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Protestantismo e Doutrina Espírita: reescrevamos essa história

4 EDUCAÇÃO E DOUTRINA ESPÍRITA – UM ENCONTRO SEM

4.4 Protestantismo e Doutrina Espírita: reescrevamos essa história

Imagem 4 – Rui Martinho Rodrigues e Gabrielle Bessa, na Faculdade de Educação

Fonte: Arquivo Pessoal de Jeimes Mazza (2015).

Quando ascendemos aos domínios mais plenos das qualidades superiores da alma, lenta e profundamente passamos a orientar nossas escolhas a serviço de uma liberdade que se projeta no mundo através de sua liberdade irrestrita, porém, mediada pela força maior que sabe o que se passa na intimidade da nossa alma e conhece nossos desejos mais ocultos, aqueles que nem mesmo nós ousamos publicar em nossa consciência.

Liberdade que se traduz nas expressões infinitas do ser, em suas igualmente infinitas experiências no espaço que o envolve e permite sua livre sementeira na medida mesma de sua responsabilidade divina, íntima e social.

Não nos enganemos, este é um ato educativo, uma educação experimental e de contenção de sugestões inconscientes quando, ainda nas malhas inferiores de si, o ser em desenvolvimento necessita de regras mais firmes e que ofereçam um limite mais severo para aquele que ainda não pode exercer em sua plenitude o estar na vida, em relação com seus pares.

O espírito só está verdadeiramente preparado para a liberdade no dia em que as leis universais, que lhe são externas, se tornem internas e conscientes pelo próprio fato de sua evolução. [...] Daí em diante já não precisará do constrangimento e da autoridade sociais para corrigir-se. (DENIS, 2013, p. 323).

De um processo que se estende da infância do espírito à sua maturidade, o movimento é semelhante ao que encontramos na vida física, lapso de tempo em que o homem

se encontra em jornada evolutiva, sujeito às intervenções da carne que, limando-lhe as imperfeições, lentamente o transforma em alguém mais maduro e apto a utilizar em plenitude suas potencialidades. Vejamos uma bela analogia:

[...] as pedras foram-nos dadas para servirem à construção de casas, torres, muros, colunas, etc.; no entanto só servirão se forem talhadas, limpas e esquadradas pelas nossas mãos. Assim, as pérolas e as gemas, destinadas aos ornamentos humanos, são talhadas, raspadas e polidas pelos homens; os metais, produzidos para importantíssimos usos em nossa vida, devem ser desenterrados, liquefeitos, depurados e de vários modos fundidos e trabalhados, pois do contrário ser -nos-ão menos úteis que o lodo da terra. (COMENIUS, 2011b, p. 72).

É no trabalho de burilamento íntimo, através da autoeducação de nossos sentidos, que nos tornamos mais adultos espiritualmente. Assim, desta liberdade de ação e pensamento, filha primogênita da racionalidade conquistada a passos ziguezagueantes no avanço da civilização, eis que surge um modelo de pensamento mais profundo sobre as destinações do homem, aproximando-o de suas inquietações, em meio a conceitos tal como o de fé raciocinada, cunhado por Allan Kardec (2013).

Vejamos especificamente como ele pensou a união entre fé e razão, dois conceitos historicamente diametralmente opostos pela racionalização estreita do homem:

Do ponto de vista religioso, a fé consiste em dogmas especiais, que constituem as diferentes religiões. Todas elas têm seus artigos de fé. Sob esse aspecto, a fé pode ser ra ciocinada ou cega . Nada examinando, a fé aceita, sem verificação, assim o verdadeiro como o falso, e a cada passo se choca com a evidência e a razão. Levada ao excesso, produz o fa na tismo. [...] A resistência do incrédulo, devemos convir, muitas vezes provém menos dele do que da maneira por que lhe apresentam as coisas. A fé necessita de uma base, base que é a inteligência perfeita daquilo que se deve crer. E, para crer, não basta ver, é preciso, sobretudo, compreender. A fé cega já não é deste século, tanto assim que precisamente o dogma da fé cega é que produz o maior número de incrédulos, porque ela pretende impor-se, exigindo a abdicação de uma das mais preciosas prerrogativas do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio. É principalmente contra essa fé que se levanta o incrédulo, e dela é que se pode, com verdade, dizer que não se prescreve. Não admitindo provas, ela deixa no espírito alguma de vago, que dá nascimento à dúvida. A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa. A criatura então crê, porque tem certeza, e ninguém tem certeza senão porque compreendeu. F é inaba lável só o é a que pode enca ra r de frente a ra zã o, em toda s a s época s da Humanidade. (KARDEC, 2013, p. 254-255).

