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O pronome você em Tefé apresenta, entre outras, uma função não tão fácil de captar ou mensurar devido ao seu caráter efêmero: o pronome de contato. Esse aspecto do você pode passar despercebido, pois, como os dados mostraram, esse pronome é muito mais usado entre os não íntimos. Aliás, foi o único fator dos grupos de fatores sociais em que o percentual de

você superou o percentual de tu, e se encaixa na semântica de formalidade.

O que defendemos como função de contato para o pronome você é o seu uso que varia com o senhor nos primeiros contatos entre estranhos, em especial, entre faixas etárias mais ou menos próximas. Como já ressaltamos, esta função não está presente na fala das crianças, porque ainda não desenvolveram algumas habilidades sociais.

Nossa hipótese quanto a como se configura o uso de você como pronome de contato é a seguinte: esta função tem um “prazo curto de validade”, estabelece formalidade e é usada nas referências específicas, mas, como que de forma subliminar, passa a mensagem de que muito em breve este tratamento pode ser substituído por tu ou senhor. Isso não elimina o uso de você como referência específica entre os não estranhos, mas, entre os estranhos, pessoas que acabaram de se conhecer, pedido de informação nas ruas, o você é o pronome preferido. Em nosso corpus podemos captar essa função numa conversa entre um homem e uma mulher que não se conheciam. Ambos são falantes de nível superior, ele com 33 anos e ela com 20

anos, primeira vez que conversam. Durante a primeira parte da conversa ele sempre a trata por

você nas referências específicas. O exemplo [56] reproduz um trecho dessa conversa:

[56]

(M2SU-15): Não. Não pra VOCÊ. Pode fazer mal pros outros.

(F2SU-17): Poxa vida! Mas eu num sei dizer, “e aí como é que TU tá? Tudo bem, tchau.” Eu num sei ser assim. Eu abraço, eu beijo, eu pergunto pela mãe, pelo pai, pelo avô, pelo tio, por todo mundo que eu conhecer.

(M2SU-15): Assim VOCÊ deveria ser era política, então.

Como ela não se refere a ele em momento algum da conversa de forma específica, não se pode concluir que tipo de comportamento ela teria se tivesse usado um pronome específico ao se dirigir a ele. O que marca o fim do você nessa conversa como pronome de contato é o seguinte trecho reproduzido no exemplo [57] em que a informante (F2SU-17) admite haver um início de amizade:

[57]

(F2SU-17): Eu frequentava bastante a escola, mas nunca dirigi a palavra, num sei por que. Mas é assim, sempre assim. Começa as amizades é assim, parando pra conversar.

(M2SU-15): Sempre tem algo... algo a acontecer, né?

(F2SU-17): Sempre é assim. Se eu passar, só pelo fato de eu passar e dizer “oi” pra mim não é o suficiente ainda, não é o suficiente.

Nossa conclusão é a de que a partir desse momento não faria mais sentido para ele continuar tratando-a por você. E é o que a gravação revela, pois desse momento em diante o informante (M2SU-15) passa a tratá-la com o pronome tu.

[58]

(M2SU-15): TU nunca viu um homem falando mal dum outro homem ... (F2SU-17): Não.

(M2SU-15): Assim da rôpa, do calçado que ele veste, né, TU inda num... agora mulher TU ouve.

(F2SU-17): Eu faço isso.

No momento que houve a confissão de uma amizade, parece haver uma mudança naquilo que Goffman (2002) chama de footing (cf. capítulo sobre o referencial teórico), definido por ele nos seguintes termos:

Uma mudança de footing implica uma mudança no alinhamento que assumimos para nós mesmos e para os outros presentes, expressa na maneira como conduzimos a produção ou a recepção de uma elocução. Uma mudança em nosso footing é um outro modo de falar em nosso enquadre dos eventos.

Lopes et al (2009), em um trabalho em que analisam a coexistência de você e tu no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro, mostram um exemplo de fala de adultos para ilustrar a coexistência de formas diferentes de tratamento em uma mesma cena enunciativa e tecem o seguinte comentário (p.23):

Os exemplos (...) mostram que na faixa etária dos adultos, independentemente do gênero, os homens e mulheres entrevistados iniciam sempre, quando abordados, o diálogo com você e somente no meio da interlocução passam a tu, podendo retornar a você.

Essa observação parece sugerir de alguma forma um caráter de contato para o pronome você também no Rio de Janeiro. Para os autores, esse uso de você deve-se aos traços [-marcado, -proximidade] da forma você, contrastando com o tu forma [+marcada, +proximidade]. No entanto, essa interpretação não necessariamente nega a função de contato e o mesmos autores, ainda comentando esse uso, fazem a seguinte observação:

Na continuação do diálogo, a conversa se torna mais cooperativa e, por consequência, desfaz-se o distanciamento inicial. O informante passa de você para tu que se caracteriza como um ato mais diretivo e, no caso em questão, o ato é instrucional. Há o abandono da forma você e adoção do tu, já que com a cooperação, a atenuação do ato de fala impositivo será processada de outra maneira, daí o emprego de tratamento [tu], para mostrar pertencimento ao mesmo grupo do emissor (inquiridor) (p. 24)

A função de você como contato e, portanto, efêmera é ainda uma hipótese, mas reputamo-la como digna de investigação. A tarefa de codificar o você como pronome de contato, e incluí-lo como um grupo de fatores nas rodadas com o programa Varbrul, não foi possível porque o seu emprego como tal não apresenta um escala temporal bem definida, i. e., com determinados interlocutores ele pode resistir por apenas alguns minutos, e com outros

pode resistir por alguns contatos. As considerações aqui feitas precisam ser devidamente testadas realizando-se, por exemplo, gravações com interlocutores desconhecidos e, depois, efetuando-se novas gravações entre os mesmos para se confirmar ou rejeitar a hipótese de função de contato para o pronome você.

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