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Parte I: O Encontro de Marx com a Economia Política

1. A Sociedade Burguesa segundo a Crítica de Marx à Economia Política

1.3. Os Proprietários Fundiários

Após discutir as classes capitalista e trabalhadora, Marx passa a discutir a outra classe dos proprietários: os proprietários fundiários. Novamente, Marx começa por explicar, nos termos da economia política, o rendimento associado a essa classe, uma vez que a classe é definida, para esses autores, por sua contribuição à produção. De acordo com essa perspectiva, os proprietários fundiários têm o direito à determinada renda monetária porque detêm a propriedade da terra. A magnitude deste rendimento, por sua vez, está vinculada de forma positiva à fertilidade do solo, à localização da terra, às melhorias no entorno e na propriedade fundiária, e, por fim, aos preços das mercadorias.88

Ao apresentar o montante do rendimento enquanto consequência das qualidades da terra, a economia política expõe, segundo Marx, que os atributos da terra aparecem como qualidades dos proprietários fundiários, haja vista que esses são os possuidores da terra. Em vez de naturalizar o rendimento, Marx assinala que, na própria argumentação da economia política, encontra-se outra explicação para a determinação da renda da terra: o conflito entre proprietário fundiário e arrendatário da terra.89

Com a finalidade de mostrar o papel do conflito na determinação da magnitude da renda da terra, Marx recolhe no próprio discurso da economia política a posição do proprietário fundiário e do arrendatário em relação um ao outro. Das passagens recolhidas, observa-se que o proprietário fundiário busca deixar ao arrendatário de sua terra somente o suficiente para repor o capital (fixo e circulante) necessário à constante produção da terra.90

Ao barganhar a maior parcela possível do rendimento obtido com a terra cultivada pelo arrendatário, o proprietário fundiário obriga esse último a efetuar melhorias em sua terra, como forma de ampliar a renda. Essas melhorias, por seu turno, são usufruídas pelo arrendatário somente enquanto detém o direito de produzir na terra. Passado esse período, as melhorias na terra são apropriadas pelo proprietário fundiário.91

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Conforme Marx (2004, p.61-66, grifos do autor).

89

Neste particular, Marx (2004, p.64) observa que não é de se estranhar essa situação, pois a sociedade produtora de mercadorias tem por princípio de organização social “a oposição hostil dos interesses, a luta, a guerra”.

90

O proprietário fundiário procede desta forma, para a economia política, por conta da sua posição social, da sua fortuna e do fato da terra ser um recurso limitado. Conforme Marx (2004, p.64-65).

91

Se o conflito entre o proprietário fundiário e o arrendatário exerce papel na determinação do rendimento, Marx procede à contestação da seguinte conclusão da economia política92 acerca da relação entre os interesses do proprietário fundiário e da sociedade: “proprietário fundiário explora todas as vantagens da sociedade, (...) {logo} o interesse do proprietário fundiário é sempre idêntico ao [interesse] da sociedade”.93

Para criticar essa afirmação, Marx observa que se “o proprietário fundiário está interessado no bem da sociedade”, esta classe somente pode estar interessada, nos termos da própria economia política:

(...) no seu progressivo povoamento, na produção artística, no aumento de suas necessidades, numa palavra, no crescimento da riqueza; e esse crescimento é, segundo as nossas considerações até aqui; idêntico ao crescimento da miséria e da escravidão.94

Para corroborar essa afirmação, Marx recorda a própria relação hostil, acima destacada, entre o interesse do proprietário fundiário e os interesses do arrendatário na determinação da renda da terra. Somente essa relação põe os proprietários fundiários em oposição a uma parte significativa da sociedade.

Além desta parcela, o autor observa que os interesses do proprietário fundiário também estão em conflito com os interesses do trabalhador da agricultura e os interesses dos demais produtores e trabalhadores.95 A oposição em relação aos interesses do trabalhador agrícola surge, segundo o autor, porque o proprietário fundiário pode ampliar a renda da terra com a queda do salário do trabalhador agrícola – e essa queda ocorre como uma das formas do arrendatário honrar a renda exigida pelo proprietário fundiário.96 Da parte dos demais produtores e trabalhadores, observa Marx,

(...) a real diminuição no preço dos produtos manufaturados eleva a renda da terra, o possuidor fundiário tem, então, um interesse direto no rebaixamento do salário dos trabalhadores da manufatura, na concorrência entre os capitalistas, na sobreprodução, na total miséria da manufatura.97

Em oposição hostil aos interesses das demais classes, os proprietários fundiários também se encontram em conflito entre si, haja vista a concorrência entre

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A referida conclusão é exposta por Marx após discutir o papel relevante da variação dos preços das mercadorias na determinação da magnitude da renda da terra. A esse respeito, ver Marx (2004, p.67-70).

