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CAPÍTULO I – REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

3.2 Qual a Mística da PJMP

Em um subsídio criado pela Assessoria Regional NE II da PJMP em 1992, o padre Antônio Murilo, assessor regional, faz esta inquietante pergunta: “Qual a mística da PJMP?” Esse subsídio tinha por objetivo trazer a discussão sobre a mística da Pastoral no meio jovem, a partir dos grupos populares, através de textos de dois grandes teólogos e estudiosos dessa temática, a Irmã Ivone Gebara e Frei Betto.

As discussões sobre mística dentro da Pastoral eram frequentes; quer nas reuniões, quer nas assembleias e encontros formativos a questão era ponto de pauta, pois tentava-se explicá-la, compreendê-la. No entanto, bem cedo a Pastoral percebeu algo óbvio, porque simples, “mística não se explica, se vivencia”, como disse Nena.

Assim, a mística da PJMP foi se configurando a partir dessa vivência do próprio jovem do meio popular, que buscava definir sua identidade junto à Pastoral, e ao mesmo tempo configurar esse “rosto” jovem que caracterizaria a PJMP em sua caminhada.

Padre Murilo provoca:

Qual a mística da PJMP? Mística de luta? Mística do enfrentamento do conflito? Mística da alegria? Mística do homem novo e da mulher nova?

Mística da ternura? Mística do ser „fermento na massa‟? Mística dos empobrecidos? Mística dos dominados? Afinal de contas, qual é a nossa mística? (PJMP..., 1992, p. 1).

A mística da PJMP pode ser um pouco de tudo isso, ou muito mais. Ela parece se coadunar mais com aquele sopro de ânimo vindo daqueles e daquelas que têm muita paixão pelo ideal de vida que acreditaram e escolheram para defender.

O que faz um(a) jovem doar seu tempo precioso, seus finais de semana, para participar de reuniões muitas vezes cansativas, cujos objetivos eram pensar em como transformar uma sociedade injusta em uma sociedade mais humana e fraterna? O que animava essa juventude a continuar nessa luta, muitas vezes enfrentando incompreensões, barreiras materiais e desgastes emocionais quando nem sempre havia frutos a colher? A resposta, segundo aqueles e aquelas que fizeram parte da PJMP, é a experiência única da mística vivenciada dentro da Pastoral. Só ela poderia ser a resposta a essas questões que fogem à razão.

Num determinado encontro Intereclesial, realizado no Centro de Treinamento de Miramar (Centremar), local de encontros e formação ligado à Arquidiocese, a Irmã Agostinha, assessora e coordenadora do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), teóloga que assessorava grupos de CEBs e pastorais populares da Arquidiocese, contou à assembleia a história de dona Maria, uma líder de comunidade de base, idosa, que há muito participava da vida da Igreja junto a seu povo, e lhe fez a seguinte pergunta: “– Dona Maria, o que faz a senhora percorrer esse chão, visitando tanta gente, participar de reuniões sem fim, cuidar dos companheiros e companheiras e se doar tanto por tanto tempo, e ainda ser feliz? De onde a senhora tira tanta força?”

Dona Maria sorri, e em sua simplicidade, responde rápido: “– É um bem querer quente que não me faz virar din-din!” Irmã Agostinha ficou extasiada de tanta emoção; nunca tinha ouvido algo tão transcendente, tão místico, dito por alguém do povo, que como ninguém compreendia e vivia a grandeza dos sentimentos humanos em sua plenitude.

As palavras de dona Maria, por virem do seu mais íntimo, representam a essência de sua mística, de seu amor pelo outro, por um “acreditar-se no mundo”. Surian et al (1996, p. 64) tratam disso e falam sobre a essência da pessoa mística, como dona Maria:

O místico é uma pessoa inteira, autêntica, plena, integrada, que trabalha em si todas as dimensões humanas. Por isso é sábia, vigorosa, lutadora incansável. Pensa a vida a partir da globalidade. Vive na Terra mas já não pertence mais só à Terra. Toca o céu. Por isso, seu testemunho é incomparável.

Talvez essa mística sentida por dona Maria explique o que faz o jovem do meio popular, presente na PJMP, enfrentar todos os obstáculos e desafios nessa “luta incansável” na busca da construção de um mundo melhor.

