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4. Aspectos próprios e complementares de Suicidas, de Raphael Montes, e de Oeste, de Alexandre

4.1. O pulp em Suicidas

Desde o início de sua carreira, Raphael Montes se coloca como um autor do gênero policial, no entanto seus romances até agora publicados não seguem a estrutura clássica do gênero. Nenhum de seus livros possui, por exemplo, um detetive como protagonista. Na verdade, a figura detetivesca não recebe muita atenção por parte do autor, podendo ser por isso mais identificado na verdade como um autor de literatura criminal. Em Suicidas, a delegada Diana é uma personagem bastante secundária que aparece apenas tentando conduzir uma discussão entre as mães dos jovens encontrados mortos, a fim de que se chegue a alguma nova conclusão ou suspeito. Em Dias perfeitos, seu segundo romance, o investigador surge praticamente já ao final da história sem nem mesmo participar de forma crucial para o desfecho do romance. Por fim, em Jantar Secreto, o terceiro romance, a figura detetivesca é praticamente deixada de lado e a polícia é um elemento pouco participativo da trama.

Especificamente em Suicidas, a narrativa é organizada em três partes que se interpõem: as anotações do personagem Alessandro, os diálogos da delegada Diana com as mães dos nove jovens encontrados mortos e o relato feito por Alessandro sobre o episódio em si e que ele pretendia transformar em livro. Nessa última parte, porém, encontramos um narrador não confiável, pois Alessandro, que revela desejar ser um escritor de sucesso, constrói um relato duvidoso sobre o jogo de roleta-russa que teria protagonizado com seus colegas. Dessa forma, seu relato perde a verossimilhança ao relatar tamanha violência de modo impassível e muitas vezes quase teatralizado, como se os demais personagens agissem sempre conforme sua vontade. Ao escrever sobre uma situação-limite, a roleta-russa, Alessandro possui uma intenção prévia, qual seja, a de elaborar um livro que se torne best-seller, de modo que o seu relato, justamente por essa sua intenção, perde a credibilidade, deixando o leitor diante de um narrador no qual não pode confiar, conforme observamos no trecho a seguir:

Nem mesmo eu sei se estou certo. Não sei se vale a pena estar aqui, vivendo esta loucura, narrando cada instante, obcecado, vendo seres humanos definharem diante da morte, rendendo-se ao instinto. Tudo isso para quê? Para ser lido num país onde metade da população é analfabeta. Para realizar um sonho que desde cedo me disseram ser utópico, irreal, coisa de louco. Pois eu sou louco. (Montes, 2017, p. 148)

Essa estrutura narrativa, todavia, é interessante na medida em que joga com a ideia de que o que se tem não é a verdade, mas apenas uma versão dela, algo que remete a “Calibre 22”, além de

também dialogar, de modo mais geral, com um dos princípios basilares da obra policial de Rubem Fonseca e de uma certa literatura policial contemporânea. Além disso, destaca-se a forma com que a violência e o medo, entre aqueles jovens, cresce gradativamente até serem eles encontrados mortos de modo brutal num ambiente fechado que parece pretender simbolizar certo ensimesmamento da elite retratada.

O romance inicia-se um ano depois da morte de nove jovens cariocas no porão de uma casa de campo em Minas Gerais, o que teria se dado exatamente durante a prática de uma roleta- russa. Conforme dissemos, a delegada Diana Guimarães, responsável pela investigação do caso, reúne as mães dos jovens mortos para, à luz do relato escrito durante o ocorrido por um dos participantes, Alessandro, discutir o caso em busca de novas conclusões e também em busca de um novo suspeito que possa ter colaborado com os crimes. Nessa reunião, a delegada faz a leitura desse diário, expondo como as mortes, segundo o tal relato, ocorreram e os porquês de os corpos terem sido encontrados barbarizados. Encontramos, então, aquilo que de fato se aproxima mais do gênero policial: a existência de uma delegada e de uma investigação. Contudo, cabe ressaltar que, nessa parte da história, o que temos são os diálogos transcritos e não exatamente uma narrativa. Na narração propriamente dita, é a voz de Alessandro que nos é apresentada.

Além disso, apesar de o crime fatal ocorrer numa casa de campo em Minas Gerais, o romance de Raphael Montes tem como base o Rio de Janeiro e, especialmente, sua parte mais nobre. É justamente num apartamento de frente para a praia de Ipanema (portanto, um local da mais alta elite carioca) em que se desenrola a maior parte dos eventos anteriores à ida dos jovens para a casa de campo. Trata-se, dessa forma, de um romance que recorta uma determinada classe social e que se mostra bem mais alheio aos problemas sociais da cidade do que os outros romances estudados neste trabalho, principalmente em relação a Inferno, porque, no caso de Suicidas, as ações se dão de maneira estanque ao que ocorre fora da dinâmica estabelecida entre aqueles jovens. Suicidas deixa um pouco de lado a ideia de funcionar como um estudo da cidade para se fixar mais especificamente na compreensão da psicologia daqueles jovens, que, no entanto, ao pertencerem a uma elite, reproduzem características gerais desse segmento.

