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“Literatura de memória” pode indicar a matéria de que é feita a literatura: a própria memória. Mais especificamente, pode nos remeter também a uma tendência na literatura de uma “escrita do eu”, que faz da escritura um meio de compreensão, seja de si, seja de um evento da vida, ou mesmo a própria vida. Alguns utilizam o termo “gênero memorialístico” para englobar a diversidade de textos que se tem produzido, mas já se pode identificar todo um aparato terminológico que visa precisar as especificidades de cada um: autobiografia, biografia, autoficção, romance memorialista, literatura de testemunho, incluindo-se aí também diários e correspondências. Antoine Compagnon refere-se ainda ao surgimento de um

controverso novo subgênero na Inglaterra chamado “life writing”61.

Em “Écriture du soi”, Michel Foucault fixa o estabelecimento da relação entre a construção da noção de si e a escrita em práticas textuais que datam do século I e II. Partindo da analogia entre o julgamento do outro e o caderno de anotações, entre o registro do cotidiano e a confissão, Foucault delineia a crescente importância da prática da escrita no desenvolvimento de uma reflexão acerca de si mesmo.

De acordo com o filósofo, esse processo se dá nos textos chamados

hypomnemata e também nas correspondências. Os hypomnemata eram cadernos onde se registrava todo tipo de informação, como uma espécie de caderneta de anotações. Entre os cultos, poderia servir para uma gama mais ampla de registros: ideias, pensamentos, fragmentos de textos, passagens do dia que poderiam ser retomadas posteriormente para uma nova reflexão. Além disso, a escrita dos hypomnemata estava diretamente relacionada a um segundo movimento, posterior à escrita: a leitura ou, mais especificamente, a releitura. Não se trata, portanto, simplesmente da manutenção de um diário íntimo, mas da prática da escrita indissociada da leitura – e vice-versa –, num movimento circular: o texto lido seria transcrito para ser relido em outro momento.

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A escrita, como maneira de recolher a leitura feita e de nos recolhermos sobre ela, é um exercício de razão que se opõe ao grave defeito da

stultitia que a leitura infindável se arrisca a favorecer. A stultitia é definida pela agitação do espírito, a instabilidade da atenção, a mudança das opiniões e das vontades, e, consequentemente, a fragilidade perante todos os acontecimentos que possam ter lugar; caracteriza-se também pelo facto de desviar o espírito para o futuro, de o tornar desejoso de novidades e de o impedir de se dotar de um ponto fixo pela posse de uma verdade adquirida. A escrita dos hypomnemata opõe-se a essa dispersão ao fixar os elementos adquiridos e ao constituir, de certo modo, um “passado” ao qual podemos sempre regressar e recolher-nos. (FOUCAULT, 1992, p. 139-40)

A possibilidade de refletir sobre aquilo que foi registrado – e que corresponde ao campo do vivido, da experiência de vida – é o que impulsionou a reflexão sobre si. A escrita dos hypomnemata previa ainda a apropriação dos textos lidos, de onde se retirava uma verdade a ser incorporada ao contexto que coubesse. Assim sendo, apropriava-se da autoridade do texto clássico com o intuito de utilizá-la nas situações que se julgasse pertinente.

O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um "corpo" (quicquid lectione collectum est, stilus redigat in corpus). E, este corpo, há que entendê-lo não como um corpo de doutrina, mas sim – de acordo com a metáfora tantas vezes evocada da digestão – como o próprio corpo daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez sua a respectiva verdade: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida “em forças e em sangue” (in vires, in sanguinem). Ela transforma- se, no próprio escritor, num princípio de acção racional. (FOUCAULT, 1992, p. 143)

A escrita desses textos, feita da união de fragmentos de outros textos, sob uma lógica própria, acabava por ser como um manual de conduta próprio, individual, fruto também da reflexão do indivíduo sobre sua vida e, por extensão, sobre si mesmo.

Um pouco mais tarde, as Confissões de Santo Agostinho vão inaugurar o surgimento dos relatos de conversão religiosa, que tiveram grande difusão na Europa da Idade Média ao século XVIII. É do processo de laicização dessas confissões religiosas que as autobiografias teriam surgido. O indivíduo passou gradualmente de se confessar a Deus, na esperança de remissão dos pecados, para o próprio texto. A

105 escrita, nesse sentido, foi convertida de espaço ou meio pelo qual o “confessor” se dirigia a Deus para a função de ouvinte da confissão.

