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O interesse pela QdV na literatura médica esboça-se no início dos anos 70, mas é cerca de duas décadas depois que sofre um verdadeiro aumento, sendo a oncologia uma das primeiras áreas a adotar este conceito. A QdV emergiu no tópico da Oncologia, ainda na década de 80, em parte graças ao forte desenvolvimento científico e tecnológico na área da Medicina e ao crescimento da complexidade das decisões médicas, devido ao aparecimento de novos tratamentos e a um aumento considerável da sobrevivência (Pimentel, 2003). Até então, o sucesso médico era medido através de indicadores tradicionais como complicações, recidivas e taxas de sobrevivência, que rapidamente se mostraram insuficientes para captar a complexidade da doença oncológica. É desta forma que a preocupação com a QdV em pessoas que sofram de cancro passa a assumir um papel preponderante na intervenção terapêutica. À medida que os ensaios clínicos vão introduzindo a avaliação da QdV, passa a haver um crescente interesse pelo doente e não apenas pela doença (Pimentel, 2003; Pais-Ribeiro, 1994).

É na área da oncologia onde se verifica uma das maiores aplicações dos estudos de QdV, refletindo o impacto que o cancro tem para o doente, a sua família e a sociedade em geral (Pimentel, 2006).

Todo o processo que envolve a doença oncológica, começando no diagnóstico, é experienciado não só pelo doente mas também pela sua família, muitas vezes com sofrimento, ansiedade, tristeza e angústia (Pais-Ribeiro & Rodrigues, 2004). Ao longo do processo de doença e do tratamento o doente pode sofrer deterioração progressiva, com sintomatologia resultante da enfermidade ou como consequência dos tratamentos agressivos, traduzindo-se em alterações físicas e funcionais, psicológicas, nos papéis pessoais e sociais, na aparência e imagem corporal, acabando por interferir negativamente

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nas tarefas diárias, nas atividades de trabalho e de lazer, relacionamentos interpessoais, no aspeto financeiro, na aceitação do seu novo eu, entre outras (Pimentel, 2003). De um modo geral, o impacto de todos estes fatores parece contribuir para uma redução significativa da QdV nos doentes com cancro e seus familiares, podendo ainda afetar desfavoravelmente o seu tratamento e reabilitação (Carlson et al., 2001; Pimentel, 2006).

É certo que cada tipo de cancro tem a sua história natural e comportamento biológico específico. Porém, existem alguns sintomas e implicações ao nível físico, psicológico, emocional, social e espiritual comuns a todos eles, podendo ser aversivos para o doente de várias formas (Moorey & Greer, 2002).

Relativamente às sequelas físicas, estas podem estar relacionadas desde logo com a doença ou então com os tratamentos. Sintomas como dor, fadiga, fraqueza, diminuição da massa muscular, letargia, alterações respiratórias, náuseas e vómitos, cáries dentárias, obstipação e/ou diarreia, alopécia, xerostomia, perda de apetite, perda de peso, perda de controlo dos esfíncteres e, mais a nível funcional, diminuição geral na mobilidade e na capacidade de desempenhar as atividades da vida diária, com um marcado comprometimento físico e mental, são importantes consequências da doença oncológica com impacto na QdV (Moorey & Greer, 2002; Weitzner & McMillan, 1999). O sintoma que parece ter mais influência na QdV global do doente oncológico é a dor. A prevalência de dor crónica nos doentes de cancro em tratamento está situada entre os 30% e os 50%, sendo que cerca de 40% dos adultos em fase intermédia da doença experienciam dor moderada a severa (Carlson et al., 2001; Portenoy & Lesage, 1999). Para muitos autores a dor constitui um dos sintomas mais importantes na avaliação da QdV do doente oncológico, desenvolvendo-se conjuntamente com outros sintomas físicos, psicossociais e espirituais (Carlson et al., 2001; Han et al., 2003; Pinto e Pais-Ribeiro, 2010). Por sua vez, se esta não for controlada adequadamente, pode ter um impacto desfavorável e profundo no paciente e na sua família (Portenoy & Lesage, 1999).