Para o militante da PJMP, sua mística era revolucionária, vivida a partir da Igreja renovada de Medellín e Puebla, comprometida com a causa do jovem empobrecido, e alicerçada na Teologia da Libertação; uma mística militante, mas antes de tudo cristã, pois a luta era alimentada pelo evangelho libertador de Jesus Cristo, em quem o jovem se espelhava para continuar na luta. Nena comenta como ela vê essa mística:

Eu acho que a mística da PJMP era a mística da igreja de Puebla, era a mística de d. Oscar Romero, de d. Pedro Casaldáliga, né, acho que era essa mística, que hoje a gente fica dizendo que não teve, e aí eu me sinto muito triste com algumas coisas que se passaram naquele período, a gente pode negar a estrutura, mas não dá pra negar essas pessoas que são Igreja, que tinham uma missão. Quando eu digo que sou cristã, eu penso nessas pessoas, e dizer hoje que eu não sou e negar esse momento na minha vida, pra mim é negar essas pessoas. É tanto, que dia 24 de março foi 29 anos da morte de Oscar Romero. Eu recebi, tava lendo uma mensagem na internet, em que assim... muito forte o que Oscar Romero fez, né. O que é a Igreja? É a Igreja essa coisa encarnada, é a igreja que está do lado dos empobrecidos, essa é a igreja cristã, essa é a igreja de Cristo. Então, eu acho que era essa a mística da PJMP, de tá encarnada no meio do povo. É isso. A gente conseguir ver Jesus Cristo, não piedoso – piedoso no sentido de pieguice – mas de a gente conseguir ver Jesus Cristo no rosto do empobrecido. Mas no sentido de tentar mudar, na possibilidade da mudança, de que todo mundo pode ter uma outra vida, pode ter uma outra perspectiva. Não sei se consegui explicar, porque mística não se explica, se vivencia. (NENA, 2009)

A mística da PJMP sentida por Nena é uma mística forjada a partir das experiências de uma igreja renovada, uma igreja que tem em seus símbolos de luta, mártires, pessoas que doaram suas vidas a serviço de um ideal maior de vida, baseados em Jesus Cristo, mas também em gente comum, gente anônima, homens, mulheres, jovens, Marias. Essa igreja que renasce, “que está do lado dos empobrecidos”, como disse Nena, é a “Igreja encarnada no meio do povo”.

Essa mística militante cristã era alimentada não só pela paixão pela luta, mas diariamente no exercício da espiritualidade. Os momentos de oração em grupo, na base ou nas demais instâncias da PJMP, nos encontros, congressos, assembléias, ou simplesmente em reuniões dos grupos de jovens, eram sempre precedidos por momentos de oração, de reflexão da Palavra, carregados de muito simbolismo. Diferente dos grupos espiritualistas da Igreja,

como os carismáticos, bastante criticados pela “falta de ação” social, por pensarem exclusivamente num Deus distante e impessoal, a PJMP exercia o que padre Murilo chama de “espiritualidade do conflito”. “É uma espiritualidade que compreende o que faz. Não é algo alienado, mas ao contrário, é encarnada dentro da realidade, dentro desse mundo de conflito”. (PAIVA, 1986, p. 4)

Para o padre Murilo, essa espiritualidade deveria estar inserida na luta diária no tempo presente, pois a mudança para uma sociedade melhor, mais solidária, viria a partir da união da fé inserida na vida do ser humano. Mas não era algo fácil. Murilo reconhece que isso geraria conflitos sociais e pessoais.

É preciso partir do ponto de vista do mundo em que estamos metidos, da época, das relações sociais entre as pessoas. Hoje, a sociedade que aí está é profundamente conflitiva. A nossa espiritualidade deve passar por tudo isso. DEVE SER, PORTANTO, UMA ESPIRITUALIDADE DO CONFLITO, UMA ESPIRITUALIDADE A PARTIR DO CONFLITO.

É uma Espiritualidade que vai alimentar a todos nós dentro da luta, da organização dos Jovens do Meio Popular. ESPIRITUALIDADE ESTA, QUE DEVE NOS SUSTENTAR E FAZER O PEQUENO ACREDITAR NO OUTRO, TAMBÉM PEQUENO: no trabalhador, estudante, agricultor, desempregado, biscateiro, no negro marginalizado, na mulher explorada pelo machismo dos homens e das mulheres. Não é mais uma espiritualidade parada. É algo que acontece dentro daquilo que fazemos, sentimos, curtimos, sofremos, etc. (PAIVA, 1986, p. 4. Grifos do autor)

Para os militantes da PJMP, “abraçar” essa espiritualidade do conflito deveria ser uma opção consciente, pois traria embates, já que integravam uma luta pela libertação do jovem oprimido. “Este projeto se resume em levar os homens a uma libertação integral, pessoal e social, através da construção do Reino de Deus, que passa necessariamente pela construção de uma sociedade igualitária e fraterna onde não haja explorados nem exploradores”. (PJMP..., 1988, p. 39).

