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1 EPISTEMOLOGIA, COMPLEXIDADE E DESENVOLVIMENTO

1.2 A CIÊNCIA DESENVOLVIMENTAL E A COMPLEXIDADE

1.2.2 Algumas contribuições ao pensamento complexo no âmbito das ciências

1.2.2.6 A Psicologia Cultural

Fora do mainstream da psicologia atual, a psicologia cultural, que tem em Valsiner (2003, 2009, 2012, 2014a, 2014b) uma de suas principais referências, propõe redefinir as bases do campo, a partir de uma abordagem qualitativa, descritiva e compreensiva. A psicologia cultural compartilha com a psicologia transcultural, comparativa, da evidência cultural, assim como do foco na cooperação interdisciplinar. Porém, para Valsiner (2003) a psicologia transcultural teria feito uso de uma ênfase indutiva da psicologia tradicional a partir da comparações de amostras, fazendo parte, especialmente de psicologias diferenciais. Em contraste, a psicologia cultural se desenvolveu com base na antropologia e na psicologia do desenvolvimento, sendo construída sobre uma noção de causalidade sistêmica, não- linear, o que aparece também em sua noção de catálise (referente à enfase na relevância da presença de diferentes condições na emergência, desenvolvimento, ou mesmo ruptura, de fenômenos). Como resultado, as formas de construção do conhecimento na psicologia cultural diferem importantemente daquelas da psicologia transcultural.

A psicologia cultural, como defendida por Valsiner (2009), chama a atenção para a complexidade da cultura, que não pode ser vista enquanto um objeto estático, pronto para influenciar o desenvolvimento humano, como se não fosse, por estes

mesmos, construída. Para Valsiner, a psicologia se construiu a partir de referenciais culturais eurocêntricos, causando uma grande distorção ao se aproximar de outras matrizes sociais e culturais. Até mesmo estudos transculturais, aqui defendidos como importantes para um projeto complexo de ciência desenvolvimental, frequentemente cometem esse erro, de avaliar critérios culturais de uma maneira que poderíamos chamar de etnocêntrica. A psicologia, então, parece, para Valsiner, nunca ter feito o esforço de formular conceitos a partir do referencial simbólico e cultural de outras culturas. As próprias definições conceituais, unidades de análise, métodos de investigação e critérios avaliativos não levam suficientemente em consideração os referenciais simbólicos típicos de cada grupo cultural. Para isso seria necessário buscar compreender como outras culturas estabelecem seus próprios parâmetros, seus valores, seus rituais, seus símbolos compartilhados e como esses parâmetros definiam as diferentes trajetórias desenvolvimentais possíveis. A análise desses parâmetros simbólicos próprios das culturas é fundamental para a construção de unidades de análise que possam dar conta da complexidade humana. A cultura, então, tal como trabalhada por Valsiner (2014b), deve ter como característica principal o foco em sistemas complexos de significado humano, orientada para a descoberta de princípios básicos fundamentais. Soma-se a isso o entendimento da ciência desenvolvimental pela psicologia cultural, como podemos ver em Valsiner (2012), como uma ciência interdisciplinar, sistêmica, qualitativa e idiográfica. Valsiner também defende uma crítica ao reducionismo, o que dialóga com todo o debate aqui empreendido sobre a complexidade.

Com o surgimento da psicologia cultural, na década de 1980, Valsiner (2014a) pretendia desenvolver uma nova chance de capturar os fenômenos complexos e dinâmicos da experiência humana, acreditando que a psicologia, como ciência, precisava de uma ―re-calibração‖ geral. Valsiner (2014a) entendeu que o principal obstáculo ao desenvolvimento da psicologia científica da experiência humana seria existencial, pois todos os fenômenos psicológicos seriam únicos e pessoais e, assim, as investigações culturais-psicológicas são necessariamente de eventos únicos, resistindo, por isso mesmo, à quantificação e à generalização pela estatística (Valsiner, 2009). O mesmo pensamento ou sentimento, mesmo em um contexto semelhante, não pode ocorrer novamente. E tal singularidade não está bem adaptada ao ideal de ciência perseguido pela psicologia. Se, por um lado, a ciência

parece perseguir um conhecimento básico e universal que permaneça relativamente estável, por outro, os fenômenos psicológicos são, por natureza, sempre transitórios.