Essa é a origem histórica que Phillipe Lejeune, em O pacto autobiográfico, atribui à autobiografia, a qual define como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p.14). Lejeune acrescenta ainda que o escritor autobiográfico firma um pacto – daí o título da obra – com o leitor, o qual, a partir de então, passa a aceitar os fatos narrados como verídicos. Esse pacto seria estabelecido nas primeiras páginas da obra, ou mesmo no prefácio, quando o autor indica ao leitor que passará a narrar fatos de sua vida.

Paul de Man opõe-se rigorosamente ao estabelecimento das autobiografias como gênero literário por considerar fracos os argumentos que corroborariam essa premissa. Para ele o problema central é o da estrita separação entre autobiografia e ficção, no que diz respeito à possibilidade de comprovação ou não dos fatos narrados. Para de Man, não se trata de uma questão de confirmação de que é a vida real que faz autobiografia, pois é preciso assumir que a autobiografia pode, em contrapartida,

construir a vida. “It appears, then, that the distinction between fiction and

autobiography is not an either/or polarity but that is undecidable”62 (DE MAN, 1984,

p. 70). E ele se pergunta ainda: é possível permanecer em um indecidível? Permanecer no indecidível talvez seja, portanto, assumir que todo texto literário é autobiográfico – e também não.

The autobiographical moment happens as an alignment between the two subjects involved in the process of reading in which they determine each other by mutual reflexive substitution. The structure implies differentiation as well as similarity, since both depend on a substitutive exchange that constitutes the subject. This specular structure is interiorized in a text in which the author declares himself the subject of his own understanding, but this merely makes explicit the wider claim to authorship that takes place whenever a text is stated to be by someone and assumed to be understandable to the extent that this is

62 [Parece, então, que a distinção entre ficção e autobiografia não é uma polaridade ou/ou mas

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the case. Which amounts to saying that any book with a readable title page is, to some extent, autobiographical63. (DE MAN, 1984, p. 70).

Considerada como uma figura de leitura, a autobiografia, segundo De Man, não pode ser definida como um gênero literário, mas como uma figura de leitura ou

mesmo uma forma de compreensão da obra. Nesse sentido, ela pode ocorrer – ou

melhor, ela ocorre em todo e qualquer texto, variando apenas em termos de medida. Partindo das ideais de De Man, é possível inferir que se a autobiografia é uma figura de leitura, ela deve ser pensada como todo e qualquer recurso utilizado no texto, ou seja, se o elemento autobiográfico aparece, em menor ou maior grau, explícito no texto, ele tem peso para a compreensão da obra como um todo.

Das mais gerais às mais explícitas, as coincidências entre vida e obra nesses romances, bem como em outros romances dos mesmos autores, não são poucas: a experiência da guerra de António Lobo Antunes, a origem libanesa de Hatoum, a viagem pela África Austral de Agualusa e seus amigos; e, como não poderia deixar de mencionar, a transposição de personagens da vida real para o universo do romance, processo que se dá nos três autores. Uma declaração um tanto irônica de António

Lobo Antunes pode concluir a questão: “penso que todos os livros são

autobiográficos, sobretudo Robinson Crusoé... Porque não se inventa nada, a imaginação é a maneira como se arruma a memória. Tudo tem a ver com a memória”. (ANTUNES in BLANCO, 2012, p.136)

63O momento autobiográfico ocorre como um alinhamento entre os dois sujeitos envolvidos no

processo de leitura no qual determinam um ao outro por substituição reflexiva mútua. A estrutura implica diferenciação, assim como similaridade, uma vez que ambos dependem de uma troca substitutiva que constitui o sujeito. Esta estrutura especular é interiorizada em um texto no qual o autor se declara o assunto de seu próprio entendimento, mas isto apenas torna explícita a maior reivindicação de autoria que ocorre sempre que um texto é declarado como de alguém e considerado compreensível na medida em que for o caso. O que equivale a dizer que qualquer livro com uma página de título legível é, em certa medida, autobiográfico.

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