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3. Do dizer, do calar e do falar (ou de como os professores gostariam)

3.1. Quando os professores não conseguem dizer

Paulo Thiago

O momento onde você pode criar discussões mais aprofundadas

Meu nome é Paulo Thiago, sou professor de Geografia do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio, leciono hoje em escola pública da prefeitura de São Paulo, também leciono numa escola particular, na região central de São Paulo. Já leciono há 12 anos, tanto em escolas públicas como em particulares, tive vivência na escola do Estado também e algumas outras privadas. Na prefeitura estou há cinco anos, nas escolas particulares eu leciono há 12 anos já.

Minha vivência, dentro de sala de aula, é sempre trabalhar conteúdos de modo mais prático e que partam de uma vivência dos alunos, onde tenha espaço para discussões em diversas questões, seja socioeconômica, ambiental, política. Minha ideia de educação vai nesse sentido.

Em relação à preferência sim, gosto e tenho maior facilidade para trabalhar dentro do Ensino Médio, que é o momento onde você tem uma formação mais efetiva como cidadão e a própria relação da ação desses educandos em relação já ao mercado de trabalho, à questão política, à questão do próprio desenvolvimento intelectual a partir já de uma... que é bem interessante no Ensino Médio, a construção de um senso crítico em relação à várias questões que permeiam a sociedade.

Então, o Ensino Médio tem um viés interessante que é o momento onde você pode criar discussões mais aprofundadas, onde você usa muito a vivência dos alunos. Isso fortalece mais as discussões dentro do Ensino Médio. A própria importância deles, os alunos estão caminhando para o mercado de trabalho, estão criando uma visão crítica sobre o mundo, sobre questões ambientais, socioeconômicas, políticas, então, é interessante nesse sentido. É legal, nesse

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momento do Ensino Médio, você conseguir criar, dentro desse senso crítico deles, visões diferentes, que eles possam seguir, a partir do senso crítico deles ou não. Então, você cria mais vertentes para um pensamento crítico. Mas o Ensino Médio dá essa gama de maior aprofundamento e maiores discussões em sala de aula.

Fica mais fácil você entender o que eles pensam, qual é a vivência deles

Com certeza eu tive bastante contato, tanto na escola pública como na particular, com esses imigrantes. A relação é, há uma certa segregação que ocorre em sala de aula e aí eles ficam um pouco mais restritos a conversar diretamente com o professor. Mas eu tento sempre deixar um canal aberto. Então, dentro das

discussões em sala de aula eu tento sempre colocar algo relacionado a essa questão da migração em conteúdos que discuto em sala de aula, nos próprios debates sobre um determinado tema e isso traz eles mais próximos de mim como professor. Então, esse contato acaba sendo interessante, acabo conseguindo criar

essa abertura para discutir temáticas que a gente discute em sala de aula mas também a própria relação de conversar sobre outras questões relacionadas à vida deles, um pouco da origem. Sempre tento deixar esse canal aberto porque fica mais fácil você entender o que eles pensam, qual é a vivência deles ou dificuldades que eles tenham ou, às vezes, frustrações sobre alguma questão que ocorre em sala de aula. Então, esse canal aberto sempre deixo para esses alunos que vêm de comunidades imigrantes. Isso fortalece bastante o contato em sala de aula e até a própria relação do respeito e do acesso que eles têm sobre o professor.

O meu contato fica mais restrito à sala de aula mesmo, à instituição escolar, tanto na pública como na particular. Mas é um contato bem interessante

porque acaba enriquecendo as discussões em sala de aula pela própria vivência e também porque enriquece meu próprio desenvolvimento intelectual e minha visão em relação... a ideia de fortalecer mais políticas públicas, a necessidade delas para recepção desses imigrantes.

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Já viajei para alguns países latino-americanos, inclusive, países da América do Sul e acabei tendo contato. Contato breve mas deu para entender um pouco da origem, entender um pouco da cultura e relação do trabalho, a relação socioeconômica, os problemas sociais que ocorrem dentro desse cotidiano nesses países. Lógico que é sempre uma visão um pouco mais restrita, como turista, você acaba não conhecendo bem a fundo a realidade de vivência dentro desses países. Mas o contato aqui em São Paulo, no caso, é bem interessante, então, dá para entender um pouco de como é a vivência deles, o cotidiano. E, como eu coloquei, essa necessidade dessa recepção mais organizada diante de políticas públicas para o desenvolvimento dessas comunidades. Mas sempre foi um contato bem enriquecedor.

