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A proposta dualista para a matéria formulada por de Broglie: a matéria

Parte I: Pressupostos conceituais, histórico-filosóficos, e aspectos conceituais do contexto

Capítulo 3: Aspectos conceituais inerentes ao contexto histórico-científico do

3.2 A proposta dualista para a matéria formulada por de Broglie: a matéria

Após os trabalhos publicados por Einstein os olhos da comunidade científica internacional passaram a considerar os fenômenos quânticos com curiosidade, mas, sobretudo com desconfiança, principalmente, por um lado devido à contraposição com as ideias

clássicas de Maxwell,123 que considerava a luz sob a perspectiva ondulatória, e, de outro lado,

pelo caráter intransponível das características, ora ondulatórias, ora corpusculares da luz e demais formas de radiação. Afinal, como explicar que certos fenômenos óticos, como a difração e a interferência, apresentassem um comportamento ondulatório para a luz, e outros, como o efeito fotoelétrico, explicado por Einstein, tomassem um viés corpuscular para a luz? Esta situação instaurou um reboliço na comunidade acadêmica, e gerou um desconforto no solo de uma ciência que parecia caminhar inexoravelmente para a explicação de todos os fenômenos conhecidos. A dualidade onda-partícula gerou tanto desconforto a ponto de

Uma decisão entre as duas teorias sobre a natureza da radiação competidoras não poderia ser forçada. Para a interpretação dos processos ópticos que envolviam a interação entre luz e matéria, a visão quântica corpuscular parecia indispensável, ao passo que fenômenos como a interferência e a difração pareciam requerer o aparato conceitual da teoria ondulatória da luz. Este estado de coisas foi bem caracterizado por Sir William Bragg, quando ele disse estarem os físicos usando, segundas, quartas e sextas, a teoria clássica, e terças, quintas e sábados, a teoria quântica da radiação.124

122

Ibidem, p. 25.

123

Segundo Martins, “Desde a formulação da hipótese de Einstein sobre a quantização da luz, em 1905, até a descoberta do efeito Compton, em 1922, ‘poucos físicos teóricos, além do próprio Einstein, acreditavam que as partículas de luz proporcionavam uma base para pesquisa séria’ (Thomas Kuhn). Segundo Bruce Wheaton, prossegue o professor Roberto de Andrade, a hipótese dos quanta de luz de Einstein não foi considerada seriamente pelos físicos teóricos durante aproximadamente 15 anos, pois parecia uma rejeição desnecessária da teoria clássica da radiação.” Cf. MARTINS, Roberto de Andrade e ROSA, Pedro Sérgio. História da teoria

quântica: a dualidade onda-partícula de Einstein à De Broglie, p.100.

124

Para tentar elucidar esta situação embaraçosa e desconfortável referente ao caráter contraditório da radiação, que ora se apresentava como partícula (hipótese de Planck e Einstein), ora se apresentava como fenômeno ondulatório (segundo a postulação clássica de Maxwell), vários trabalhos foram postulados, e diferentes esforços foram desenvolvidos na década de 1920, com o intuito de buscar uma forma de compreender as contradições pertinentes ao mundo quântico, contradições, sobretudo, como dissemos, atinentes ao paradoxo onda-partícula. Dentre os destaques, no rol dessas tentativas de enfrentamento de tais problemas, salientamos duas diferentes formulações, ambas apresentadas em 1924: primeiramente a tentativa de Bohr, Kramers e Slater, denominada de teoria BKS, (que apresentaremos apenas como um contraponto da proposta seguinte), e, em segundo lugar a proposta que tentou superar o dualismo onda-partícula admitindo que a matéria enquanto tal – por exemplo, um elétron – apresenta, simultaneamente, o comportamento ondulatório e corpuscular, formulada por Louis de Broglie (1892- 1987). No próximo item focaremos o contributo do físico austríaco Erwin Schrödinger.

