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1.3 Prudência: um princípio assertórico e pragmático

1.3.2 Prudência e progresso

Ao abordar a categoria do progresso como pertinente apenas à espécie humana, Kant o fez a partir de três aspectos: 1) conjectural; 2) ideal; 3) profético. Esses três aspectos do pro- gresso ligam-no de forma legítima à compreensão do conceito de história kantiano, cabendo notar que a palavra progresso, no sentido compreendido por Kant, toma duas variáveis, em que a primeira é o progresso do ser humano em seu âmbito individual por meio de sua forma- ção e luta pessoal (bildung), ao passo que a segunda é o progresso da espécie humana locali- zada na Terra como a única espécie capaz de aperfeiçoar as suas aptidões naturais. Em resu- mo, progresso e aperfeiçoamento humano, tanto no indivíduo quanto na espécie, são categori- as amalgamadas. Entretanto, deve-se observar que, se, por um lado,

[É] um comando da razão moralmente prática de um dever de um ser huma- no para consigo mesmo cultivar suas capacidades (algumas entre elas mais do que outras, porquanto as pessoas têm fins distintos) e ser, de um ponto de vista pragmático, um ser humano igual ao fim de sua existência. 135

Por outro lado, levando-se em conta que o fim do homem é a moral e que a realização desta significaria a realização plena do progresso, somos obrigados a aceitar que, por meio da ob- servação empírica do indivíduo, não é possível afirmar-se a ocorrência, de fato, do progresso. Tal observação pode-se supor somente na espécie como um todo, sendo que a referida obser- vação conserva a máxima de queo progresso necessariamente implica melhoramento ou aper- feiçoamento. Mas qual relação o progresso, concebido como intrínseco à história, pode ter com o princípio da prudência?

Como notamos anteriormente, uma das faces do pragmatismo kantiano relaciona-se à habilidade que os homens devem ter ao usar os outros para os seus fins pessoais, e é fato que o progresso da espécie humana não ocorre sem o uso, consentido ou não, de uns sobre os ou- tros; é o progresso compreendido como resultante das ações humanas que cede material para construir a história humana no mundo, de modo que tais ações, por serem concernentes aos seres humanos devem ser mediadas pela prudência, uma vez que as consequências de uma ação danosa em um indivíduo atingem a espécie como um todo. Em face disso, o progresso apresenta-se como uma categoria ligada tanto ao âmbito prático quanto ao âmbito pragmático e, assim:

Podereis, pois, admitir que, dado o constante progresso do gênero humano no tocante à cultura, enquanto seu fim natural, importa também concebê-lo em progresso para o melhor no que respeita ao fim moral do seu ser, e que esse progresso foi por vezes interrompido, mas jamais cessará. 136

Tendo-se em vista que a predisposição do ser humano para o aperfeiçoamento é res- ponsável pelo progresso, mas também o é por muitos prejuízos, inclusive de ordem moral, somos levados a questionar: como é possível a espécie humana, cuja característica marcante é a capacidade de sempre se aperfeiçoar, progredir tecnologicamente sem abdicar do progresso moral? Afinal:

[D]e acordo com a qualidade moral que eu me exijo, não sou tão bom quan- to deveria ser, por tanto, posso ser um fim que melhora constantemente (pos-

sibilidade que também tem de admitir) e desse modo, para que tal dever se

transmita juridicamente de um membro a outro. 137

Ao compreender a prudência como imperativo ponte, queremos significar que, do pon- to de vista de sua localização, este é o imperativo necessário para os seres racionais finitos existentes na Terra (explicaremos essa afirmação no item 1.3.3, prudência e virtude), pois é por meio da prudência que o ser humano pode agir sob o comando da razão acerca de assun- tos factuais e colocar a sua animalidade sob o comando da razão, aperfeiçoando-se seguida- mente, o que significa buscar a sua moralidade. Entretanto, a chegada à moralidade só pode ser tentada e exercitada constantemente pelo homem, porque, dada a sua finitude, lhe é im- possível realizar o projeto completo da moralidade.

136 Cf. KANT, I. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática. p.

96. E, ainda, na Fundamentação se lê: Pois, enquanto ser racional, ele quer necessariamente que todas as facul- dades sejam desenvolvidas nele, porque lhe são úteis e estão dadas para toda espécie de fins possíveis. [AK 423], p. 223.

137 Cf. KANT I. Sobre las relacions entre la teoría y la prática en el derecho internacional, consideradas

desde un punto de vista filantrópico-universal, es decir, cosmopolita. Em: ESTIÚ, E. Filosofia de la História.

Ou seja, se uma criatura racional pudesse alguma vez chegar a praticar todas as leis morais inteiramente de bom grado, isso equivaleria a que não se en- contrasse nela sequer a possibilidade de um apetite que o estimulasse a des- viar-se delas; pois o domínio de um tal apetite sempre custa sacrifício ao su- jeito, portanto requer autocoerção, isto é, necessitação íntima para o que não se faz inteiramente de bom grado. Mas a esse grau de disposição moral ne- nhuma criatura consegue elevar-se.138

Assim, a prudência representada como ponte toma lugar na ação política, lugar por ex- celência onde os seres finitos podem e devem exercitar o agir moral uns com os outros e, com isso, efetivarem a sua virtude: lutar a fim de que a razão comande as paixões. É interessante observar que o terreno da ação política apresenta-se como o lugar em que Kant trata de ques- tões relacionadas à espécie humana. Assim, no momento em que a biopolítica invade o espaço da vida molecular, uma antropologia bioética só pode ter seu sentido se lançar mão de sua face política. Se estivermos corretos quanto a isso, o imperativo da prudência revela-se perti- nente, por sua face preditiva e pragmática, para articular os meios e conduzir a espécie rumo ao melhor.

Contudo, do fato de que todos os argumentos da ciência e da política visam, em última instância, ao melhoramento da espécie humana por meio do desenvolvimento das habilidades individuais e esse processo atinge a humanidade como um todo, faz-se necessário, então, des- tacar, aqui, a postura adotada por Kant ao tratar a história e a virtude de forma imbricada no processo de desenvolvimento do ser humano: para Kant, o progresso só é possível na espécie e esse é o foco central do seu pensamento, na medida em que, “embora o Começo conjectural foque o passado do homem ele só o faz para melhor entender o futuro”139, enquanto ao indivi- duo cabe estar em luta constante a fim de que a razão reine sobre as paixões. De acordo com Schneewind, para Kant:

Deus age necessariamente de maneira moral, por esta razão não pode ter vir- tude. Somente seres que encontram dificuldade e que lutam persistentemente contra as tentações podem ser virtuosos. Nós seres finitos nunca consegui- remos chegar a um ponto de não necessitar lutar para resistir aos desejos. Nós não somos nem anjos nem animais. Virtude é a nossa posição própria no universo.140

138 Cf. KANT, I. [KPV 149], p. 135.

139 Cf. KANT, I. Começo Conjectural. [Apresentação] p. 08.

140Cf. SCHNEEWIND, J. B. God, Kant thinks, necessarily acts morally and for that reason cannot have virtue.

Only beings who find morality difficult and who develop persistence in struggling against the temptations can be virtuous. We finite beings will never get to the point at which we do not need the strength to resist desire. We are neither angels nor animals. Virtue is our proper station in the universe. (Autonomy, obligation, and virtu. In: GUYER, P. (Org). Kant. Cambridge: University of Cambridge, 1992. p. 318.