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1. O Sistema Penitenciário e a execução penal no contexto da nova penalogia

2.2. PRONASCI – Programa Nacional de Segurança com Cidadania: concepções

Embora se insista em propagar que a violência no Brasil é apenas um problema de criminalidade, os dados sobre violência policial, violência doméstica ou aquela cometida contra as mulheres, negros e homossexuais comprovam todos os dias que as diferentes manifestações da violência em nosso país exigem medidas para combatê-las que não sejam apenas centradas na repressão policial ou no encarceramento massivo de pessoas e, muito menos, que estejam circunscritas às periferias e favelas. A simples identificação de “culpados”, emprestando territorialidades diferenciadas às vítimas e aos agressores, revela-se como forma escapatória de confirmar a violência. É preciso admitir que estamos diante de um problema estrutural e que isso não se resolve com medidas que visam a qualquer custo garantir a segurança de um “nós não violentos” contra um “eles violentos”, instaurando assim uma “guerra” do “bem contra o mal” que parece interessar apenas aos meios de comunicação.

Afirma-se que a nação brasileira é não violenta e que, se houver violência, esta é praticada por gente que não faz parte da nação [...]. O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um nós-brasileiros- não-violentos e um eles-não-brasileiros-violentos. “Eles” não fazem parte de “nós” (CHAUÍ, 1998, p. 36).

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Assim como na reflexão proposta por Garland no capítulo anterior sobre a “criminologia do eu” e a “criminologia do outro”, vemos como muitas vezes se justificam as ações repressivas no combate à violência que, no caso das políticas de execução penal, objetivam apenas a punição em detrimento de todos os direitos e dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, a criação do Programa Nacional de Segurança com Cidadania, lançado em agosto de 2007 pelo governo federal, inaugurou um paradigma nas políticas de segurança pública no Brasil, propondo a articulação de políticas de segurança com ações sociais que priorizam a prevenção e procuram agir onde estão as possíveis causas que levam à violência. Tudo isso sem abrir mão das estratégias de ordenamento social e segurança pública, agindo de forma repressiva onde tal ação se faça necessária.

O Programa, cuja proposta de execução considera a parceria com os estados e municípios, é visto como bastante inovador ao incluir nas suas diretrizes:

 a promoção dos Direitos Humanos, intensificando uma cultura de paz, de apoio ao desarmamento e de combate sistemático aos preconceitos de gênero, étnico, racial, geracional, de orientação sexual e de diversidade cultural;

 a valorização dos profissionais de segurança pública e dos agentes penitenciários;

 a participação de jovens e adolescentes, de egressos do sistema prisional, de famílias expostas à violência urbana e de mulheres em situação de violência;  a promoção de estudos, pesquisas e indicadores sobre a violência que

considerem as dimensões de gênero, étnicas, raciais, geracionais e de orientação sexual;

 e a garantia da participação da sociedade civil.

Com o objetivo de reduzir a violência letal, considerando as características desse tipo de violência que continua tendo os jovens como seus principais atores e vítimas15, foram estabelecidos quatro focos prioritários dos Projetos e ações que compõe o Programa:

 Foco etário: 15 a 24 anos;

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O mapa da violência de 2011, embora identifique uma queda no número de homicídios ocorridos no Brasil, mostra que os índices permanecem elevados, tendo ainda entre as principais vítimas e atores dessa violência a juventude. Segundo o mapa, é nessa faixa etária que “duas em cada três mortes se originam numa violência, seja ela homicídio, suicídio ou acidente de transporte” (WAISELFISZ, 2009, p. 63).

 Foco social: jovens e adolescentes egressos do sistema prisional ou em situação de rua, famílias expostas à violência urbana, vítimas da criminalidade e mulheres em situação de violência;

 Foco territorial: regiões metropolitanas e aglomerados urbanos que apresentem altos índices de homicídios e de crimes violentos;

 Foco repressivo: combate ao crime organizado.