A teoria publicada conjuntamente por Bohr, Kramers, e Slater, denominada de forma

abreviada por teoria BKS,125 buscou resolver os paradoxos onda-partícula da radiação

admitindo, em primeiro lugar, que é necessário assumir o caráter dualístico onda-partícula, como aspecto constituidor fundamental dos fenômenos quânticos, e, em segundo lugar, apontando que, caso considerássemos as ondas inerentes aos fenômenos da radiação – por exemplo, a luz – tais ondas não representariam a realidade, no sentido clássico de uma descrição matemática que corresponderia a uma situação ontológica da física experimental. Ao invés disso as ondas expressariam a probabilidade de ocorrência de um determinado fenômeno. O próprio Heisenberg nos explica com mais clareza estes aspectos a pouco citados da teoria encabeçada por Bohr:

Eles [Bohr, Kramers e Slater] afirmaram, primeiramente, que a propagação ondulatória da luz de um lado, e sua absorção e emissão em quanta de outro, são fatos experimentais que deveriam ser a base de qualquer tentativa de clarificação. (...) Eles então introduziram a hipótese de que as ondas tinham a natureza de ondas de probabilidade: de que elas representam não a realidade no sentido clássico,

125

Conforme Dantas, o programa da teoria BKS foi publicado por Bohr, Kramers e Slater, em um artigo intitulado The Quantum Theory of Radiation, publicado na Philosophical Magazine, 47 (January 1924), 785- 802”. Em alemão este artigo apresenta o título Uber die Quantentheorie der Strahlung, publicado na Zeitzchrift für Physik 24, 69-87 (1924). Cf. DANTAS, Marieta Tunes. Heisenberg e a Filosofia Grega. (dissertação de mestrado) Rio de janeiro: PUC- RIO, 2005. Certificação Digital n° 0311027/CA, p.31.

mas antes a ‘possibilidade’ de uma tal realidade. A hipótese era de que as ondas definiam a probabilidade de que, em cada ponto, um átomo que estivesse lá presente emitisse ou absorvesse um quanta (hv) de luz. Esta idéia levou à conclusão de que as leis da conservação da energia e momento não deveriam ser verdadeiras para um evento singular, mas apenas para uma média estatística. Ainda que esta conclusão estivesse incorreta (as conexões entre os aspectos ondulatório e corpuscular da radiação eram ainda mais complicadas), a tentativa de interpretação feita por Bohr, Kramers e Slater continha características importantes da interpretação posterior correta. A mais importante delas foi a introdução da probabilidade como um novo tipo de realidade física “objetiva”.126

Segundo relato do próprio Heisenberg, o legado teórico de Bohr, Kramers e Slater, apresentado em 1924, contribuiu mais do que qualquer outro trabalho naquele tempo para a clarificação da situação na teoria quântica. Trata-se, portanto, de um dos impulsionadores teóricos mais marcantes daquela conjuntura dos anos vinte, sobretudo para Heisenberg, por conta dos dois aspectos acima apontados, quer sejam, tanto pelo caráter probabilístico associado às ondas dos fenômenos ondulatórios, como pelo fato buscar uma ruptura com as noções clássicas de determinismo e causalidade, herdadas das respeitáveis matrizes de Isaac Newton e James Maxwell.

Aqui é oportuno adiantar que os dois traços determinantes do horizonte filosófico-

interpretativo de Bohr e de seus colaboradores, influenciarão o pensamento do próprio Heisenberg, como veremos em considerações de capítulos ulteriores: de um lado, identificamos a recusa em concordar com contribuições teóricas que tratem dos fenômenos quânticos de forma a privilegiar uma fidelidade aos aspectos causais e descrições deterministas; de outro lado, reconhecemos um forte caráter interpretativo que confere aos fenômenos quânticos aspectos probabilísticos.

Esses dois traços são intimamente interligados, e acompanharão Heisenberg em momentos decisivos de sua maturação intelectual, incluindo aí as famosas relações de indeterminação de Heisenberg, objeto de investigação específica, como veremos mais

adiante.127 De fato, tomar a luz como fundamentalmente constituída de aspectos ondulatórios

e corpusculares, deve ser entendido, como vimos no início da última citação, uma posição

126

Cf. HEISENBERG, Werner. The Development of the interpretation of the Quantum Theory. In: Niels Bohr

and the Development of Physics, p. 12-13, apud DANTAS, Marieta Tunes, Heisenberg e a Filosofia Grega.

