• Nenhum resultado encontrado

No dia 21 de março, a professora de danças populares se ausentou, deixando em seu lugar um professor que iria substituí-la naquele dia. Sem explicar previamente sobre o que seria trabalhado naquela aula, ele começa a aula demonstrando usando seu corpo como modelo um exercício que deveria ser feito, visando encontrar um certo movimento de bacia e quadris que ele queria ensinar aos alunos. Em seguida, ele demonstra um passo de quatro tempos de maneira rápida, de modo que muitos alunos têm dificuldade de entendê-lo; agrava-se ainda que a sala estava muito cheia, de forma que para quem ficava mais ao fundo era praticamente impossível ver o que estava sendo passado pelo professor.

Após demonstrar com seu corpo pelo tempo que julgou necessário, ele colocou uma música e deixou que os alunos fizessem sem a imagem de seu corpo como apoio o passo proposto. No entanto, em vários momentos ele parou a música para dizer aos alunos que estavam fazendo errado, e em uma das vezes ele disse: não é para fazer

a dança de amassar a latinha – e nisso ele dança no meio da sala algo que me parece

um pouco de pagode baiano e funk, fazendo um agachamento de quadris até o chão. Em outro momento intervém durante a aula, dizendo: não sei quem disse para

a galera do fundo coreografar, não é para inventar, é para fazer o que eu falei. Sua

fala é uma alusão ao fato de que os alunos estariam fazendo de forma tão diferente do que foi proposto que já estariam criando algo novo, coreografando. A situação gera grande desconforto em alguns alunos, a ponto de uma das alunas do quarto ano, Natali, falar em um dado momento: professor, precisa falar com tanta ironia? E ele responde que precisa sim, e completa dizendo que nós deveríamos dançar e não ficar

questionando, porque bailarino é isso, tem que estar pronto a qualquer momento para arrasar - e nesse momento faz um gesto com os braços e cabeça para trás, bem

extravagante e exagerado - que eu classificaria como fechação.

A atitude deste professor de dança, por mais que tenha destoado da prática de outros professores titulares que eu presenciei, não parece ser um caso isolado, mas representativo de uma forma de se entender a dança e o papel dos dançarinos. Lucas,

87

um aluno do segundo semestre, conversando comigo sobre o ocorrido ao final da aula, me diz que os professores antigamente da FUNCEB eram assim: o professor humilha,

não respeita os limites do aluno, inclusive corporais, e o aluno fica sempre tentando dar mais de si, mas chega um momento em que ele chega a se machucar. Ele me diz

que hoje em dia ele sabe reconhecer seus limites, e às vezes encarar um professor e dizer que não vai além; mas não são todos os professores que entendem essa atitude, e nem todos os alunos respeitam seus corpos.

Este tipo de percepção do corpo e do dançarino é sintomática de uma relação longamente arraigada na história da dança ocidental na qual ela é experimentada a partir da ótica do virtuosismo. Esta relação remonta, como mostra Koana (2005), à época do balé de corte, na qual o balé tinha um objetivo político ao mesmo tempo que estético, pois o ato de dançar estava ligado à confirmação da autoridade e poder do rei; “a beleza garante o poder e o poder reforça a beleza34” (idem: 101).

O dançarino é aquele que deve demonstrar um corpo hiper-real: mais leve, mais ágil, mais flexível, mais delineado do que os corpos normais. A dança deve trazer uma sensação também de algo profundamente difícil e extra cotidiano, sem que no entanto as reais dificuldades corporais deixem se transparecer na dança. Este tipo de relação com o corpo também parece ser muito comum nos esportes, na ginástica e no circo35. Neste sistema, o dançarino deve sempre estar buscando dar o melhor de si, e seu corpo é uma ferramenta que deve ser usada em seu máximo para obter os resultados desejados. Para muitos dançarinos, ter a certeza de ter um corpo que se destaca por sua capacidade de dançar e seu virtuosismo é também uma maneira de se destacar dentro do mercado da dança.

Não por acaso, ouvia uma expressão para elogiar os alunos que se destacavam, que é afirmar que eles têm um corpo pronto. Entende-se por isso que seja um corpo hábil e cujas técnicas de dança foram capazes de modificar seus esquemas corporais, de forma que mesmo que o aluno tenha que dançar algo que não conhece ou tem familiaridade, ainda assim seu corpo responderá aos movimentos de forma satisfatória, porque trata-se de um corpo já acostumado ao fazer da dança.

34 Tradução minha a partir do original “La beauté assure le pouvoir et le pouvoir renforce la beauté”. 35 Não sendo este o foco do debate, cabe apenas ressaltar algumas semelhanças entre os esportes e

a dança no que diz respeito à trajetória de formação do corpo visando torná-lo apto a uma prática no qual ele é peça fundamental. Para mais informações sobre processos de transmissão de conhecimentos, mudanças corporais e de aprendizado de técnicas, apontados pelos estudos da antropologia das práticas esportivas, ver: WACQUANT, 2002; DAMO, 2007; TOLEDO; COSTA, 2009.

88

É através deste tipo de corpo que é possível ser reconhecido como um bom dançarino, aumentando as chances de ser chamado para trabalhos, participar de audições, trabalhar em companhias de dança, e desta forma, se aproximar do fazer de um profissional.

A partir disso, toda uma trama de relações se mostra: a dança executada com virtuosismo é também aquela que mais agrada o público em geral, que se impressiona com a qualidade técnica dos dançarinos. Ser um bom dançarino permite ainda ser reconhecido pelos seus pares na dança, aumentando as chances de ser chamado para dançar em uma companhia reconhecida que eventualmente vai receber um edital, e em alguns casos, rodar com um espetáculo pelo Brasil ou no exterior; ou trabalhar em companhias que já estão estabelecidas e que têm espetáculos que se viabilizam financeiramente e podem pagar seus dançarinos.

A relação com a profissionalização é diferente quando se trata deste tipo de dança que respeita os corpos. Esta forma de entender a dança se adapta muito a trabalhos autorais em dança contemporânea, onde cada dançarino pode fazer uma pesquisa de seu corpo a partir de seus pontos fortes, e assim criar algo que se adapte às suas necessidades, limitações e desejos estéticos. No entanto, na perspectiva de trabalho em dança, ou seja, dar aulas ou entrar em uma companhia existente, é preciso ter habilidades bem estabelecidas ou interiorizadas no corpo, pois espera-se do dançarino que ele seja capaz de responder rapidamente às exigências do mercado/coreógrafo, e isso se dá através de um corpo pronto.

Daí as contradições nos quais a dança, e a escola por consequência, se encontra: de um lado, ter processos de aprendizado e de dança que são muito mais inspirados em debates contemporâneos e no respeito dos corpos, mas que nem sempre oferecem os resultados estéticos na forma e no tempo esperados. De outro lado, explorar o máximo dos corpos, mesmo sabendo dos impactos futuros que isso pode ter.

Geralmente este tema dos impactos não é muito tratado na escola, principalmente porque os alunos ainda são jovens e estão na fase de explorarem o máximo de seus corpos. No entanto Fabiana, uma das alunas que tem por volta de 40 anos e já trabalhou durante toda a sua vida em dança, faz um comentário em uma das aulas para mim e um grupo de alunos que parece exemplificar a sua visão sobre a dança profissional: tanto faz a técnica de dança, todas te exploram do mesmo jeito.

89

E de uma professora de geografia da UFBA que tinha um histórico na dança, contando sobre os sofrimentos que tinha nas aulas de balé, me diz: esporte faz bem pra saúde,

mas faz mal para o corpo.

Documentos relacionados