Inicialmente foram criados quatro projetos principais para execução das ações do Programa, ficando claro, desde o início, que outros projetos seriam criados posteriormente. De fato, há notícias de que o PRONASCI chegou a ter mais de noventa ações diferentes alocadas em diversos projetos, mesmo que muitos deles não tenham saído do papel (INESC, 2010).

Os quatro projetos originais são: 1) Reservista Cidadão; 2) Proteção de Jovens em Territórios Vulneráveis; 3) Projeto Mulheres da Paz; e 4) Bolsa Formação.

Segundo os estudiosos do tema da segurança pública, a principal virtude do PRONASCI é de ser o primeiro Programa de abrangência nacional que pretende atuar “onde não havia nada ou quase nada”. Sua segunda virtude está no propósito de articular ações de prevenção e promover a qualificação das ações policiais (repressão e investigação). A terceira virtude “é a disposição, pela primeira vez, de orientar os recursos e as ações do Programa segundo indicadores objetivos de vitimização por violência” (INESC, 2010, p. 27).

O Programa previu inicialmente a participação de outros ministérios e secretarias do governo, que deveriam não só entrar com recursos, mas também com ações voltadas para públicos e temáticas específicas, como é o caso, por exemplo, das ações para enfrentamento da violência contra as mulheres e a implantação da Lei Maria da Penha. A inclusão em um Programa de Segurança Pública de ações visando ao enfrentamento da violência contra as mulheres também foi considerada como um avanço e um aspecto inovador do Programa.

Quanto à questão étnico-racial, embora o Programa tenha em suas diretrizes o objetivo de combater sistematicamente o preconceito e o racismo, essa ação não chegou a ser

concretizada pelo PRONASCI até o momento, o que é considerado uma grande falha já que “a violência racial é uma característica da violência letal no Brasil” (INESC, 2010, p. 28).

Segundo o mapa da violência de 2011, para cada branco assassinado em 2008 morreram proporcionalmente mais dois negros nas mesmas circunstâncias (WAISELFISZ, 2011, p. 63).

O racismo institucional, presente nas instituições policiais, também não mereceu a devida importância nas ações de formação dos agentes de segurança pública, embora estudos mostrem que essa seja uma questão que exige medidas urgentes (RAMOS; MUSUMECI, 2005).

Em 2008 e 2009, seis projetos vinculados ao PRONASCI foram analisados pelo INESC com base nos seus recursos orçamentários. O estudo mostra que, apesar das boas intenções e dos princípios que fundamentam a criação desse Programa, muitas propostas sequer saíram do papel e outras tiveram níveis de execução considerados baixos. Entre os projetos que tiveram resultado zero na aplicação de recursos estão o Projeto Farol, que objetiva promover a cidadania entre jovens negros em situação de vulnerabilidade social, em conflito com a lei ou egressos do sistema prisional, que deveria ser desenvolvido em parceria com a SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial); o Projeto Reservista Cidadão, que deveria ter sido desenvolvido em parceria com o Ministério da Defesa, com objetivo de proteger os jovens que deixaram o serviço militar, já que, em territórios conflagrados, geralmente eles são aliciados pelo crime em função da facilidade com que aprenderam a manejar armas, além de seu preparo físico e técnico; e projetos que previam a construção de unidades penais destinadas ao público feminino e à separação de pessoas por idade e crime cometido, visando ao atendimento da população carcerária jovem.

Entre os projetos analisados pelo INESC, o único que teve um bom desempenho, considerando sua evolução orçamentária, foi o Projeto Bolsa Formação, destinado à complementação de renda dos agentes de segurança. Esse projeto, em 2008, teve 90% dos recursos destinados aplicados e, em 2009, embora tenha apresentado uma pequena queda, foi também o projeto com maior nível de desempenho orçamentário.