Daí para diante, já não somos mais aqueles geridos por uma causalidade externa, mas, auto gestores de nossas escolhas, colhendo o resultado dos equívocos, quando estes nos assolarem as deduções, mas, de igual monta, a realização indelevelmente satisfeita pelos acertos da estrada, ou seja, tratam-se estes, inegavelmente, de um problema de nossa ação no mundo, quer estejamos a refletir sob um ponto de vista existencial, quer sobre os revezes de uma prática, um ofício.

Sempre haveremos de ser convidados a escolher, e é sobre esta escolha, cujo preâmbulo nos detemos nos termos reflexivos que ora expomos, que esmiuçaremos mais à frente, sinalizando que, mesmo quando pensamos optar por algo que ainda haverá de ser construído por nós – o que em parte é verdade –, este algo já compõe um planejamento, uma organização aparentemente feita à nossa revelia, pois que a perfeição dos resultados, quando os analisamos segundo a potência de nossas capacidades cognitivas maduras, revela ser o fruto de uma arquitetura bem mais harmônica do que a criatividade humana jamais sonhou em conceber.

O universo continua calmo. É o equilíbrio absoluto; é a majestade de um poder misterioso, de uma inteligência que não se impõe, que se esconde no seio das coisas, e cuja presença se revela ao pensamento e ao coração, e que atrai o pesquisador qual a vertigem do abismo. [...] O mesmo acontece às coisas morais. Nossas existências se desenrolam e os acontecimentos se sucedem sem ligação aparente, mas a imanente justiça domina ao alto e regula nossos destinos segundo um princípio imutável, pelo qual tudo se encadeia em uma série de causas e efeitos. Seu conjunto constitui uma harmonia que o espírito emancipado de preconceitos, iluminado por um raio da sabedoria, descobre e admira. (DENIS, 2014, p. 19).

Certas palavras são tão soberanas que se torna difícil traduzi-las, pois incorremos no erro de não sermos tão fidedignos quanto as mesmas exigem que sejamos, dada a sua beleza.

O ano era 2006...

Da afirmação madura de convicções naquele momento ainda estreitamente acadêmicas à entrada numa Faculdade de Educação na ânsia de concretizar um sonho de formação, vemos que o indicativo supremo do livre arbítrio que acreditamos ser uma dádiva educativa de Deus – e que tão magistralmente se delineou quando buscávamos algo que nem sabíamos ser tão profundo – assumiu prerrogativa ímpar em nossa vida.

Partindo da premissa básica de que somos célula individual a compor o quadro de uma unidade coletiva universal, é apenas através de nossas livres ações no mundo que transitamos ao encontro daqueles que atestam que a afinidade transcende os laços biológicos, ou seja:

[...] à primeira vista, a liberdade do homem parece muito limitada no círculo de fatalidades que o encerra: necessidades físicas, condições sociais, interesses ou instintos. Mas, considerando a questão mais de perto, vê-se que essa liberdade é sempre suficiente para permitir que a alma quebre este círculo e escape às forças opressoras. (DENIS, 2013, p. 319).

Na quebra dessas condições primevas, partimos em busca de construir nosso destino, então, temos aí dois grandes desafios que se apresentam neste processo: além de sermos sepultados nos, por vezes, sufocantes laços da matéria – condição da qual nenhum de nós pode fugir – ainda amargamos o fel das distâncias em decorrência das escolhas religiosas.

Mas, vejamos que o referido “fel” é apenas a ponta de um aparentemente inofensivo iceberg, pois, antes de encerrar um problema de ordem religiosa, encerra um problema de ordem relacional da própria área do conhecimento em suas matrizes fundantes, de natureza estrutural, sobre o qual se assenta a Educação: qual, na essência, o epicentro de suas preocupações?

Sendo de grande dificuldade a resposta a esta pergunta eminentemente de caráter filosófico, ainda tateamos na revelação que tal indagação nos suscita, de modo a considerarmos sua cogitação uma possibilidade ainda pouco instituída, mesmo para educadores formados e atuantes; mas, em Pires (2008, p. 58-59), o horizonte descortina-se mais claramente disposto, indicando um norte aos que se ocupam de pensar a Educação sob bases mais coerentes, buscando no homem seu princípio, meio e fim: “É evidente que as dimensões da educação decorrem das dimensões do homem. Se o homem pode ser encarado, tanto espiritual como socialmente, numa perspectiva de sucessões dimensionais, então o processo educativo também será susceptível dessa visualização”.