Como ciência, a psicologia precisa absorver essa característica dos fenômenos psicológicos. Ao contrário, a psicologia tem sido construída com base na premissa de que tais momentos adquirem uma permanência relativa que permite que estes sejam estudados. Naturalmente, aqui a psicologia segue outras ciências, buscando se concentrar em objetos estáveis de investigação e visando, como qualquer ciência, criar um conhecimento universal. E mesmo que se trate de fenômenos em rápida mudança, tal conhecimento universal pretende ser sempre abstrato e estável. Um obstáculo à psicologia tem sido a adesão prioritária ao modelo de generalização indutiva, ignorando modelos dedutivos ou abdutivos como base de evidência. A via indutiva para o conhecimento generalizado requer o estabelecimento de categorias de fenômenos dentro dos quais cada espécime é tratado como se fosse um membro igual da classe dada. Contudo, cada pessoa tem sua própria história de vida irreversivelmente perdida em qualquer tentativa de generalização, limitando fortemente a aplicabilidade do modelo indutivo dentro da psicologia (Valsiner, 2014a).

Esse estado de confusão tem sido, para Valsiner (2014a), presente na psicologia desde o seu movimento para assumir a imagem das ciências físicas e da adoção dos métodos estatísticos como o método científico para a psicologia, a partir da dominação da psicologia por poucos modelos norte-americanos ou europeus de "fazer ciência" (Valsiner, 2009). Em oposição a esse modelo hegemônico, a psicologia cultural contemporânea se volta, então, cada vez mais para o estudo de objetos entendidos como construções culturais. E a cultura, entendida em termos de mediadores semióticos e padrões de ação significativos, se torna o núcleo inerente das funções psicológicas humanas, e não uma entidade causal externa que teria "efeitos" sobre a emoção, a cognição ou o desenvolvimento humanos. Assim, o modelo proposto por Valsiner (2009) aparece como um modelo muito mais próximo ao pós-modernismo, local, dependente do contexto, complexo e, portanto, ao mesmo tempo fragmentado e sistêmico.

A respeito dos avanços nas estratégias quantitativas em psicologia, Valsiner (2014b) entendeu a utilidade do uso da quantificação na psicologia como uma luta para parecer "Científico". Ao longo de sua história, a psicologia cria sempre novas

"medidas" de variáveis psicológicas cada vez mais complexas, específicas e efêmeras e analisa os resultados de tais "medições" através de um padrão cada vez mais matematicamente especializado, sem compreender exatamente o significado das operações estatísticas utilizadas. Valsiner ainda afirma que a psicologia falha por confiar em demasiado nas correlações. Para o autor, a própria generalização a partir de correlações estatísticas em psicologia torna-se discutível, pois qualquer descoberta de "relações" entre "variável X" e "variável Y" em uma análise correlacional revela pouco sobre o funcionamento real do sistema no qual X e Y são sistematicamente ligados. Para Valsiner, os dados correlacionais não explicam. Antes, as próprias correlações precisam de explicação. De acordo com a psicologia cultural, as práticas padrão na psicologia tradicional supervalorizam a evidência correlacional - generalizada no discurso sobre "relações significativas" entre "variáveis" - e geralmente vista como o resultado final das investigações. Essa supervalorização criaria, de acordo com Valsiner, novos obstáculos para a compreensão, ao invés de novas compreensões.

Essa situação, para Valsiner (2014b), deve-se ao que ele chama de aprisionamento da psicologia a sua adesão a atribuições causais, enquanto outras disciplinas já aderem a um sistema de explicação não-causal. Valsiner chama esses sistemas de catalíticos, onde se busca enfatizar a relevância da presença de diferentes condições na emergência, desenvolvimento, ou mesmo ruptura, de fenômenos.

1.2.3 Desafios ao pensamento complexo nos estudos desenvolvimentais – algumas