(dissertação de mestrado) Rio de janeiro: PUC- RIO, 2005. Certificação Digital n° 0311027/CA, p.32.

127

ineliminável. Ocorre que existem dois modos possíveis, entre outros, de se afirmar que os fenômenos quânticos são constituídos de natureza dual onda-partícula: um modo pode reivindicar que tal estatuto dual é ontológico e pode ser descrito por leis causais físicas; o outro modo, postulado pela teoria BKS, assume que as ondas referentes ao fenômeno quântico da luz, não possuem correspondente ontológico, não indicam uma existência no sentido atribuído pela física clássica, mas representam, tão somente, como vimos a pouco, a

probabilidade de que, em cada ponto do espaço, um átomo possa absorver ou emitir um quanta de luz, portanto não apontam para uma realidade, mas para a possibilidade de

ocorrência de uma dada realidade. Este aspecto probabilístico reivindicado pela teoria BKS, confere, segundo apontou Heisenberg ao final da citação supra transcrita, “a introdução da

probabilidade como um novo tipo de realidade física objetiva.”128

O modo pelo qual enveredou Louis de Broglie, em 1924, se aproxima da primeira opção, de caráter ontológico, descrita no parágrafo anterior: a reivindicação do estatuto ontológico dos fenômenos quânticos a partir de uma descrição matemática que procure expressar aquilo que poderíamos denominar, utilizando o jargão da física clássica, de realidade microfísica. A hipótese de Broglie consistiu em considerar a própria matéria – por exemplo, o elétron – simultaneamente, como partícula e onda, e isto significa ampliar a abrangência do dualismo onda-partícula, antes associado apenas para os fenômenos da radiação – como no caso da luz – para o horizonte da própria matéria. Agora o próprio elétron e as demais partículas materiais constituidoras da natureza apresentam, segundo de Broglie, uma faceta dual.

128 Estes dois aspectos apresentados pela teoria BKS, quer sejam, a realidade virtual (as ondas presentes nos

processos quânticos não possuem natureza ontológica no sentido clássico), e o caráter probabilístico do comportamento ondulatório da luz modificaram radicalmente a compreensão dos fenômenos quânticos. Observemos as preciosas considerações de Chevalley, compiladas e traduzidas por Marieta Tunes, em torno destes desdobramentos: “Por meio dos conceitos que servem em física clássica para determinar uma ‘realidade’ física, podemos citar, em uma enumeração não ordenada, a localização espaço-temporal do objeto, a conservação de sua energia, a continuidade de sua evolução e a independência de seu comportamento no que diz respeito à observação. A mecânica quântica não deixará intacto nada além do princípio de conservação. Mas, em 1924, Bohr vai considerar a localização e conciliar continuidade e descontinuidade. A conservação da energia é menos fundamental a seus olhos do que a continuidade da radiação. (...) O malogro da teoria BKS, em convergência com outras dificuldades conduziu, em seguida, não ao abandono da noção de correspondência, mas ao deslocamento da questão da relação com os conceitos clássicos em uma direção próxima daquela na qual Pauli e Born já estavam engajados em 1923. Se não é a conservação de energia que está em questão, são as ‘imagens intuitivas espaço-temporais’.” Chevalley, citado por Marieta Tunes, arremata que “O campo virtual e a idéia de uma conservação apenas estatística são empregados em 1924 como os instrumentos de medida do território da física quântica.” Cf. CHEVALLEY, Catherine. Introduction, In: Physique Atomique et

Connaissance Humaine, p. 56, apud DANTAS, Marieta Tunes, Heisenberg e a Filosofia Grega. (dissertação de