Discutindo a própria relação dessa vivência deles

Eu tento trazer para a sala de aula documentos mais atrelados, alguns dados estatísticos, mas em menos proporção, porque aí os livros didáticos fornecem alguns dados. Mas vou trabalhar mais com notícias mesmo. Então, trago algumas

notícias para se discutir em sala de aula sobre essa questão. E utilizo bastante hoje documentário, então, sempre que vou discutir alguns conteúdos, principalmente relacionados aos novos fluxos migratórios, a migração internacional do Brasil, principalmente em relação à questão do trabalho ou da migração forçada por motivos de conflito, ou questões ambientais ou questões sociais, um exemplo do caso do Haiti... então eu trago documentários e em cima deles eu faço a discussão pois acho que é mais fácil de eles visualizarem essas questões.

Países da América do Sul, no caso, principalmente Peru e Bolívia, é mais a discussão porque, dentro da escola pública que eu leciono, na prefeitura de São Paulo, mas também na escola particular, por estar numa região mais central você tem um contato maior com esses imigrantes desses dois países que citei. Então, você acaba

discutindo a própria relação dessa vivência deles, a relação do trabalho, a relação da questão do acesso, a questão social também, socioeconômica, então, se discute mais neste sentido. Mas acho que o grande forte mesmo são notícias e documentários.

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Aí é uma vivência que eu trago para a sala de aula

Em relação à instituição, no caso, a prefeitura de São Paulo, como professor, sim é bem discutida essa relação. São vários projetos atrelados a isso,

uma cobrança até da Diretoria de Ensino em relação a você trabalhar alguns projetos voltados aos imigrantes que hoje são alunos também da escola, da prefeitura. Então, são vários trabalhos, desde... principalmente a comunidade

boliviana, hoje dentro das escolas públicas da prefeitura... mas vários casos hoje de vivência eu tive no ano passado em relação aos sírios, recepção devido aos conflitos que hoje ocorrem. Então, tem uma recepção, tem projetos, eles criam alguns documentos para adaptação da língua na recepção desses alunos.

Agora, em relação à escola particular, existem projetos sim para trabalhar uma questão social dentro da escola particular mas são bem menores em relação à projetos e a própria recepção desses alunos. Mas existe também, existem alguns projetos que trabalham de modo interdisciplinar ou dentro de eventos que ocorrem dentro da escola particular. Inclusive, esse ano o tema é imigração numa feira cultura da escola particular. Mas é isso, acho que na prefeitura você tem um

engajamento um pouco maior até pelo número ser maior também desses alunos nas escolas públicas.

Pela minha vivência, pelo material que utilizo hoje, que é mais material apostilado e um pouco de livro didático, a discussão é – dentro do Fundamental II, por exemplo – bem simplória em relação a essas novas migrações de países latino- americanos, aqui da América do Sul, principalmente.

Mas no Ensino Médio você já tem uma discussão um pouco mais aprofundada, a quantidade de documentos que vai se discutir também são bem coesos mas eu acabo levando alguns para utilizar dentro de sala de aula. E um pouco da vivência mesmo, do contato, pensando em São Paulo como uma grande metrópole que a gente acaba tendo esse contato maior pela chegada desses imigrantes nos grandes centros urbanos como aqui. Mas aí é uma vivência que eu trago para a sala de aula. Agora os documentos são um pouco mais... não são tão bem trabalhados,

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então, depende de um aprofundamento maior e de uma discussão maior do professor, de trazer alguns documentos de fora para se discutir em sala de aula.

Só reiterando, essa segunda questão vem de iniciativa do professor mesmo, vem de iniciativa do professor, no meu caso, para se debater porque o número de documentos é muito pequeno para se discutir dentro desses fluxos migratórios hoje, como recepção aqui no Brasil.

Os alunos começaram a reconhecer um pouco da cultura deles dentro da escola

Na minha visão, existe ainda uma questão de que faltam diversas políticas públicas em relação ao acesso e à recepção desses imigrantes dentro das escolas públicas e particulares. Projetos, principalmente, relacionados à adaptação da língua para o desenvolvimento escolar desses alunos que acabam tendo problemas tanto em questão aos conteúdos, à interpretação e várias outras habilidades, por causa dessa necessidade e dificuldade em relação à língua. E não só por conta disso, pensando num contexto mais exterior à escola você também tem a relação das políticas públicas em torno do acesso à moradia, saúde, o acesso ao desenvolvimento universitário, acesso à universidade e várias outras políticas públicas, em relação ao trabalho também, para criar uma recepção e um acesso maior dessas comunidades.