Desta feita, sendo o homem o centro malmente descoberto das responsabilidades da Educação e possuidor de dimensões negligenciadas ao longo da história das ciências, nas disciplinas que o esquadrinharam e compartimentalizaram, inviabilizando, para além do diálogo entre elas, o diálogo do próprio ser com seus traços constitutivos, o resultado de tal processo jamais seria menos cruel no que diz respeito à sua condição espiritual/religiosa na relação com seus pares.

Sobre tal disciplinarização, o regime – se assim pudermos chamar – que escravizou e interrogou os corpos (FOUCAULT, 1988), portanto, foi o mesmo que escravizou as mentes e as relações, donde só lamentamos que, da mesma forma que a loucura originou a psiquiatria naquele período55, deveria o homem ter originado a Educação, ou seja, que esta partisse do seu ponto de vista, e não de fundamentos externos a ele.

Assim, temos um movimento de escravidão das mentes, num momento de aprofundamento e chancela do materialismo, impulsionado em muito pelo advento feroz da

55 Sobre o esquadrinhamento das cidades e dos corpos, bem como o nascimento da psiquiatria, ver “O nascimento da medicina social” e “O nascimento do hospital”, respectivamente (FOUCAULT, 1979).

tecnologia em irmandade plenamente afim com a Ciência, tornando-se a época moderna o grande trunfo que o fosso sectário das religiões precisava para fincar a sua bandeira56.

Recuando um pouco no tempo voltamos à idade média, não menos cruel, mas, um

momento da história em que “[...] o império religioso desenvolveu-se em plano racional e crítico, elaborando a autonomia mais completa do pensamento que eclodiria na Renascença”

(PIRES, 2008, p. 59). Ao fazermos um rasante através dos recursos da memória, pelos acontecimentos e almas daquele período, deparamo-nos com Martinho Lutero.

Nome de peso na reforma protestante, Lutero desbravou as trilhas inclementes da tradição religiosa, abrindo campo, como seu predecessor e fonte de inspiração, Yan Huss, abriu para ele próprio espaço para uma reforma estrutural da religião que, séculos mais tarde viria a ser, de mesma feita, a mola propulsora da abertura das mentes aos postulados espíritas.

O codificador da Doutrina Espírita, Allan Kardec, é importante informarmos, também se formou através de uma mente do protestantismo corrente: Heinrich Pestalozzi, aliando seu olhar de pesquisador aos preceitos da pedagogia de amor do controverso protestante.

Mas, longe de equipararmos o encontro entre duas tão grandes almas da Educação Clássica como o que aqui destacamos, também, nem de longe podemos desqualificar a riqueza dos anos de formação e a importância que o diálogo inter-religioso nos proporcionou, desaguando na tese cujos fundamentos de uma Educação que beba em suas características primeiras, vislumbramos através da vida de Carlos Roberto Campetti.

Em palestra na cidade de Tomelloso, na Espanha, em 3 de outubro de 201157, nosso biografado realça a importância da ação de Martinho Lutero – donde uma das suas ações de fundamental importância foi a tradução da Bíblia para o alemão – para a consolidação do Espiritismo séculos mais tarde.

Foi necessária a ação luterana para que o povo tivesse acesso direto aos ensinamentos de Jesus contidos nos evangelhos, para aprenderem a interpretá-los e, com isso,

se tornassem mais maleáveis, “[...] mais abertos, mais flexíveis para a possibilidade de aceitar

56 Discussão já contemplada no item 3.2 desta tese, mas, a título de complemento, tais acontecimentos geraram o desconforto que veria na laicidade da Educação a fuga – mas, a nosso ver, a grande desculpa – para um universo social, cultural, que ofereceria mais garantias de não esbarrar em terreno arenoso das divergências em função da Religião.

a realidade da existência da comunicação entre os espíritos, da reencarnação como

oportunidade de evolução espiritual”58

.

De acordo com Martinho Rodrigues59:

A reforma protestante, ao estabelecer o livre exame das escrituras (que seria a base da liberdade de consciência), o livre arbítrio (que reforçaria muito a ideia de liberdades políticas) e a doutrina da responsabilidade individual (e com ela a individualidade que seria o alicerce dos direitos individuais) escancarou a porta para o humanismo, que tem o sentido de respeito pelo pensamento secular e pela divergência, facilitando a difusão de todo tipo de doutrina.

Aqui podemos abrir um parêntese para uma discussão mais abrangente e importante em termos do sujeito nascente da Modernidade, que surgia de mãos dadas com o acesso mais democratizado às ditas sagradas escrituras, mas, que também, junto com a

secularização, forjou o fenômeno que Figueiredo (1994) nomeou de “gestação do espaço psicológico”.

