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5 OS “DISCURSOS DO NÃO” E O ACESSO E A QUALIDADE EM SAÚDE DA

5.1 O “Discurso da não-diferença”

5.1.3 Qual “(não)-diferença”?

A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2012) afirma em seu texto que o reconhecimento da complexidade da saúde de LGBT exigiu que o movimento social buscasse amparo com outras áreas do Ministério da Saúde e, consequentemente, ampliasse o conjunto de suas demandas em saúde dando à Política um caráter transversal que engloba todas as áreas do Ministério da Saúde, como as relacionadas à produção de conhecimento, participação social, promoção, atenção e cuidado. Em seu relato, Joice aponta “a própria busca deles por maiores direitos dentro dos serviços” como algo importante:

Danilo: Na sua opinião, deve existir uma Política especifica de Saúde Integral para a população LGBT?

Joice: Sim. Danilo: Por quê?

Joice: Porque, não é só pela questão do cuidado mais específico com essa população, que é necessário, a própria busca deles por maiores direitos dentro dos serviços, eu acho que é importante. (Joice, 35 anos,

Belo Horizonte)

Apesar de produzir um efeito supostamente positivo ao reconhecer a busca da população LGBT por direitos, percebe-se um certo vazio no relato de Joice. Talvez uma resposta direta àquilo que o entrevistador gostaria de ouvir, uma vez que lhe foi afirmado anteriormente acerca da existência da Política (ao perguntar, antes de saber se ela concorda com a existência da Política, se ela a conhece). Porém, não é possível identificar nesse relato um aspecto sólido do que seja essa suposta diferença afirmada. Aqui a produção da negação da diferença se mostra

pela sua afirmação. Uma afirmação vazia, simples, sem maiores conteúdos e reflexões, configurando-se como um não reconhecimento das especificidades, uma negação da diferença. Ou seja, quando supostamente se reconhece as diferenças da população LGBT, estas são reconhecidas através de um aspecto amplo, genérico, por um discurso mais uma vez socialmente correto e aceitável, porém sem o olhar para as especificidades pelo espectro da determinação social do processo saúde-adoecimento-cuidado. Infelizmente, apesar da Política Pública ser uma afirmação dessas especificidades e necessidades de cuidado em saúde, esse discurso escancara o quão pouco efetiva é a conquista de direitos da população LGBT na sociedade atual, uma vez que, mesmo já escritos, são, até o momento, pouco (ou nunca) praticados e reconhecidos.

Hilda aponta algumas diferenças da população LGBT em relação às demais populações, porém é curioso observar como as diferenças, quando percebidas, ainda estão sob forte influência do discurso médico-científico:

Danilo: Quais particularidades você identifica como sendo dessa população?

Hilda: Os riscos a que eles estão mais sujeitos, têm mais riscos de sofrer uma agressão, ou preconceito, ou mais uma dificuldade de talvez, algum transtorno de humor, pode desenvolver uma depressão com mais facilidade ou cometer algum... enfim, algumas doenças a que eles estejam mais sujeitos, então eu acredito que tenha. Depende também de cada um, da aceitação em casa, igual alguns pacientes eram muito tranquilos, não tinham nada, não tinham nenhum problema, em casa era muito tranquilo, na escola ou na faculdade. Outros já tinham todos esses problemas juntos, sabe? Então como a gente não dá pra

saber qual vai ter qual não vai ter, nem que seja só um apoio. Por que isso, querendo ou não, traz um transtorno, tanto pro paciente, porque é uma questão muito delicada ainda na sociedade, então eu acredito que tenha essas peculiaridades, que são mais algumas que talvez eu não conheça por eu não ter tanto acesso, tanto conhecimento a respeito disso. (Hilda, 27 anos, Uberlândia)

Apesar de focar as diferenças da população LGBT nas questões orgânicas, Hilda inicia a ampliação do olhar para a causa do sofrimento dos(as) usuários(as) LGBT relacionado à sua aceitação. Na verdade, o maior desafio está na rejeição do outro. O sofrimento é causado não pelo fato da pessoa ser LGBT em si, mas pela reação daqueles que o(a) cercam diante de sua orientação sexual e identidade de gênero. E Hilda consegue inclusive perceber que há diferença no estado de saúde daqueles(as) que recebem essa aceitação em relação àqueles que não a encontram.