O Bolsa Formação prevê a concessão de bolsas a policiais civis e militares, agentes penitenciários, bombeiros e peritos criminais e pretende contribuir para a valorização desses profissionais através da formação que interfira na mudança de postura desses agentes da segurança com relação aos Direitos Humanos. Para que o profissional receba a bolsa, são impostas algumas condições: “ele deve frequentar, a cada doze meses, um curso oferecido ou reconhecido pelos órgãos do Ministério da Justiça, deve ter uma ficha limpa, sem infração administrativa grave, ou não ter condenação penal nos últimos cinco anos, além de não possuir remuneração mensal superior ao limite estabelecido em regulamento”16 (INESC, 2010, p. 64).

Apesar de ser um projeto reconhecidamente importante dentro das ações do PRONASCI, por estar pautada em princípios que levam em consideração a necessidade de combater junto aos agentes de segurança os preconceitos de raça, gênero, geracional, de orientação sexual e diversidade cultural, o fato de ser esse o projeto com melhor desempenho orçamentário nos leva a questionar sobre, em que medida não se está investindo em apenas um aspecto das políticas de segurança com reflexo direto na remuneração desses agentes, mas sem maiores consequências e benefícios para a sociedade. O estudo do INESC sugere ainda que “uma análise dos conteúdos dos cursos que estão sendo oferecidos a estes profissionais pode nos revelar até que ponto o apoio financeiro oferecido está realmente considerando a questão que estrutura muitas das ações de segurança” (INESC, 2010, p. 65).

Quanto aos Projetos Farol e Reservista Cidadão, cujos desafios são os de amparar os jovens, promover sua inserção na rede de ensino e no mercado de trabalho, bem como a formalização de meios para eles desenvolverem atividades sociais, educativas e culturais atuando como multiplicadores em suas comunidades, de acordo com o estudo realizado pelo INESC, os responsáveis pelo PRONASCI informaram que houve problemas nas negociações com a SEPPIR e com o Ministério da Defesa que inviabilizaram sua execução.

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Esse limite varia de acordo com a realidade de cada ente federativo, onde também são diversas as condições de remuneração desses agentes.

Sabemos também que, no início de 2009, o PRONASCI teve um corte de 43% em seu orçamento geral (na ordem de R$ 1,2 bilhão) como parte de ajuste do governo federal frente à crise econômica global. Esse corte, que pode ter representado concretamente um enfraquecimento das propostas do Programa, revela também que as políticas de segurança, por mais bem intencionadas que sejam, estão longe de ser uma prioridade em nosso país.

Na análise realizada do Programa pelo INESC, um dos fatores que pode ter contribuído para dificultar a execução do Programa foi “a dificuldade de gerar ações articuladas nos estados e municípios, exatamente porque esses níveis federativos não desenvolveram ainda visões integradas e sistêmicas sobre a segurança” (INESC, 2010, p. 28).

Quanto às críticas que o estudo faz ao Programa está a denúncia de que o PRONASCI focalizou suas ações nas periferias e favelas, com base em uma suposição de que somente os jovens das favelas seriam “de risco”. O que, segundo o estudo, pode produzir facilmente o aprofundamento de estereótipos em vez de sua redução. Os conceitos que fundamentam certas propostas, como os de “territórios da paz”, podem acentuar a criminalização da pobreza se diversos cuidados não forem tomados na sua elaboração.

Finalmente o estudo aponta para outro aspecto falho do Programa, que é o de não possuir nenhuma ação explicita de redução de violência das forças policiais (incluindo a execução sumária e a tortura). O Programa não possui ações claramente orientadas a alterar o caráter ainda repressivo, não cidadão, militarizado e fragmentado das forças policiais.

O PRONASCI é um Programa cuja criação foi amplamente divulgada pelo governo federal e festejada por aqueles que creem numa nova política de segurança para o país. Como não existem notícias oficiais sobre o fim do Programa, espera-se ainda que ele possa se reaproximar das concepções que o fundamentaram na sua criação e possa finalmente contribuir para enfrentarmos o grave problema da violência em nosso país levando em consideração diferentes fatores que não somente as ações de repressão.