93 Conforme Marx (2004, p.70). 94 Conforme Marx (2004, p.70-71). 95 Conforme Marx (2004, p.71). 96

Conforme Marx (Ibid.).

97

eles provocada pelo crescimento da própria produção de mercadorias. No movimento da concorrência, conforme analisado na seção anterior, a diversidade de proprietários privados se torna a concentração da propriedade em poucas mãos, de modo que, no movimento da concorrência, a pequena propriedade fundiária será adquirida pela grande propriedade fundiária.98

A concentração da propriedade fundiária, para Marx, ocorre de forma mais intensa do que nos outros ramos produtivos porque a queda no número de trabalhadores e nos instrumentos de produção em proporção ao fundo empregado na atividade produtiva ocorre com muito mais vigor na agricultura do que nos demais ramos de produção.99 Soma-se a esse fator outros dois: a grande propriedade fundiária acumula para si os rendimentos do capital empregado pelo arrendatário para a melhoria do solo e usufrui do crédito diante da expansão da produção de mercadorias, enquanto o pequeno proprietário somente conta com o seu próprio capital e, pelo crescimento da forma de produção mercantil, torna-se mais dependente do dinheiro. Nessa linha, Marx aponta que:

(...) o pequeno proprietário fundiário que trabalha para si próprio encontra- se, dessa maneira, diante do grande proprietário fundiário na mesma relação de um artesão que possui um instrumento próprio, para com o dono da fábrica. A pequena posse fundiária tornou-se mero instrumento de trabalho. A renda da terra desaparece totalmente para o pequeno possuidor fundiário; permanece-lhe, no máximo, o juro do seu capital e seu salário; pois a renda da terra pode ser impulsionada pela concorrência a se tornar apenas e tão-somente o juro do capital não aplicado pelo mesmo.100

A concorrência entre o grande proprietário fundiário e o pequeno proprietário fundiário elimina, segundo a passagem acima, a renda da terra para o pequeno proprietário fundiário, o que sugere ser esta parcela dos proprietários fundiários dissolvida em pequenos capitalistas ou, na pior das hipóteses, em trabalhadores. Entretanto, o movimento da concorrência para o grande proprietário fundiário não se encerra com a dissolução do pequeno proprietário fundiário.

À proporção que se expande a produção de mercadorias, a renda da terra é pressionada para baixo, pois há concorrência entre as terras para a produção de

98

Conforme Marx (2004, p.71-72).

99Nas palavras de Marx (2004, p.71-72): “em parte alguma aumenta mais a possibilidade de exploração

omnilateral, de poupança dos custos de produção e hábil divisão do trabalho, com a magnitude dos fundos, do que na posse fundiária. Por menor que seja um campo, os instrumentos de trabalho de que ele necessita, como arado, serra etc., atingem um certo limite abaixo do qual não podem mais diminuir, enquanto a pequenez da posse fundiária pode ultrapassar de longe essas fronteiras”. Mais adiante, o autor ilustra este argumento com o caso da Inglaterra, conforme Marx, (2004, p.76). Vale apontar ainda que na seção anterior esta mesma relação é indicada.

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mercadorias e também há concorrência pela compra das terras. Esse último aspecto ocorre porque, segundo a economia política, o preço da terra depende da taxa corrente de juros, de modo que, se a renda da terra for maior em relação aos juros do dinheiro, os detentores de dinheiro se decidem pela compra das terras. Essa relação da renda da terra com o juro do dinheiro, junto com a relação de queda do juro do dinheiro com o acúmulo crescente de capital inferida na seção anterior, confirma a assertiva acima de que somente os grandes proprietários fundiários conseguem viver da renda da terra.

Além de confirmar esta afirmação, aponta para a mudança no caráter da propriedade fundiária, pois aqueles grandes proprietários fundiários que não conseguem arrendar suas terras, terminam por falir e, por isso, tanto a concorrência entre eles é elevada quanto a forma de obtenção do rendimento vem pela transformação da propriedade fundiária em produção agrícola industrial. O que significa ser o rendimento oriundo da organização fabril da produção, ao contrário de resultar somente do direito de propriedade sobre determinada parcela dos resultados de qualquer forma de produção.101

Diante do quadro acima exposto, observa-se a transformação no uso da propriedade fundiária, que passa a ser mais uma mercadoria, de modo que os proprietários fundiários são dissolvidos – ou na classe de capitalista ou na classe de trabalhadora – e, por conseguinte, a propriedade fundiária termina por se transformar em indústria.102

