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Propriedades por natureza, o C.C.E e propriedades essenciais

No documento Substancia e unidade em Aristoteles (páginas 57-61)

Parte I Essencialismo em Aristóteles

3 Essencialismo e Explicação

3.4. Propriedades por natureza, o C.C.E e propriedades essenciais

De posse das distinções que Aristóteles faz nos Segundos Analíticos, é importante responder algumas indagações pendentes antes de prosseguirmos. No capítulo anterior, recorremos, freqüentemente, à idéia de propriedades que pertenciam por natureza a seu sujeito. Agora nos é possível distinguir os usos a que a expressão "por natureza" pode se prestar. Quando se diz que não faz parte da natureza das nuvens, propriamente, apresentar estrondos, essa sentença tem que ser tomada num sentido muito preciso. Ela quer dizer que apresentar trovões não é um atributo da nuvem, estritamente considerada, do mesmo modo que o estrondo é um atributo do trovão. "Por natureza" tem a capacidade de intuitivamente denotar atributos essenciais e próprios de um tipo natural. Não obstante, não podemos negligenciar que a expressão "por natureza" pode ser aplicada ao caso do trovão com relação às nuvens para intuitivamente denotar o fato de que o trovão, sendo um atributo per

se da nuvem, apenas ocorre nela; a nuvem tem por natureza a capacidade de apresentar

trovões porque, embora nem toda nuvem o apresente, se há trovões, eles ocorrem numa nuvem. Alguma coisa na natureza dela permite essa ligação. Mesmo a linha reta pode ser dita possuir a propriedade de ser a mais bela das linhas por natureza. A nuvem possui a capacidade de ser o sujeito em que necessariamente uma propriedade ocorre e a linha reta,

de necessariamente afetar um homem de certa maneira. Em suma, a expressão "por natureza" pode ser aplicada a toda vinculação necessária. Assumimos que, no primeiro caso, o trovão não pertencia por natureza à nuvem porque, nessa ocasião, focalizamos na implicação “se há nuvem, há trovão”, a qual não é necessária. Quando assumimos a proposição inversa, esta sim necessária, podemos dizer, então, que a relação entre nuvem e trovão ocorre por natureza.

Como a expressão "por natureza", também o emprego do C.C.E. é intuitivo e pode se prestar, igualmente, a usos distintos. Como vimos na seção 2.1, muitos autores contemporâneos atribuem a esse critério a capacidade de distinguir propriedades essenciais. Obviamente, a questão que se suscita, depois de percorrermos alguns aspectos da teoria aristotélica da definição, é se ele é capaz de distinguir as propriedades essenciais das propriedades próprias. Intuitivamente, o C.C.E. parece ser válido para os atributos próprios. Se o animal deixar de ser macho ou fêmeo, ou se o líquido deixar de se adaptar à forma do recipiente que o contém, eles não seriam mais aquilo que são.18 Se for assim, tais propriedades satisfazem o C.C.E., mas não são essenciais.

Se isso está correto, podemos dizer que satisfaz o C.C.E., em um certo sentido, toda propriedade necessária, cuja necessidade, na linguagem de Fine, provém da condição de persistência de objetos. Se essa condição de persistência é dada por leis da natureza, que nada mais são do que propriedades que se vinculam de modo necessário, então, para um objeto, existir é satisfazer as regras que lhe cabem. "Existir" remete a como as coisas estão unidas, como elas se comportam. O triângulo deixaria de existir se ele não tivesse a propriedade de ter a soma de seus ângulos internos iguais a dois retos porque existir, para ele, é possuir certas propriedades que implicam, necessariamente, possuir aquela propriedade. Para efeito de contraste, se observamos as propriedades gerais apresentadas por Fine, vemos que elas não estão no mesmo nível e que não são homogêneas. O que a existência de Sócrates me diz da existência de conjuntos? A propriedade dele de ser membro do conjunto unitário Sócrates é necessária, mas apenas existe se pressupormos que Sócrates existe e que os conjuntos existem, do modo que lhes é próprio existir. E, como vimos pelo exemplo de Fine, não precisamos supor apenas entidades abstratas. A existência

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de Sócrates não pressupõe a da Torre Eiffel e vice-versa, mas é necessário que eles sejam distintos. Vemos que, nesse sentido do uso do C.C.E., "existir" assume simultaneamente os dois sentidos de "ente" (ou do "ser" ou do "existir"), excluindo justamente os concomitantes contingentes.

Não obstante, se entendermos por "existir" não o modo como as leis da natureza se comportam, ou como as propriedades estão, de fato, vinculadas, mas um outro modo pelo qual elas poderiam estar ligadas, então, podemos dizer que os atributos próprios não satisfazem o C.C.E. Acreditamos que Aristóteles pode ter concebido essa possibilidade. Os atributos próprios possuem uma independência dos atributos essenciais, pois eles são capazes de identificar um tipo natural independentemente de qual seja o atributo essencial, isto é, da causa que une o sujeito a esse atributo. Basta observar, como argumentamos, que essa causa poderia ser outra. O eclipse pode ser captado por um atributo próprio, a privação de luz na Lua, e este independe de qual é a causa da privação. Ela poderia se dar não pela interposição da Terra, mas pela rotação da Lua ou outra causa qualquer (cf. II 8 93b 4-6). Saber que a causa é aquela e não outra altera a nossa concepção do eclipse, evidenciando a sua essência, mas não altera nossa concepção do que é uma privação da luz. Uma privação de luz causada quer pela interposição da Terra, quer pela rotação da Lua, é, essencialmente, uma mesma privação. Se, em tese, a causa de um tipo natural poderia, indiferentemente, ser uma ou outra, então, a propriedade resultante dessas causas é a mesma, pois ela não é capaz de, por si própria, se diferenciar.

Assim, um sujeito deixaria de existir do modo que ele existe sem um atributo próprio, mas ele não deixaria de existir de um outro modo qualquer sem um atributo próprio. Da interposição da Terra não se seguiria, necessariamente a privação de luz, mas talvez se seguisse uma deformação visual. Isso seria, então, existir para um eclipse (se assim chamássemos esse tipo natural). Mas uma propriedade essencial não pode ser a mesma para mais de um tipo natural, se for decisiva para a identificação dele. É óbvio que, se a "privação de luz", estritamente tomada, é a mesma, ainda que em fenômenos distintos, então, também a "interposição da Terra" seria, se ela causasse dois tipos de efeitos distintos ou mesmo se tivesse causas distintas. Se ela fosse causada quer por atração gravitacional, quer por choques mecânicos através de um éter, a "interposição da Terra" seria a mesma.

Entretanto, sendo capaz de acarretar uma deformação visual ou sendo capaz de acarretar a privação da luz, a interposição da Terra não pode causar, em relação à Lua, os dois efeitos. Por isso ela é essencial. Tão logo se saiba que a privação de luz em questão é a causada pela interposição da Terra, o tipo natural em questão é determinado de modo que ele não possa ter sua causa em outra coisa. A causa é essencial porque, sem ela, nem o tipo natural em questão, nem o atributo próprio pelo qual ele é identificado, estariam determinados.

Se esses dois sentidos que atribuímos à idéia de "existir" estão corretos, podemos, então, tomar a hipótese (S), de que toda propriedade que satisfaz o C.C.E. é necessária, como adequada, refutando a alternativa:

(S1) Toda, e somente toda, propriedade que satisfaz o C.C.E. é necessária.

Os atributos próprios são necessários, mas podem ou não satisfazer o C.C.E., de acordo com o sentido de “existir” empregado nesse critério.

No documento Substancia e unidade em Aristoteles (páginas 57-61)