Para o jovem cristão do meio popular havia dois caminhos para o encontro com Deus, o chamado “caminho do seguimento” e o “caminho da mística”. O primeiro referia-se ao caminho de Jesus, comprometido com a causa dos oprimidos, dos mais pobres, marginalizados, numa prática política libertadora. O segundo, o caminho da mística, possibilita a unidade, que é fonte de alimentação dos sonhos dos jovens do meio popular. (ROMARIA, 1993).

Para essa vivência, o jovem da PJMP vive sua mística reforçando-a no dia-a-dia, através dos símbolos da caminhadas que lhes são caros e cheios de representatividade. Neles, a subjetividade dessa paixão juvenil se transfigura e tomava corpo. Assim, numa reunião do

grupo de jovem tinha sempre no centro, dentro de um círculo, a Bíblia, representando a Palavra, o Evangelho libertador; a vela, a luz que ilumina o caminho; e dependendo da ocasião, terra; água; camiseta; sandálias; carteira de trabalho vazia; e o que mais fosse representativo para o jovem. As celebrações eram festivas, do jeito do jovem. Douraci lembra de como eram:

E nós tínhamos, por exemplo, o mês da Bíblia, o mês de setembro, ah, era um mês de muito ciclo bíblico, de muita reflexão, e de muita mística, era uma coisa muito bacana; cada encontro que a gente fazia era uma procissão no próprio local do encontro. A gente fazia nosso altar, com as simbologias, da terra do jeito da juventude dançar. E a gente... de botar o boné no chão... do boné à vela. Então tinha um pouco de tudo. E era com isso que a gente juntava a juventude [...]. (DOURACI, 2009)

Essa mística, vivida a partir da vida, da subjetividade, da realidade dos jovens do meio popular, revestia-se de uma importância sem igual para essa juventude, que se identificava com essa luta, produzindo uma vivência coletiva única que caracterizava a PJMP. Suêldes também vê no simbolismo espontâneo dos jovens da Pastoral sua maior característica.

Era uma mística vivida a partir da vida da gente. Baseada nos elementos trazidos, os elementos da vida existencial das pessoas. Ela se utilizava dos elementos da natureza, então a gente usava muita simbologia, as folhas, a areia, o grão, a vassoura, o que tivesse do contexto que a gente vivia; daquilo que a gente vivia. A água, o fogo, a panela de barro, a roupa rasgada, o chinelo que tivesse arrancado... engalhado num prego..., tudo a gente utilizava como elementos de que essas coisas que faziam parte da gente, da vida da gente, tinham tanto um fundo místico como existencial. A gente vivia muito isso, porque era muito forte, porque mexia muito com o subjetivo. E também havia muita expressão do subjetivo. Eu lembro de coisas que a gente riscava no chão, que a gente desenhava, que a gente trabalhava... Teve um momento, por exemplo, que a gente trabalhou um desenho, e a partir do desenho a gente foi percebendo as nossas relações com o mundo e com as pessoas; um desenho extremamente subjetivo. E dentro do grupo, depois a gente foi ver que as cores que cada um tinha utilizado, quem usava determinadas cores, o que é que tinha a ver da sua simbologia pessoal daquele desenho. (SUÊLDES, 2009)

Compreendo bem esse sentimento de Suêldes. Aos quinze anos, após ser convidado por uma amiga para participar de uma reunião num grupo de jovens de nome sugestivo, Missionários, cheguei na igreja temeroso, tímido e preocupado com a recepção que teria. Os outros jovens, ao me verem, pareciam me conhecer há tempos, eram alegres, acolhedores e simples. Falavam dos problemas da comunidade, e do que poderíamos fazer por ela, pelo bairro, por nós mesmos. Ao iniciar a reunião, rezamos um Pai-Nosso, uma Ave Maria e um

Santo Anjo. Depois houve uma partilha de vida. Saí com uma garota que eu nunca tinha visto para conversarmos sobre nós mesmos. A recomendação era de que deveríamos trazer algo que simbolizasse aquele momento. Levei uma pequena pedra e ela uma flor. Todos/as colocamos nossos símbolos ao centro e começamos a falar dessa nova experiência, que era conhecer o(a) outro(a). Aqueles símbolos passaram a ter uma importância incrível em minha vida, pois do contrário não entenderia por que tenho guardada até hoje aquela flor dentro da minha primeira agenda de luta.

Essa simbologia mística toma, em sua simplicidade, dimensões espirituais profundas, pois provoca no(a) jovem que a vivencia, sentimentos de pura paixão pelo outro, pela causa maior, pelo Evangelho libertador. Esses símbolos evocam os sentimentos maiores, as emoções mais íntimas que perduram, em muitos, por toda a vida, como um alimento que sacia, como energia que dá ânimo e força para caminhar.