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A psicologia soviética nos anos vinte e a entrada de Vigotski nos meios acadêmicos

3. SOBRE VIDA E OBRA: O HOMEM, SUA CAUSA E SUA CASA

3.2. A psicologia soviética nos anos vinte e a entrada de Vigotski nos meios acadêmicos

Em janeiro de 1924, a agora União Soviética (Leningrado9, mais precisamente) era o palco do II Congresso Pan-Russo de Psiconeurologia. De 1917 a 1923, foram suspensos os congressos usuais de psicologia e, com o fim da guerra civil, aos poucos as atividades acadêmicas podiam voltar ao normal.

Vigotski faria a sua “entrada” nos círculos acadêmicos da psicologia neste II Congresso, no qual estava instalada uma importante discussão sobre uma certa crise pela qual passava a psicologia soviética e, neste sentido, um confronto entre uma psicologia de tradição idealista e os novos enfoques objetivistas (Rivière, 1985).

Até 1923, a figura que dominara grande parte da psicologia soviética, estando inclusive à frente do Instituto de Psicologia de Moscou, era G. I. Chelpanov (1862-1936). Chelpanov era um legítimo representante da corrente espiritualista e idealista na psicologia; acreditava que a psicologia deveria, sim, estudar as leis da alma: a alma possuía entidade própria e era passível de ser estudada através da introspecção10 experimental. A ele já se opunham, há já algum tempo, investigações como a de Ivan Pavlov e a de Vitor Bekhterev, representantes da Escola de Psicologia Experimental de São Petesburgo que buscavam desenvolver, de uma

9 A cidade russa de São Petersburgo teve seu nome mudado, em 1914, para Petrogrado; no início da I Guerra

Mundial, o Czar Nicolau II teria julgado o nome antigo "muito alemão”. A partir de 1924, a cidade passou a se chamar Leningrado; e voltou a se chamar São Petesburgo em 1991, com o colapso da União Soviética.

10 A introspecção foi um método elaborado pelo fisiologista e psicólogo alemão Wilhelm Wundt (1832-1920), o

“pai” da psicologia científica. Wundt defendia a introspecção como um método experimental, o qual consistia em observação e análise sistemática dos próprios estados internos.

perspectiva objetivista, o programa fisiológico para a psicologia iniciado por I. M. Sechenov11 (1829-1905).

Desta forma, no I Congresso Pan-Russo, em 1923, instalar-se-ia a polêmica entre Chelpanov e um de seus discípulos, Konstantin N. Kornilov (1879-1957). Kornilov foi um dos primeiros psicólogos a buscar, com o auxílio da teoria marxista, resolver os impasses entre a psicologia idealista e objetivista/materialista russas. A sua conferência no I Congresso já atacava seu “mestre” utilizando, inclusive, expedientes retóricos para deixar claro que o idealismo na psicologia ia de encontro à ideologia social no novo regime soviético (van der Veer & Valsiner, 1996). Provavelmente em decorrência disso, em 1923, ele sucedeu Chelpanov na comando do Instituto de Psicologia de Moscou.

Este era o cenário em que Vigotski se fez notar dentro da psicologia pela primeira vez em 1924. Entretanto, devemos aqui combater um mito que durante alguns anos foi cultivado por estudiosos de Vigotski e que, felizmente, já foi denunciado pelos teóricos mais cuidadosos (van der Veer & Valsiner, 1996; Blanck, 2003). Quando dizemos que ele apareceu “pela primeira vez”, podemos estar cultivando a idéia de que Vigotski era um desconhecido e modesto professor de uma pequena cidade distante dos centros intelectuais da Rússia (agora URSS); e que talvez tenha sido bastante inesperada sua apresentação no Congresso de Psiconeurologia e ainda totalmente abrupta a sua entrada na psicologia.

Definitivamente, não podemos considerar abrupta a entrada de Vigotski na psicologia. Podemos dizer, ao invés, que, apesar de sua formação acadêmica adversa, o contato com a literatura e o teatro e também seu trabalho como professor fizeram o futuro psicólogo se

11 I. M. Sechenov é considerado o “pai” da fisiologia russa; Joravsky (1989) nos esclarece, sobre Sechenov, que

interessar por temas psicológicos. Nesta linha de argumentação, Blanck (2002) afirma que, interessado em resolver problemas da arte e da cultura, Vigotski foi sendo, aos poucos, atraído para o estudo da psicologia. Outro fator importante nos anos que precedem 1924 é o interesse por problemas pedagógicos. Questões como métodos de ensino de literatura e a educação de crianças surdas-mudas, cegas e com outros tipos de deficiências estavam na pauta do dia para nosso autor. Todas essas questões de pesquisa podem tê-lo impulsionado a montar seu laboratório de experimentos psicológicos ainda em Gomel, e podem tê-lo, também, levado às primeiras reflexões presentes na comunicação que apresentou, finalmente, no II Congresso de Psiconeurologia, em 1924.

