3 O CURSO DE LETRAS E SUA CONCEPÇÃO SUBJACENTE DE FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE
3.6 Quando a formação se torna um apêndice: considerações sobre o currículo de Letras (ou a
PORTUGUÊS QUE, “POR ACASO”, TAMBÉM É PROFESSOR DE INGLÊS)
Esta subseção apresenta, contrastivamente, os currículos do curso de Letras nas habilitações em Língua Portuguesa e em Língua Inglesa da instituição pesquisada.
O objetivo do confrontamento de currículos serve como exemplificação de uma prática ainda muito comum no processo de construção do projeto pedagógico das habilitações em língua inglesa, e de língua estrangeira como um todo: a de, especialmente nas habilitações duplas, haver privilégio da formação voltada para a língua portuguesa em detrimento da formação em inglês, ou outra língua estrangeira. Nesse caso, a língua inglesa não é uma formação: é praticamente um apêndice (GIMENEZ e FURTOSO, 2008).
Por meio de uma breve análise da matriz curricular da habilitação única em Letras-Português da instituição pesquisada, é possível constatar que o curso de Letras Português-Inglês possui como ênfase a formação em língua portuguesa, não em inglês.Nas duas habilitações, a semelhança entre as disciplinas é considerável, sendo que as únicas disciplinas da formação de professores de português que não constam na matriz curricular de inglês são “Recepção e produção de textos não literários” (1ª série), “Recepção e produção de textos argumentativos” (2ª série) e
“Literatura Brasileira III” (3ª série). Essa afirmação pode ser constatada por meio do Quadro 9:
DISCIPLINAS DA HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
DISCIPLINAS DA HABILITAÇÃO EM LÍNGUA INGLESA
1ª SÉRIE
Língua Portuguesa I – Expressão Oral e Escrita e Compreensão de Texto
Língua Portuguesa II – Morfossintaxe Aplicada ao Texto
Língua Portuguesa III – Sintaxe: da Frase ao Texto Linguística III
Língua Portuguesa IV – Semântica e Estilística Literatura Brasileira III
Língua Portuguesa III – Sintaxe: da Frase ao Texto Língua Inglesa III
Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa no Ensino Fundamental
Estágio Supervisionado em Língua Inglesa no Ensino Fundamental
Didática Geral
4ª SÉRIE
Língua Portuguesa IV – Semântica e Estilística Língua Inglesa IV
Literatura Inglesa II
Literatura Norte-Americana II Literatura Infanto-Juvenil Análise do Discurso
Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa no Ensino Médio
Estágio Supervisionado em Língua Inglesa no Ensino Médio PORTUGUESA E EM LÍNGUA INGLESA NA INSTITUIÇÃO PESQUISADA
FONTE: A autora (2013)
56 As disciplinas em negrito são as que diferenciam uma habilitação da outra.
Como se observa por meio do quadro acima, a formação em língua inglesa está em desvantagem com relação à formação em língua portuguesa. Enquanto que na habilitação em língua portuguesa há disciplinas voltadas para a recepção e produção de textos, o mesmo não ocorre na habilitação em língua inglesa, que carece, em comparação à outra matriz curricular, de um maior aprofundamento em recepção e produção oral e escrita. Acrescente-se a isso a constituição de um curso de formação de professores de inglês com praticamente as mesmas disciplinas da habilitação em português, havendo, na formação específica em Língua Inglesa, a presença de 8 disciplinas específicas (Língua Inglesa, Literatura Inglesa I e II, Literatura Norte-Americana I e II, Metodologia do Ensino de Língua Inglesa e Estágio Supervisionado em Língua Inglesa nos Ensinos fundamental e médio), contra as 31 disciplinas da habilitação em Língua Portuguesa.
Quanto a esse fato, relativamente comum nas constituições curriculares brasileiras, Gimenez e Furtoso (2008, p. 3) esclarecem a visão geral constatada nos cursos de formação em habilitação dupla: “formar professores em língua estrangeira é só uma questão de agregar umas poucas disciplinas ao currículo da licenciatura única em língua portuguesa”. Com efeito, a semelhança entre as duas matrizes curriculares comprova a reflexão de Gimenez e Furtoso (op. cit.).
A mesma constatação é objeto de análise de Paiva (2005, p. 360), ao afirmar que:
Os projetos pedagógicos em vigor nas licenciaturas duplas continuam privilegiando os conteúdos em língua portuguesa, ficando a língua estrangeira com pouquíssimo espaço na grade curricular. As literaturas, espaço essencial para que o aprendiz tenha input autêntico, experiência estética e imersão na outra cultura, ficam relegadas, geralmente, a duas disciplinas de 30 ou 60 horas.
Para a autora (op. cit.), a carga horária de formação em língua inglesa deveria ocupar pelo menos metade do curso.
Almeida Filho (1999, p. 77) também se manifesta a esse respeito, afirmando que “o professor se formou numa licenciatura dupla em Português e uma LE, mas as capacidades linguística e teórico-pedagógica resultantes dessa formação para ensinar a LE não convenceriam ninguém”.
Apontados como a raiz das deficiências formativas dos professores de LE, os cursos de dupla habilitação em Letras Português e Inglês e respectivas
literaturas, instituídos em 1962 (PAIVA, 2005), permanecem, com raras exceções, estruturalmente imutáveis, privilegiando a formação em LP em detrimento da LE.
Com relação a esse fato, concordo com Calvo e Freitas (2011, p. 235), que defendem o processo formativo do professor de línguas como um processo crítico e permeado de relações de poder inclusivas ou “excludentes”. É inegável a influência da crença de que a língua portuguesa deve ter primazia na formação profissional em língua estrangeira. Nesse caso, para frustração de alunos-professores e formadores, conforme bem salientam Gimenez e Furtoso (2008, p. 06) “a formação em língua estrangeira na habilitação dupla é supérflua e acessória”. E, mais adiante, acrescentam:
Lamentavelmente, a perspectiva de que a língua estrangeira é apêndice não é privilégio apenas do ensino fundamental e médio. Também em nível de preparação dos professores esta atitude pode ser extremamente prejudicial e ter sérias consequências para os profissionais que atuarão naqueles níveis da educação básica (GIMENEZ E FURTOSO, 2008, p. 10-11).
Quando um órgão não vai bem, ou seja, quando está com algum problema em sua formação, estrutura ou funcionamento, inflama. E na formação do professor de língua inglesa, esse é um exemplo clássico de “apendicite formativa” aguda.
Torna-se urgente, portanto, uma mudança nesse quadro.