No quesito reforma – contraponto dos séculos renascentistas, identificados

nostalgicamente “[...] por Cervantes (1547-1616), no famoso monólogo de Dom Quixote [...] ‘Ditosos e afortunados os séculos aqueles a que os antigos puseram o nome de dourados’” (FIGUEIREDO, 1994, p. 51) –, vemos como seu campo originário e gênese das

incongruências a partir da desagregação da totalidade do mundo e das instituições de caráter fundamentalmente religioso foram, aos poucos, oportunizando que o psicológico emergisse.

Este nascimento seria o resultado da complexificação que as sociedades haveriam de experimentar (ELIAS, 1994), polifonia crescente que tomou conta dos quinhentos, como prévia e causa do que o velho mundo experimentaria nas reformas, protestante, em primeiro lugar, e católica, em seguida, represália e contraponto da primeira, informando que deste caos social e religioso, o mundo já não sairia o mesmo.

Figueiredo (1994, p. 28-29), portanto, explica-nos como a polifonia nascente nos séculos quinhentistas, reverbera na produção da individualidade que, da descoberta do outro radicalmente diferente, descobre, também, a necessidade de comunicação, nem sempre perfeita ou respeitosa – ainda, em alguns aspectos, belicosa e violenta –, mas já a individualidade em gérmen, que consideraria fundamental apropriar-se dos textos sagrados sem mediadores institucionais, abrindo espaço para o individualismo a posteriori:

58 Trecho da palestra supramencionada, na Espanha.

[...] o crescimento das atividades comerciais e os projetos de expansão da cristandade, por um lado, e o renovado interesse pelos textos sacros e filosóficos nas suas versões originais, por outro, já no século XIII tinham levado Roger Ba con (1214-1292) a insistir, na sua Opus ma ius, no estudo das línguas, dando para isso uma grande variedade de razões teóricas e práticas. Sabe-se, também, que a expansão do comércio ultramarino e a política colonialista de Portugal haviam determinado a necessidade de se considerar o estudo das línguas como essencial no campo das grandes navegações. O contato europeu com a Ásia, África e América, durante muito tempo a cargo de portugueses e, logo depois, espanhóis, não apenas alterou hábitos de toda a espécie na Europa (por exemplo, a difusão do tabagismo) como colocou frente a frente vozes e falas absolutamente distintas [...]. [...] É preciso um esforço intenso e disciplinado para enfrentar os conflitos de interpretação inerentes a uma atividade generalizada de tradução imposta pela multifacetada descoberta da alteridade intra e extra-europeia.

Voltando ao motivo de tão prolongada explanação, a retribuição, anos depois, pela convivência fraterna daqueles anos que, mesmo abraçando orientações religiosas diferentes, puderam desfrutar de momentos de evolução pessoal e acadêmica é expressa através desse registro, que constitui-se fragmento de uma história repleta de coincidências que foram sendo conhecidas aos poucos.

Vale lembrarmos que Hippolite Leon Denizard Rivail, mais tarde Allan Kardec, futuro codificador da Doutrina Espírita recebeu, das mãos de um educador protestante, Johann Heirinch Pestalozzi (SOUTO MAIOR, 2006), os elementos para, anos mais tarde, compilar assuntos da observação metódica que empreendeu sobre o fenômeno das mesas girantes, ou dançantes, que aconteciam nas reuniões que a burguesia francesa estimava fazer.

A formação recebida por Allan Kardec das mãos do professor Pestalozzi jamais foi impedimento para que, anos mais tarde, já maduro, na aurora dos seus ... anos, ele se debruçasse sobre as apresentações que deram a base necessária à organização da proposta espírita, ou as visse com preconceito e desdém, atitudes pouco esperadas de um pesquisador, de um homem da ciência.

O grande educador Pestalozzi conviveu com professores calvinistas e luteranos, mas sempre se colocou equidistante dos preconceitos e fanatismos de suas posições religiosas. Dava, como homem inteligente que era, valor relativo à Bíblia [...]. O grande mestre de Yverdon era formalmente protestante, mas tendo uma mente aberta, seu cristianismo era tolerante, admitindo um Deus de amor [...]. (SOUTO MAIOR, 2006, p. 113).

Tal como a Doutrina Espírita nasce da curiosidade de três jovens americanas protestantes – Leah, Margareth e Kate –, esta tese só pôde concebida a partir do encontro entre um orientador protestante e uma orientanda espírita, resultando numa comunhão oportuna e não excludente de concepções, pois que concebida após anos de amadurecimento íntimo, expressos na viva satisfação de anseios regulados pela responsabilidade.

4.5 O encontro entre Doutrina Espírita e Educação: vinte anos depois do encontro de