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A PSIQUIATRIA E O DSM: O PARADIGMA DOMINANTE NA ATUALIDADE E SUAS DEFINIÇÕES

CAPÍTULO 1 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ESTADOS DEPRESSIVOS DA

1.5 A PSIQUIATRIA E O DSM: O PARADIGMA DOMINANTE NA ATUALIDADE E SUAS DEFINIÇÕES

Tendo se deparado com dados epidemiológicos alarmantes a respeito da depressão, surge a questão de saber os reais motivos de sua disseminação. Essa questão pode ser abordada investigando-se a origem destes dados e a definição vigente sobre o que é considerado depressão. Esses dois aspectos estão intimamente ligados, pois é preciso haver um consenso entre o que se considera depressão para que, em seguida, sejam realizados

diagnósticos que correspondam entre si, passíveis de serem agrupados e comparados para fins estatísticos, epidemiológicos, científicos, etc.

Há muito tempo o diagnóstico e a definição dos estados depressivos são cercados de dificuldades, debates e desacordos, e isso permanece até a atualidade, tanto para os clínicos – psiquiatras, psicoterapeutas, psicanalistas – como para os pesquisadores que procuram a forma mais adequada de sua classificação nosográfica. Atualmente, os estudos epidemiológicos costumam se basear em uma referência diagnóstica única e hegemônica, o DSM (Manual de Diagnósticos e Estatísticas de Distúrbios Mentais da Associação Americana de Psiquiatria), para avaliar o prejuízo da depressão no funcionamento do indivíduo, assim como fundamentar as decisões políticas em saúde mental, ou seja, o acesso ao atendimento médico e à frequência de utilização dos serviços de saúde (BRANCO & cols., 2009).

A psiquiatria atual é a referência hegemônica no tocante ao campo dos estados depressivos – e das desordens mentais em geral –, e também se baseia nos critérios definidos e acordados pelo DSM para realizar pesquisas, diagnósticos e tratamentos. O DSM, que se encontra em sua quarta edição revisada, já estando a sua quinta em preparo, serve ainda como suporte para as pesquisas em áreas da saúde e afins, para as pesquisas sobre os resultados de tratamentos, para a comercialização de antidepressivos, para os programas de prevenção e conscientização, para as decisões judiciais, entre outros. Diante do fato de que a psiquiatria ocupa o lugar de referência científica, política e social na atualidade, é quase impossível realizar uma pesquisa no campo dos estados depressivos sem recorrer ou se referir às suas definições em algum momento. Quase todos os profissionais da saúde mental recorrem ao DSM e às suas definições para estabelecer um diagnóstico formal. Em suma, as definições do DSM30 se tornaram, em nossa sociedade, o critério para decidir o que deve ou não ser considerado como um transtorno mental (WAKEFIELD & HORWITZ, 2007).

Até meados dos anos 1970, a psiquiatria baseava-se em um modelo binário de classificação dos transtornos depressivos, que enfatizava uma dicotomia entre endógeno-

30 Destacamos ainda outro manual de referência muito adotado, que é o CID-10 (Classificação Estatística

Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, frequentemente designada pela sigla CID; em inglês: International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems). Nele, os estados depressivos estão definidos dentro de uma grande classe denominada Transtornos do humor ou afetivos, e incluem as seguintes subclasses: episódio maníaco, hipomania, transtorno afetivo bipolar, episódios depressivos, transtorno depressivo recorrente, transtornos de humor [afetivos] persistentes, ciclotimia, distimia, outros transtornos do humor [afetivos] e transtorno do humor [afetivo] não especificado. Em nosso trabalho, optamos por abordar, a título de ilustração, somente o DSM-IV. A escolha se justifica pelo número superior de pesquisas que o adotam como referência.

psicótico e reativo-neurótico e acentuava, respectivamente, a importância de determinantes biológicos ou psicossociais. As diferentes classificações tinham como base

descrições prototípicas de doenças psiquiátricas com etiologias presumidas, mas desconhecidas, com limites definidos pelas condições clínicas e pela baixa confiabilidade, constituindo-se em um grande obstáculo para o desenvolvimento de pesquisas em psiquiatria clínica” (BRANCO & cols., 2009, p.14).

Entre as razões de seu abandono, encontra-se a ausência de um embasamento empírico sólido e de um modelo categórico amplamente aceito pela comunidade científica.