No que diz respeito às consequências psicológicas, vários estudos têm incidido sobre o distress associado à doença oncológica, descrito como uma experiência desagradável de natureza psicológica, social e/ou espiritual (Jacobsen et al., 2007). Alguns estudos revelam que são os doentes mais novos e do género feminino que relatam um maior distress

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emocional (Carlson, et al., 2004; Strong, et al., 2007), e que uma menor educação está associada a um maior risco de problemas de ajustamento (Kornblith et al., 2003).

O confronto com o diagnóstico e os seus tratamentos traduz-se numa ameaça à vida e/ou ao bem-estar físico, psicológico e social, nomeadamente ao nível da independência, autonomia, autoconceito e auto valorização, comprometimento dos papéis sociais e familiares usuais, projetos para o futuro, relações interpessoais com a família e amigos e ao nível do bem-estar económico (Falvo, 1991). Pessoas com doença oncológica têm assim mais tendência a desenvolver sentimentos de ansiedade, depressão, vergonha, baixa autoestima, sentimentos de culpa, alterações da personalidade, podendo ser manifestados muitas vezes em insónia, falta de concentração ou mesmo pensamentos suicidas (Carrol & Kathol, 1993, cit. por Teles et al., 2003). Os estudos sugerem que 20% a 25% dos doentes com cancro desenvolvem depressão em qualquer altura da evolução da sua doença (Chin et al., 1999), ao que acresce o facto de estes doentes conviverem com uma dor muitas vezes severa, para além de suportarem os efeitos adversos dos tratamentos e as alterações no contexto familiar e social.

As experiências negativas do distress ocorrem, por isso, também a um nível emocional, podendo englobar ainda a área social. De facto alguns estudos que se debruçaram sobre o estudo do distress emocional demonstraram que este tem repercussões negativas na QdV do doente oncológico, repercutindo-se ainda numa baixa satisfação ao nível dos tratamentos médicos e podendo, também, diminuir a sobrevivência do doente (Bultz & Holland, 2006; Pimentel, 2006). Este distress emocional que ocorre principalmente logo após o diagnóstico e nos primeiros meses de tratamentos, ou em situações particulares, como é o caso da recorrência do cancro ou metastização da doença, apresenta-se muitas vezes sob a forma de sentimentos de culpa, vergonha e inutilidade (Venâncio, 2004), falta de energia, perceção de menor atratividade física e /ou sexual, baixa autoestima, sentimento de vulnerabilidade e discriminação profissional (Holland, et al., 2006). De salvaguardar, contudo, que a maioria dos doentes oncológicos tende a ajustar-se à doença e às suas implicações, sendo que apenas cerca de 1/3 destes doentes precisará de acompanhamento psicológico, desenvolvendo um distress emocional clinicamente significativo (White, 2001; Zabora, et al., 2001).

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Um diagnóstico de cancro pode ter ainda diversas implicações sociais. Nomeadamente, poderão surgir alterações profundas no núcleo familiar, designadamente nas suas interações conjugais e sexuais, papéis, regras e funcionamento geral. Este processo de adaptação familiar variará de família para família. Por outro lado, também as dificuldades da vida convivial, a estigmatização social, os obstáculos na reinserção ao trabalho, mostram ser fatores causadores de stress para estas pessoas, conduzindo muitas vezes a sentimentos de isolamento e rejeição, assim como a uma baixa autoestima, comprometendo a QdV (National Breast Cancer Centre & National Cancer Control Initiative, 2003; Pereira & Lopes, 2005).