Um momento decisivo no percurso que culminou com a hipótese dualística para a matéria de Broglie, foi o seu envolvimento com os trabalhos referentes aos raios X, através do apoio intelectual de seu irmão mais velho que havia montado um laboratório particular, sem vínculo com nenhuma universidade, onde realizava experimentos com membros da comunidade de pesquisadores e estudantes. Quando foram descobertos em 1895, a natureza dos raios X era desconhecida. Segundo Roberto de Andrade Martins, os raios X “eram produzido quando elétrons acelerados dentro de um tubo evacuado (tubo de raios catódicos ou

tubo de Crookes) batiam em qualquer superfície sólida.”129

A questão de determinar a natureza dos raios X enveredou por tortuoso caminho desde a hipótese de se tratavam de ondas eletromagnéticas de curto comprimento de onda, hipótese defendida por alguns pesquisadores da época, até a hipótese de que poderiam ser partículas eletricamente neutras. Em 1907, o físico Johannes Stark apresentou uma teoria quântica para os raios X, no entanto essa teoria quântica ou corpuscular foi criticada em 1912, quando Walther Friedrich e Paul Knipping elaboraram um experimento, no qual os raios X atravessavam um cristal e produziram um padrão de interferência, característica dos fenômenos ondulatórios. O ponto culminante neste contexto histórico foi quando William Henry Bragg (1862-1942), uma referência nos estudos vinculados aos raios X, passou a afirmar que os raios X e a luz visível deveriam ser compreendidos mediante uma teoria que

combinasse propriedades corpusculares e ondulatórias.130

Com a proposta de De Broglie, formulada em 1924, a história da teoria quântica atinge um patamar conceitual determinante: procura conciliar, pela primeira vez, uma formatação matemática elaborada, onde os fenômenos ondulatórios e corpusculares ganham uma importante unificação. Esta roupagem unificadora das contradições onda-partícula, que durante anos desafiou a comunidade científica, longe de se apresentar apenas como uma descrição formal, ao contrário, pelas mãos de De Broglie se buscou encontrar um estatuto ontológico para aquilo que ficou conhecido como “ondas de matéria”. O esforço foi reconhecido anos mais tarde, quando, “a existência de propriedades ondulatórias no movimento de elétrons foi confirmada experimentalmente em 1927 por C. J. Davisson e L. H.

129 Cf. MARTINS, Roberto de Andrade e ROSA, Pedro Sérgio Rosa, Louis de Broglie: o físico que combinou

ondas e partículas. In: Gênios da Ciência. São Paulo: Editora Duetto, 2010, p. 46.

130

Segundo Martins e Rosa, em 1913, Bragg escreveu uma carta para Ernest Rutheford onde escreveu: “O raio se desloca de um ponto para outro como corpúsculo, mas a disposição das linhas de deslocamento é governada por uma teoria ondulatória. Parece muito difícil de explicar, mas isso certamente é o que parece agora.” Cf. MARTINS, Roberto de Andrade e ROSA, Pedro Sérgio Rosa, Louis de Broglie: o físico que combinou ondas e

Gerner, nos Estados Unidos, e por George Paget Thompson, na Escócia”. Anos mais tarde “experimentos realizados por vários pesquisadores, com maior precisão e utilizando elétrons de alta velocidade confirmaram que a equação [de De Broglie] era válida no domínio relativístico [para altas velocidades], ou seja, não foi apenas a aproximação clássica (de baixas

velocidades) que recebeu confirmação.”131 Em 1929, Louis de Broglie foi laureado com o

prêmio Nobel pela comprovação experimental de suas ideias sobre as ondas de matéria, publicadas em 1924.

Não obstante o esforço para superar o misterioso caráter dualístico da radiação, agora extensivo ao tratamento dualístico da matéria, e da boa recepção de sua tese por parte de Einstein, as posições de Louis de Broglie em geral não foram bem recepcionadas, e, muitas vezes, até consideradas extravagantes pelos físicos da época, sobretudo por razões de, nessa mesma quadra histórica, isto é, entre 1925-1927, ter sido obscurecida por outra famosa

formulação teórica, apresentada por Heisenberg, juntamente com Born e Jordan,132

contribuição conhecida como “mecânica matricial”. Segundo o professor Roberto de Andrade Martins, a mecânica matricial de Born, Heisenberg e Jordan, “aplicava uma matemática abstrata para o estudo dos fenômenos atômicos, sem compreender o que se passava dentro do

átomo.”133

3.3 A proposta ondulatória para a matéria formulada por Schrödinger: a matéria como

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