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Capítulo II. A teoria winnicottiana das psicoses

3. A psicose como organização defensiva

Dissemos que toda vez que o ambiente excede em demasia a capacidade do bebê de experimentar o mundo, ele o expõe a uma agonia impensável, que causa a interrupção de sua continuidade de ser: o bebê passa a ter de reagir contra a falha ambiental e, reagindo, perde a sensação de ser. O que se apresenta clinicamente na psicose é um padrão de vida fundado na reação às intrusões ambientais, ou dito de outro modo, um padrão defensivo de vida, que se distancia daquele núcleo do ser que se relaciona com o potencial criativo e com a tendência à integração. É a partir destes pressupostos que Winnicott desenvolve sua tese central que diz respeito à psicose. Segundo ele, a psicose não é um colapso em si mesmo, mas uma organização defensiva que visa evitar o retorno de uma situação de agonia impensável.

Num artigo escrito em 1954, tratando da questão da regressão no contexto analítico, Winnicott apresenta a concepção de que o bebê, desde que é exposto a falhas ambientais com características das agonias impensáveis, defende-se por meio do congelamento da situação da falha, mecanismo esse que envolve uma esperança inconsciente de que haja uma nova provisão ambiental que lhe forneça a oportunidade de experienciar aquilo que não foi possível

na ocasião da falha. Assim se estabelece a necessidade de uma regressão num contexto em que passe novamente a existir esperança:

A organização que torna a regressão produtiva tem essa característica que a distingue das outras, qual seja, a de trazer dentro de si a esperança por uma nova oportunidade de descongelar a situação congelada, e uma oportunidade também para o ambiente, no caso o ambiente atual, de realizar uma adaptação adequada ainda que tardia. (Winnicott, 1955d, p. 380 e 381)

Neste texto, Winnicott fala claramente da psicose como uma organização defensiva cujo objetivo é proteger o verdadeiro si-mesmo de uma nova intrusão ambiental, mas ainda trabalha com a hipótese de quadros clínicos dominados por um estado caótico de defesas, pelo colapso em si, questões que serão reexaminadas mais adiante em sua obra. No texto de 1959-1964, em que trabalha o tema do colapso das defesas, Winnicott introduz uma nota pós- escrita em que afirma: “O colapso que é temido já aconteceu. O que é reconhecido como a doença do paciente é um sistema de defesas organizadas contra esse colapso já ocorrido” (Winiccot, 1959-1964, p. 127).

Esta concepção aparece mais desenvolvida no texto “O medo do colapso”, de 1963. Neste, a concepção de colapso é reexaminada e Winnicott apresenta o conceito no seu sentido mais profundo, que não mais se reduz ao fracasso da organização defensiva:

Em geral, neste contexto, a palavra pode ser tomada como significando o fracasso de uma organização de defesa. Mas perguntamos de imediato: uma defesa contra o quê? E isto nos conduz ao significado mais profundo do termo, porque precisamos utilizar a palavra “colapso” para descrever o impensável estado de coisas subjacentes à organização defensiva. (Winnicott, 1974, p. 71)

Desta forma, Winnicott aproxima o colapso da experiência da agonia impensável, um estado de coisas que não pode ser abarcado pela experiência pessoal e que, exatamente por isto, exige uma estratégia defensiva. Conforme apresenta em 1965, a loucura é a experiência de uma agonia impensável que, paradoxalmente, não pode acontecer como experiência:

No caso mais simples possível, houve uma fração de segundo em que a ameaça da loucura foi experienciada, mas a ansiedade neste nível é impensável. Sua intensidade acha-se mais além da descrição e novas defesas organizam-se

imediatamente, de maneira que a loucura, de fato, não foi experienciada. Por outro lado, ela foi potencialmente um fato. (Winnicott, 1989vk, p. 100)

É neste sentido que Winnicott afirma que assim se estabelece uma “inversão do processo de amadurecimento do indivíduo” (Winnicott, 1974, p. 71). Em vez de o indivíduo estar sustentado pelo ambiente, no que diz respeito às suas distintas necessidades ao longo do tempo, o que opera é um fator extemporâneo, impossibilitado de integração no nível de uma experiência pessoal capaz de temporalização. Diz Winnicott: “Parece improvável que exista uma loucura que pertença ao presente” (Winnicott, 1989vk, p. 96), o que indica que esta é uma experiência da ordem do não delimitável em termos temporais. Tendo sido marcado por uma vivência desta natureza, como dissemos, há o estabelecimento de um padrão de vida fundado defensivamente, que envolve o indivíduo numa condição em que as experiências não dizem respeito ao si-mesmo, em que o mundo é sentido como irreal, em que não há lugar para a espontaneidade, restando apenas um sentimento de futilidade.

A defesa, portanto, interrompe a continuidade do ser que funda o amadurecimento. Ela consiste numa cisão (splitting) do si-mesmo em contraposição aos vários processos integrativos que constituem a continuidade do ser. Em texto de 1952, Winnicott descreve o processo de cisão como uma organização que visa proteger o si-mesmo verdadeiro, isolando- o do contato com o ambiente e construindo um falso si-mesmo que se mantém em contato com o ambiente, mas funcionando na base da submissão. Tendo interrompido o contato verdadeiro com o mundo, o amadurecimento fica paralisado.

A cisão ou splitting se diferencia do mecanismo de dissociação já que este último presume a possibilidade de comunicação com o si-mesmo verdadeiro, apesar da existência de frações do eu não integradas. Como aponta Dias (1998), cisões e dissociações se diferenciam sobretudo “em termos de graus de desconexão entre o si-mesmo escondido e os vários compartimentos, ou no sentido de quanto o si-mesmo central foi preservado do splitting” (Dias, 1998, p. 292 e 293). Cisão é, portanto, o termo utilizado por Winnicott para descrever aqueles processos defensivos cuja problemática subjacente é da ordem da psicose, e assim sendo, remonta a importantes aspectos teóricos relativos aos estados iniciais comuns a todo ser humano.

Segundo Winnicott (1988) o ser humano possui, na raiz, um problema filosófico que consiste na conquista da separação e na manutenção da inter-relação entre o mundo subjetivo e o mundo objetivamente percebido. Aqui, como discutimos no Capítulo 1, a ilusão e o potencial criativo cumprem sua função primordial que é a de manutenção da sensação pessoal

da realidade da experiência e o do objeto. Ainda que, tendo sido completadas algumas etapas do amadurecimento, o indivíduo seja capaz de compreender intelectualmente que a existência do mundo é anterior à sua própria, esta sensação de conexão com o mundo, na saúde, nunca desaparece. No entanto, como ponto de origem, há sempre uma cisão essencial sob a qual se assenta o processo de amadurecimento:

A cisão é um estado essencial em todo ser humano, mas não é necessário que ele se torne significativo se a camada protetora da ilusão se tornou possível pelo cuidado materno. (Winnicott, 1988, p. 158)

Desta forma, a cisão não pode ser entendida como um estado patológico em si-mesmo. Na saúde, como dissemos, ela fundamenta todo o processo de amadurecimento. Aquilo que pode ser reconhecido como uma entidade patológica é sempre uma organização defensiva que remonta ao momento do amadurecimento cuja falha ambiental tornou-se significativa na vida do indivíduo. Sob este aspecto, a psicose mantém-se sempre em contato com os processos mais fundamentais da existência humana, indicando uma relação estreita com a saúde, ainda que possa também ser reconhecida como entidade patológica. Discutiremos o tema a seguir.