Alguns estudos sugerem que a QdV melhora quando existe um bom suporte social, principalmente da família e companheiros (Pearman, 2003), enquanto atitudes críticas e de superproteção têm o efeito inverso (Garrett, 2001; National Breast Cancer Centre & National Cancer Control Initiative, 2003; Pearman, 2003). Na realidade, não importa apenas o tipo/frequência do suporte social oferecido, mas também a qualidade das relações interpessoais e a abertura na comunicação para a expressão dos medos, anseios, preocupações destes doentes vulneráveis, no sentido de diminuir o impacto destes fatores (National Breast Cancer Centre & National Cancer Control Initiative, 2003; Pearman, 2003). Estas relações interpessoais que se pretendem de qualidade deverão abranger, principalmente, aquelas que se estabelecem no seio da família e amigos que acabam por ser, também eles, afetados pelo diagnóstico e por toda a experiência da doença. Neste sentido, também familiares e amigos podem manifestar sentimentos negativos que poderão contribuir para danificar a qualidade das relações pessoais que estabelecem com o ente querido ou amigo, contribuindo para um afastamento e, consequentemente, comprometendo o suporte social fornecido (Bishop, 1994; Pereira & Lopes, 2005; Revenson, et al., 1983).

De acrescentar, ainda a nível das implicações sociais, que a doença oncológica bem como as consequências do tratamento podem refletir-se na vida profissional do doente, uma vez que nem sempre os empregadores são sensíveis às situações de doença, dificultando a sua empregabilidade na medida em que estes se apresentam limitados nas suas funções laborais, como comprova um estudo realizado na Grã-Bretanha. Nomeadamente, nesta investigação, constatou-se que, após os tratamentos, a capacidade

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para os doentes realizarem tarefas via-se diminuída, sendo de 87% para pegar em objetos pesados, 60% para limpezas, 56% para cuidar do marido ou filhos e de 56% para subir e descer escadas (Couvreur, 2001). A adaptação social à doença oncológica revela-se, assim, muito importante para que seja possível a obtenção de melhores resultados, quer ao nível da saúde em geral, quer ao nível da QdV (Couvreur, 2001; Patrão & Leal, 2004).

No que concerne à dimensão espiritual, esta é hoje em dia entendida como uma componente essencial de uma prática holística, podendo ter um impacto significativo na saúde (Pessini, 2007; Pessini, 2007; Pinto e Pais-Ribeiro, 2010). O NCCS (2011) define espiritualidade como dizendo respeito aos sentimentos e crenças profundas - por vezes religiosas - incluindo um estado de paz, ligação aos outros e às crenças sobre o significado e o propósito da vida. Sendo o cancro uma das doenças que ameaça a integridade da pessoa, mesmo se a cura for possível, as questões espirituais vão permanecer (Pinto e Pais-Ribeiro, 2010).

Alguns estudos têm demonstrado a relação direta entre a visão otimista da vida/esperança e o bem-estar e QdV (Peres et al., 2007; Taylor et al., 1999). Assim, a espiritualidade apresenta-se, para alguns doentes com cancro, como uma estratégia de enfrentamento, capacidade de refletir mais sobre a vida e o seu significado, bem como de alívio do sofrimento (Pessini, 2007; Pinto e Pais-Ribeiro, 2010). Contudo, sendo o cancro uma das doenças que ameaça a integridade da pessoa, as questões espirituais podem também ter um significado mais negativo na vida e bem-estar dos doentes, ligado à desesperança, ao questionamento da fé e do valor pessoal, conflitos espirituais e dúvidas existenciais que surgem durante todo o processo de doença e podem permanecer durante longo tempo, mesmo quando os sintomas físicos são menos inquietantes (Pinto e Pais- Ribeiro, 2010; Taylor et al., 1999). Hoje em dia, é consensual que a dimensão espiritual está relacionada com a QdV dos doentes em geral, e os doentes do foro oncológico em particular (Pinto e Pais-Ribeiro, 2010).

Em síntese, a QdV nos doentes oncológicos encontra-se diminuída devido à interseção de vários condicionantes de ordem física, psicológica, social e espiritual, conforme representado na figura 2 (Caro & Pichard, 2010; Pimentel, 2006; Pinto e Pais-Ribeiro, 2010;Venâncio, 2004):

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Figura 2: Consequências do cancro e seus tratamentos nas dimensões da QdV (Adaptado de Caro & Pichard, 2010)