O movimento da concorrência entre os proprietários fundiários, conforme sugere tal quadro, ultrapassa a concentração dessa propriedade com vistas à obtenção da renda da terra e conduz à “dissolução” da classe de proprietários fundiários, à proporção em que estes passam a ser capitalistas em mais um ramo de produção ou decaem à condição de trabalhadores. Sobre este ponto, Marx observa que:

(...) a última consequência é, portanto, a dissolução da diferença entre capitalista e proprietário fundiário, de modo que, no todo, só se apresentam,

101

Conforme Marx (2004, p.74). Neste ponto, cabe observar que não se trata de argumentar que o capitalista é produtivo, mas sim de que o objetivo com a propriedade muda: do rendimento independente do seu uso, passa- se ao rendimento dependente do uso da terra para a produção de mercadorias e, com estas, obter-se rendimentos monetários. Por essa razão, a dependência maior do dinheiro aparece como um problema para o pequeno proprietário, conforme acima destacado.

102

De modo complementar, vale assinar que essa transformação já havia ocorrido com a pequena propriedade que, por ventura, tenha resistido à concorrência da grande, pois passou a produção industrial da terra e, com isso, suprimiu sua renda.

portanto, duas classes de população, a classe trabalhadora e a classe dos capitalistas. Essa venda ao desbarato da propriedade fundiária, a transformação da propriedade fundiária numa mercadoria é a ruína final da velha aristocracia e o aperfeiçoamento final da aristocracia do dinheiro.103

Longe de lamentar a transformação da propriedade fundiária em mercadoria, provocando a ruina da “velha aristocracia”, o aperfeiçoamento da “aristocracia do dinheiro” e a divisão da sociedade em duas classes, Marx afirma ser esse processo um efetivo avanço da sociedade. Isso porque a propriedade fundiária móvel marca, por um lado, a dissolução dos vínculos pessoais com a propriedade da terra; e, por outro lado, realiza a potência já contida na propriedade fundiária feudal que, para o autor, tratava-se de propriedade privada ainda individualizada e imóvel. Nesse âmbito, a terra deixa de ser o “corpo inorgânico do senhor”, não tem mais vínculo com seu nome e com suas qualidades senhoriais, da mesma forma que o trabalhador da terra não está mais ligado ao senhor porque não mais pertence à propriedade fundiária. Por consequência, afirma Marx, “somente a bolsa do homem se liga à propriedade, não seu caráter ou sua individualidade”.104

Essa supressão dos vínculos pessoais com a propriedade fundiária marca a sua transformação em propriedade privada móvel, segundo Marx, dissociada da figura do proprietário fundiário. Isso significa, nas palavras do autor:

(...) que toda a relação pessoal do proprietário com sua propriedade termine, e está se torne, ela mesma, apenas riqueza material coisal; que no lugar do casamento de honra com a terra se instale o casamento por interesse, e a terra, tal como o homem, baixe do mesmo modo a valor de regateio. É necessário que o monopólio inerte se transforme em monopólio em movimento e inquieto – a concorrência; [que] a fruição ociosa do suor e do sangue alheios se transmute num comércio multilateral com os mesmos. (...) é necessário que nesta concorrência a propriedade fundiária mostre, sob a figura do capital, a sua dominação tanto sobre a classe trabalhadora, quanto sobre os próprios proprietários, na medida em que as leis do movimento do capital os arruínem e promovam.105

De acordo com a passagem acima, a mercantilização da propriedade fundiária e seu uso para a produção de mercadorias, por meio da nova estrutura de produção, marca a transformação da sociedade em uma sociedade na qual a materialidade é reduzida à forma mercadoria, seja o meio de produção, seja o meio de consumo. Firma-se, assim, a riqueza enquanto “riqueza material coisal” e o seu

103 Conforme Marx (2004, p. 74). 104 Conforme Marx (2004, p.74-75). 105 Conforme Marx (2004, p.75).

crescimento, compreendido como acumulação de “trabalho armazenado”, que domina tanto os trabalhadores quanto os capitalistas.

Esse tipo de domínio, para Marx, engendra as condições para a sua própria superação, uma vez que não cessa o conflito fomentador da redução das classes sociais em duas classes opostas. Ao ampliar a classe de capitalista por meio da propriedade fundiária tornada capital e elevar o número de trabalhadores, em razão da ruina dos proprietários fundiários, amplia-se a concorrência e, como visto acima, engendra-se nova concentração dos capitais. O resultado é a intensificação do conflito, cuja solução é a superação desta divisão entre os homens.106

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