Com isso, é possível refletir que, na verdade, a população LGBT não é apenas diferente das demais, mas também diferente entre si. Existe uma diversidade na população LGBT. Não é porque as pessoas LGBT têm demandas específicas em saúde que, necessariamente, sempre irão apresentá-las ou sempre estarão doentes. A utilidade do conceito de diversidade sexual (deixando-se de lado a associação possível que ela possa ter com desigualdades e contextualizando seu uso nas questões de gênero) refere-se à legitimidade das múltiplas formas de expressão de identidades e práticas da orientação sexual e expressões das identidades de gênero (Vianna, 2015). Não há uma identidade LGBT única, mas várias. E tem-se que atentar para isso para que as políticas públicas e ações no SUS não criem um tipo de usuário(a) modelo LGBT, mas que acolham e respeitem a todos(as) eles(as) em suas ricas e mais diversas características.

Mas eu acho que é uma população que, como as condições que a gente vive em sociedade são muito difíceis, eu acho que eles precisam de serem tratados, tem um princípio do SUS que fala isso, que se eu não me engano, é a equidade, “de tratar os diferentes de acordo com as necessidades deles”, não é tratar todo mundo igual, e cada um tem suas dificuldades e precisam ser tratados conforme as suas dificuldades. Então eu acho que é isso, eles têm uma demanda, e eles precisam ser tratados da forma que eles estão ali, não igual todo mundo. (Hilda, 27

anos, Uberlândia)

A equidade não iguala todos(as) cidadãos(ãs) e usuários(as) do SUS em termos de tratamento. Pelo contrário, ela ressalta as diferenças não para gerar preconceito e discriminação, mas justamente para combatê-los e, consequentemente, não permitir que iniquidades em saúde afastem os(as) usuários(as) do cuidado que demandam. Até para se pensar em equidade no SUS, pensou-se antes em igualdade. Na lei 8080/1990 o termo utilizado é igualdade, justamente por acreditar ser esse o termo com o potencial de ação e transformação que a equidade tem.

O “Discurso da não-diferença” é, essencialmente, uma busca pela igualdade, em busca de um atendimento de qualidade, sem preconceitos. Porém, e o diálogo sobre esse assunto abre possibilidades para que isso ocorra, será possível perceber que tantas diferenças e necessidades não cabem nesse conceito de igualdade e que talvez seja ele o responsável por gerar o preconceito e discriminação que tanto se quer evitar. O caminho da equidade para a população LGBT começa com o conhecimento e o reconhecimento das pessoas e demandas LGBT no cuidado em saúde, sob o olhar ampliado da integralidade e da determinação social do processo saúde-adoecimento-cuidado.

A recente publicação da American College of Physicians acima mencionada, identifica a necessidade de reconhecimento das demandas e aplicação da equidade no cuidado em saúde da população LGBT:

as pessoas LGBT compõem uma comunidade diversificada, que envolve pessoas de várias raças, etnias e origens socioeconômicas. Entretanto, é sabido que a população LGBT enfrenta uma série de desafios comuns dentro do Sistema de Saúde, que vão desde o acesso aos serviços de saúde até situações que reforçam estigmas sociais, marginalização e discriminação. Nos últimos anos foi possível compreender melhor as necessidades de saúde da comunidade LGBT e os desafios que as pessoas LGBT enfrentam no acesso aos cuidados em Saúde. Embora haja progressos na redução das disparidades de saúde na comunidade LGBT, muito mais precisa ser feito para alcançar a equidade para as pessoas LGBT no sistema de saúde (Daniel & Butkus, 2015, p. 1).

E que o reconhecimento dessas diferenças seja o fator libertador dessa igualdade que não acolhe, não cuida e afasta as pessoas dos serviços de saúde no SUS.