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3.2 – PURISMO LINGÜÍSTICO E IDENTIDADE NACIONAL NO BRASIL DA VIRADA DO SÉCULO

Como se observou em 3.1, a discussão sobre a língua que deveria ser valorizada no Brasil (a portuguesa do Brasil ou a portuguesa de Portugal) configurou-se como tópico essencial no processo de constituição da nacionalidade brasileira. De acordo com Luca (1999), em detrimento dessa nacionalidade, havia o triunfo da língua do conquistador, que era o idioma ensinado nas escolas, utilizado nos assuntos do Estado, exigido dos funcionários do poder, grafado nos logradouros públicos, estampado nos jornais. Isso tendia a fazer coincidir os limites políticos com os lingüísticos, uma vez que tal uso implicitamente difundia valores, tradições, aspirações e ideais que deveriam ser compartilhados por todos os falantes/cidadãos.

Por outro termo, a luta por uma identidade realmente brasileira acirrava-se na transição entre os séculos XIX e XX e, obviamente, transpunha-se para um uso lingüístico que representasse o Brasil, uma vez que a língua constitui um importante fator de coesão nacional.

De acordo Amadeu Amaral (1921) citado por Luca (1999):

a língua é a manifestação mais extensa e mais profunda da alma multiforme da nacionalidade, porque obra anônima, coletiva e inconsciente de inumeráveis gerações... Esse caráter de formação coletiva, obra de todos para o uso de todos, na qual todos colaboram e da qual ninguém é autor, implica necessariamente um liame em que se entrelaçam todos os indivíduos de uma nação, desde os mais altos até os mais humildes. O linguajar do analfabeto mais bronco, tão distanciado da prosa repolida e rebrilhante de um Rui Barbosa, é essencialmente a mesma coisa que ela. Com esse mesmo instrumento, o homem douto e o ignorante podem entender-se um com o outro à vontade. Essa constante troca é possível porque há um fundo psicológico nacional; mas essa própria psicologia nacional é ainda um produto da língua.

Os puristas ortodoxos, entretanto, desde o início do século XIX, defendiam uma língua vernácula, vinda de Portugal. Havia, assim, duas correntes que se opunham em relação ao idioma falado no Brasil:

de um lado, os puristas ou legitimistas, defensores da aplicação estrita dos cânones gramaticais e avessos a tudo o que se afastasse da língua culta; e de outro, aqueles que, enfatizando o distanciamento – em termos dialetais ou separatistas – do português da América, combatiam o apego ao formalismo e academicismo, advogando a legitimidade dos brasileiros e das construções populares. (Luca,1999:243 e 244).

Entre os puristas legitimistas, estava o parnasiano Olavo Bilac, conceituado crítico da corrupção do idioma. Apesar de defender o purismo ou a unidade lingüística entre Brasil e Portugal, o poeta não se considerava um purista extremado, pois acreditava na necessidade política de se preservar e proteger o português, ameaçado pelos imigrantes que afluíam ao país. Para Bilac, preservar o português significava protegê-lo e livrá-lo dos efeitos perturbadores provocados pela presença de estrangeiros no corpo da nação. Para proteger o país, em sua opinião, primeiramente era necessário defender a língua.

A morte de uma nação começa pelo apodrecimento de sua língua. (...)

Ora sabeis que o futuro do Brasil depende da importação de homens estranhos ao país, que venham amá-lo e servi-lo. Todas as sobras, toda a pletora da população da Europa, todos os homens sem trabalho e sem ventura, que se acogulam no âmbito já escasso do velho mundo podem achar aqui espaço e felicidade. Mas cada uma dessas levas de imigrantes traz consigo, como a mais preciosa bagagem, sua língua natal, os seus deuses lares, porque traz com ela os versos dos seus poetas, as suas expressões de carinho ou de ira, a letra das suas canções populares, o seu “folk lore” que é o repositório do seu lirismo e da sua saudade, e o amor do céu, da terra, das águas, da família, da religião, da história... Assim os idiomas estranhos tendem a fixar-se, a desenvolver-se, a prosperar no seio da nossa terra. Que será do nosso idioma, se o não protegermos, na luta desigual? 11

Do outro lado, havia o grupo que considerava um absurdo o fato de o Brasil ainda dever compromisso lingüístico a Portugal.Considerava que a auto-afirmação da nação brasileira deveria passar pela negação da herança portuguesa.

Em outras palavras, Portugal não poderia continuar ditando as regras do campo intelectual. Os separatistas defendiam que existisse uma língua definitivamente brasileira. Entre eles, entretanto, havia um grupo que, apesar de a quererem, afirmava a necessidade do direito à diversidade.

A defesa da língua, num termo ou noutro, obviamente possuía uma conotação política. Nesse sentido, ascendia um discurso que pretendia ressaltar as dimensões gigantescas do Brasil em relação à extensão do território, à população que ele poderia abrigar e às potencialidades econômicas.

Tudo isso em busca de demonstrar que a posse de uma língua própria, capaz de dar vazão à expressividade nativa, desempenhava papel estratégico e deveria ser encarada como sinal de afirmação racial. Em outras palavras, ressaltava-se a importância da afirmação da identidade brasileira para o crescimento político da nação.

A aceitação desse caminho peculiar tomado pelo português do Brasil, dotado de ritmo, cadência, pronúncia e regras de sintaxe próprias, inauguraria uma nova fronteira lingüística e delimitaria o território do nosso idioma em oposição ao português falado na Europa. Tal diferenciação daria ao brasileiro o direito a um sentir próprio, diferenciado, ou seja, à expressão de sua brasilidade, o que ficaria claro na linguagem literária. Por isso afirma-se que

a literatura, força criadora capaz de instituir mitos de origem, determinar relações com o passado e apresentar-se como guardiã da memória nacional, foi tomada como padrão adequado para indicar o quanto já nos havíamos distanciado de Portugal e para justificar as aspirações a uma língua nossa, entendendo-se por isso quer a separação absoluta, quer o direito a uma utilização livre de tutelas, comprometida apenas com os ditames locais. (Luca, 1999:257)