Uma última reflexão interessante sobre essa “iniciação” na psicologia por Vigotski é feita por James Wertsch (1985). Wertsch extrapola a forma como este mito é desfeito argumentando que, talvez justamente porque não fosse psicólogo de formação, Vigotski tenha conseguido se aproximar dessa disciplina sem afetações e tenha conseguido pensá-la como parte de uma ciência social unificada. Do ponto-de-vista desse autor, no caso de Vigotski, não ser psicólogo fez toda a diferença. Finalmente, era improvável que Vigotski fosse alguém completamente desconhecido; afinal de contas, ele havia freqüentado duas universidades em Moscou e deve, durante os anos em que lá residiu, ter feito contatos e amizades significativas em meios acadêmicos; de alguma forma, não é inexplicável sua aparição neste Congresso.

Voltemos, agora, à situação da psicologia soviética nos anos vinte. A comunicação12 feita por Vigotski, “Os Métodos de Investigação Reflexológicos e Psicológicos” (1999aa), foi, isto podemos afirmar, decisiva na guinada que sua carreira acadêmica teve. Em sua conferência, o professor aspirante a psicólogo criticava as abordagens dos reflexólogos Pavlov e Bekhterev,

12 Vigotski apresentou, além desta, mais duas comunicações no congresso; ambas envolvendo questões

já aqui citados. A reflexologia admitia, naquela época, a existência de fenômenos subjetivos internos, mas negava a possibilidade de estudá-los cientificamente, já que todas as formas de comportamento (possíveis de estudo) seriam constituídas por reflexos condicionados. Usando os argumentos utilizados por Pavlov e Bekhterev, Vigotski declarou, em sua apresentação, a impossibilidade de tornar a reflexologia uma ciência independente: uma ciência que admitia a existência de estados propriamente subjetivos e que se recuse a estudá-los seria, no mínimo, uma ciência problemática. “Estudar o comportamento da pessoa sem a psique, como quer a reflexologia, é tão impossível quanto estudar a psique sem o comportamento” (1999aa, p. 26), declarou em sua polêmica palestra. Paralelo a essa crítica, o jovem Vigotski defendia a consciência como objeto de estudo da psicologia, e reivindicava uma nova metodologia para isto, que unificasse a ciência psicológica (esta proposta seria detalhadamente desenvolvida em seu artigo de 1926, “O Significado Histórico da Crise na Psicologia”).

Ainda que tivesse inconsistências, é certo que a ousadia das propostas do pouco conhecido professor chocou a audiência; mas o mais importante é que suas proposições pareciam se adequar justamente à visão de psicologia de Kornilov. Vigotski propunha como abordagem científica o estudo monístico e objetivo da mente consciente (van der Veer & Valsiner, 1996), visão da qual o atual diretor do Instituto partilhava.

Assim, o sucesso da apresentação lhe valeu um convite do próprio Kornilov (à época, diretor do Instituto de Psicologia) para trabalhar no Instituto de Psicologia de Moscou. Após casar-se com uma conterrânea sua, Roza Smekhova, Vigotski partiu para Moscou e lá se instalou, no final de 1924.

Aí começa a vida de Vigotski oficialmente como psicólogo. Também presente no Congresso de 1924, Alexander R. Luria, um dos principais parceiros de Vigotski, juntou-se a ele imediatamente após a chegada em Moscou. A. N. Leontiev foi o terceiro psicólogo a formar o que ficou conhecido como troika - o trio de brilhantes psicólogos soviéticos que trabalharam na elaboração da teoria histórico-cultural. Essa troika parece ser mais uma criação de nossos tempos do que dos anos de vinte e trinta do século passado; mais um mito que o esforço de biógrafos e teóricos da psicologia soviética vem, aos poucos, tentando desfazer. Não só os três psicólogos tiveram, ao longo da vida de Vigotski e posteriormente, discordâncias, quanto havia também outros pesquisadores trabalhando no projeto de uma nova psicologia unificada.