Assim, embora seja um romance urbano cujo cerne é o Rio de Janeiro, a obra fica, em alguma medida, afastada das questões mais preeminentes da cidade, funcionando quase que exclusivamente em função das questões individuais daqueles jovens, o que, entretanto, não o descola totalmente da ideia do ‘choque do real’ na medida em que há uma busca do autor em provocar no leitor um efeito de espanto, sobretudo por meio da representação da violência extrema entre os nove jovens, numa escrita que poderíamos classificar como pulp, no sentido indicado por Beatriz Resende, relacionando os fenômenos literários aos audiovisuais, isto é “pulp no sentido em que o cinema Tarantino é pulp. O volume de sangue circulando é de similar nível [ao nível dos

filmes de Tarantino]” (Resende, 2008, p. 98)21. Suicidas, ainda que se trate justamente de um

romance mais psicológico e fechado ao exterior, condensa no pulp o isolamento das elites a que nos referimos anteriormente, criando, assim, um contexto de medo e de violência dentro de um círculo fechado.

O medo, ademais, cabe ressaltar, é ponto central desse romance em que os personagens, ainda que se digam amigos, agem o tempo todo uns temerosamente em relação aos outros. Dessa maneira, em cada personagem, podemos identificar uma manifestação do medo. O personagem Getúlio teme perder a riqueza por inépcia e imaturidade do filho. Zak teme que descubram sua verdadeira sexualidade. Otto teme não viver seu amor com Zak. Neto teme permanecer desprezado por Ritinha. Maria João teme não ter dinheiro na vida adulta. Débora teme morrer de câncer. Alessandro teme não realizar o desejo de se tornar um grande escritor e assim por diante.

Nessa ciranda em que o medo é a força motriz, é ainda interessante perceber a estratégia usada para construir a dinâmica durante o jogo da roleta-russa. Nesse momento, Zak concentra as atenções e é responsável por vários dos disparos fatais. Assim, segundo o que é relatado, não teria havido um jogo de sorte ou azar, mas sim assassinatos. Zak, aliás, é um personagem que representa muito bem a dinâmica de conflitos e medos a que nos referimos. Inicialmente, ele é identificado como heterossexual e tendo relações sexuais com personagens femininas, inclusive mediante estupro. Porém, ele também manterá relações sexuais com um personagem masculino, Otto, que se identifica como homossexual desde o início do livro. Essa sexualidade colocada em xeque de Zak é motivo de tensões extremas que culminam até mesmo na morte de Otto. A sexualidade de Zak passa a ser diversas vezes confrontada, gerando conflitos, desconfianças, ameaças e violência.

A estratégia utilizada em Suicidas consiste, portanto, em catalisar os diversos medos, aumentando a sensação de suspense à medida que as mortes avançam. Ao passo que, na delegacia, é feita pela delegada Diana às mães a leitura do diário em que se narram os acontecimentos, as tensões, divergências e discussões contribuem para que ocorra uma vetorização das suspeitas em direção ao personagem Zak. É bem verdade que se aventam outras hipóteses, de modo que, por vezes, o leitor, assim como as mães, tenha a percepção de que qualquer um dos participantes da roleta-russa, ou mesmo um personagem externo a ela, possa ter uma participação mais decisiva nas mortes.

Também é interessante notar que, embora se trate inicialmente de uma roleta-russa, onde se espera que, se for o caso, cada qual seja responsável pela sua própria morte, conforme é lido o relato, somos conduzidos à necessidade de identificar um criminoso principal que teria de algum modo levado os demais à morte. É, no entanto, tão somente no final do livro que somos

21 Essa mesma ideia é utilizada também por Barberena, que, também ao analisar Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, de Ana Paula Maia, diz que “esse folhetim pulp apresenta a brutalidade abjeta de um cotidiano cruel e sujo que não suporta espaços de lirismo e redenção” (Berberena, 2016, p. 460).

apresentados a ele, dentro da estratégia utilizada pelo autor para tentar criar um desfecho surpreendente. Através de uma troca de cartas entre uma das mães, Débora, e seu filho, Alessandro, descobrimos que este personagem não morreu durante a roleta russa nem no incêndio que se seguiu a ela; na verdade, todo o crime foi planejado por ele, que está vivo. Um ano depois do ocorrido, ele relata à mãe como fez para que tudo se desencadeasse a fim de atingir o seu maior objetivo que era publicar um romance sobre a história da roleta russa, assinando-o, porém, com um pseudônimo, justamente Raphael Montes, fundindo, assim, na ficção o nome do autor real do livro ao nome do personagem que narra os acontecimentos.