir um universo de temas e preocupações comuns às cinematografias desta região. As formas pelas quais o desgaste da vida diária é indicado a partir da repetição quase automática de atividades rotineiras, da falta de objetivos e mesmo de sentido impressa na banalidade destas ações e seus desdobramentos apontam para um estado de desencanto e apatia, um quase- esvaziamento de potencial político e transformador que parece referir-se menos a questões políticas específicas que à própria capacidade do indivíduo de construir uma narrativa coerente e unificada para si.

Ao ideal de uma vida ordenada10, voltada para objetivos finais e marcada pela naturalidade, consistência e inteireza, contrapõe-se uma vida fragmentada e instável, amparada no artifício e no impulso a uma pura presença, a uma imersão mais que a uma “elevação do eu” (FEATHERSTONE, 1995, p.97). E embora este modo de vida possa estar inserido em uma dinâmica abrangente concebida em termos de uma “ética da sociabilidade” (Idem, p.97), inclinamo-nos à idéia de que a intensificação de tal processo, com o agravamento de diversas questões dele decorrentes, pode ser lida também como resultado da particularidade com que tais efeitos são vivenciados na região.

A dissolução de referências, a deriva no fluxo de experiências circunstanciais pode remeter não apenas à “ludicidade” e ao prazer do efêmero, mas a uma desarticulação do sujeito, bem como aos efeitos de deslocamento e inadequação por ele sentidos até nas mais tênues experiências cotidianas. Indícios destes “efeitos negativos” podem ser percebidos na persistência com que a solidão e a incomunicabilidade se fazem presentes nas entrelinhas, marcando as interações entre os personagens. É deste modo que a leveza nesta prevalência do efêmero pode dar lugar, por fim, ao peso da incapacidade de estabelecer vínculos e à escassez de possibilidades em circunstâncias governadas pela falta.

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Tomados em conjunto, as obras analisadas ao longo do percurso aqui realizado apresentam indícios de um forte comentário – sem dúvida diferente, mas ainda assim tão ou mais ácido do que aquele levado a cabo por uma crítica militante - sobre a falta de perspectivas sociais e as dificuldades de inserção e pertencimento por parte de sujeitos que, situados em contextos periféricos em que as promessas históricas não se cumpriram, vivenciam dilemas que não podem mais ser resolvidos – nem ao menos retoricamente – pela inversão de sinal nas narrativas históricas. Flagram-se, ainda, no desencanto e na melancolia, possíveis sintomas de um fin-de- siècle amplificados (e prolongados) pela desolação das margens - essa metáfora espacial dolorosamente recorrente, apesar das muitas declarações acerca de sua emergência frente a uma suposta desestabilização dos centros (RICHARD, 1991, p.06).

Em imagens e sons, os resíduos se proliferam desordenadamente em esboços de ações, gestos tímidos, quase imperceptíveis e por vezes desajeitados. O quanto de importância se pode conceder a esses relatos – seria um gesto de sutileza ou condescendência? – talvez seja uma questão de situar-se frente a essa desordem cotidiana, cuja apreensão não está claramente definida em termos de um positivo e um negativo: os valores atribuídos são cambiáveis.

2 AS CERTEZAS ABALADAS: CINEMA, EXPERIÊNCIA E TRABALHO