Em 1980, com o surgimento do DSM-III, ocorre uma significativa mudança paradigmática no meio psiquiátrico, através da consolidação de um novo sistema sindrômico e classificatório, que exclui a preocupação com a etiologia presumida e abandona o modelo binário com ênfase nos transtornos de tipo reativo ou endógeno. O DSM-III abre a oportunidade para se criar um novo sistema diagnóstico e tornar a psiquiatria mais científica e parte legítima da medicina (BIRMAN, 2001; WAKEFIELD & HORWITZ, 2007). Segundo Branco & cols. (2009), o surgimento das classificações diagnósticas introduzidas pelo DSM- III marca a adoção de critérios operacionais para diagnósticos categóricos – o diagnóstico depende da presença de um número mínimo dentre os sintomas listados e avalia a gravidade do quadro clínico – e resultam em avanços significativos no domínio psiquiátrico em quatro pontos: (1) a concordância e uniformidade diagnóstica entre profissionais, (2) critérios mais precisos, que se tornaram a norma para o desenvolvimento de pesquisas, (3) treinamento baseado em uma referência internacional comum e (4) acesso público a definições diagnósticas, facilitando a comunicação entre os pacientes, os familiares e a sociedade em geral. Contudo, mesmo diante de tais avanços, o sistema atual imposto pelo DSM não está livre de críticas e problemas, como veremos mais adiante.

De maneira geral, a psiquiatria atual compreende a depressão como resultado de uma insuficiência orgânica e biológica, sendo esta em muitos casos considerada como de origem inata. As diretrizes que orientam sua estratégia terapêutica são a observação, a descrição de síndromes e a enumeração de sintomas. O principal tratamento oferecido é a terapêutica farmacológica, que também pode ser chamada de terapêutica psicobiológica, por meio da administração de antidepressivos, com foco nos neurotransmissores (PERES, 2003). Os antidepressivos atuais agem na sinapse celular, e espera-se que sua futura geração deva atuar no interior da célula (DEL PORTO, 2002, p.47). De acordo com essa abordagem, a causa de um transtorno depressivo é atribuída essencialmente a uma disfunção neuroquímica, que deve

ser corrigida pela ação dos psicofármacos. No entanto, não se conhece de fato a causa dessa disfunção que estaria na base da depressão.

Na perspectiva do DSM-IV e do CID-10, os estados depressivos, com seus inúmeros subtipos, situam-se sob as modernas classes de transtornos de humor. A depressão pode manifestar-se como um transtorno mais grave – a “depressão maior” – ou mais brando – a “distimia”. Os transtornos bipolares – a antiga psicose maníaco-depressiva – são incluídos nos capítulos sobre os transtornos de humor e afetivos, e se referem à “depressão-mania”, e não mais à “melancolia-mania”, como se fazia no passado. A desordem bipolar pode apresentar-se de maneira mais suave, recebendo o nome de “ciclotimia”. O termo “melancolia”, por sua vez, aparece como uma subclasse da depressão, sendo utilizado para designar características que abarcam os sintomas vegetativos – alterações do sono e do apetite – e as alterações psicomotoras e de ritmos cardíacos. O que atualmente é designado por melancolia, dentro desse quadro de referência, é o que outrora se designou por características endógenas (DEL PORTO, 2000).

Consideremos por um instante, a título de ilustração, a definição proposta pelo DSM para o diagnóstico do Transtorno Depressivo Maior, o mais comumente utilizado. Segundo esse Manual, que orienta os diagnósticos nos consultórios, na saúde pública ou privada, quem apresentar cinco entre os nove sintomas descritos abaixo por mais de duas semanas está sofrendo de uma Desordem ou Transtorno Depressivo Maior (lembrando que entre os cinco sintomas devem obrigatoriamente constar o humor depressivo ou a diminuição acentuada de interesse e prazer):

1. Humor depressivo durante a maior parte do dia, praticamente todos os dias, segundo informação subjetiva do paciente ou observação de outros;

2. A diminuição do interesse ou do prazer nas atividades durante a maior parte do dia, praticamente todos os dias;

3. A perda ou ganho de peso ou modificações de apetite, sem dieta (mudança de mais de 5% do peso corporal em um mês);

4. Insônia ou sono excessivo praticamente todos os dias;

5. Agitação ou lentidão psicomotora praticamente todos os dias, observáveis pelos outros;

6. Cansaço ou perda de energia praticamente todos os dias;

7. Sentimentos excessivos ou inapropriados de desvalorização ou culpabilidade praticamente todos os dias;

8. A diminuição da aptidão para pensar ou se concentrar e indecisão, praticamente todos os dias;

9. Pensamentos de morte recorrentes (e não apenas medo de morrer), ideias ou tentativa de suicídio recorrente sem um plano específico, ou plano específico para cometer suicídio.

É importante, ainda, segundo os critérios diagnósticos, que esses sintomas não sejam atribuídos a um luto após a perda de um ente querido, a não ser que este luto exceda mais de dois meses, ou que ele seja acompanhado de sintomas graves como delírios, pensamentos suicidas, retardação psicomotora ou preocupação doentia com inutilidade. Embora a depressão não tenha uma apresentação clínica unívoca, o humor deprimido e a perda de interesse são os únicos critérios presentes em todos os casos dentro desse quadro diagnóstico. Assim, tais sintomas são referências para que se identifique a depressão e direcione seu tratamento e para as pesquisas realizadas sobre o tema.