Já trabalhei alguns projetos na escola pública em relação a algumas comunidades asiáticas. Então, trabalhei um projeto em sala de aula para demonstrar um pouco da cultura e a influência dela dentro do Brasil. O que, de certo modo, dentro do projeto deu muito certo porque os alunos começaram a reconhecer um pouco da cultura deles dentro da escola.

Dentro da mídia, da relação cultural, da relação do trabalho... então, foi uma construção interessante, houve um aspecto de desenvolvimento e de melhor recepção dessas comunidades nessa escola pública em que trabalhei esse projeto. E é isso.

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Em relação ao tema, vejo que há ainda uma certa ausência de políticas educacionais que vão de encontro à recepção dessas comunidades imigrantes que chegam no Brasil. E, em relação também à própria vivência no espaço das escolas e também dentro da sala de aula, há um certo xenofobismo ainda e uma recepção ainda um pouco arredia em relação à entrada desses imigrantes na educação – tanto na escola pública como nas particulares.

... ...

Tentarmos discutir um assunto e esbarrar em questões que vão além da sala de aula. Nesse trecho do trabalho é o que se pretende discutir. E, de certa forma, podemos reconhecer nas palavras de Paulo Thiago algumas dessas travas.

Assim, como fora dito pelas professoras Luciana e Lucineide, a escassez de materiais “oficiais” disponíveis para o trabalho sobre as migrações recentes dificulta a inserção do tema. Recai, mais uma vez, sobre a iniciativa do professor a escolha sobre o quanto se fala sobre a questão. Ainda que tenhamos discutido no capítulo anterior como tal tema pode aparecer de forma significativa nos currículos de Geografia, mesmo um professor dessa área sente falta de algo mais bem organizado.

A remissão às apostilas também é repetida. Quando se refere a tais materiais a impressão que temos é de que eles, de certa forma, engessam o trabalho docente. O professor os coloca em termos de análise ao dizer que a abordagem deles

“é bem simplória em relação a essas novas migrações de países latino-americanos, aqui da América do Sul, principalmente.” Se confrontarmos as suas declarações com

as entrevistas já apresentadas aqui veremos que quanto mais “fechado” é o material menos ele inclui a discussão sobre os recentes fluxos migratórios.

E essa pouca discussão pode ser potencializada pela fala constante de que nessa fase da formação o objetivo é o mercado de trabalho. Se retomarmos a noção de que o foco do Ensino Médio é o desenvolvimento de competências, a busca por uma formação preparadora para o mercado de trabalho diminui a força do

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trabalho com as competências. E significa também limitar o papel da educação a um espectro socializador meramente utilitarista. Segundo Borges (2006, p. 86)

“Dizer que a vocação fundamental da educação é formar os indivíduos para a vida em sociedade, não implica necessariamente assegurar a concretização prática desse ideal, nem garantir que a educação, em todas as suas formas, estará naturalmente voltada para esse fim em definitiva. É necessária, antes disso, uma decisão deliberada em fazê-la coexistir, prevalecer ou sucumbir em meio aos objetivos individuais. Por esse motivo as diferentes etapas de socialização foram partilhadas por atmosferas educacionais distintas e com intensidades variadas ao longo da história. Atualmente essa distribuição de papéis entre os diferentes entes educativos é cada vez menos nítida, mais difusa entre os diversos setores educacionais, também esses mais difusos. Se por um lado esse fator torna mais difícil a identificação e a responsabilização de atores por determinadas funções, por outro ele cria também um imenso potencial de cooperação entre setores que agora passam a exercer uma co- responsabilidade pela formação individual e social do indivíduo”

Isso significa dizer que quando um professor, como Paulo, identifica em seus espaços de trabalho uma preocupação quase restrita com um dos espectros da formação do aluno o trabalho não pode estar sendo bem feito.

Outro elemento que chama a atenção nas palavras do professor é a (im)possibilidade de trabalhar o tema fora dos projetos. Ele se remete textualmente a essa modalidade de ensino quando pensa nos espaços onde realizara alguma abordagem mais específica com relação aos temas propostos. E ainda destaca que na Prefeitura há uma pressão dos dirigentes educacionais para que se faça algo:

“uma cobrança até da Diretoria de Ensino em relação a você trabalhar alguns projetos voltados aos imigrantes que hoje são alunos também da escola”. Mas essa

pressão não parece vir acompanhada de subsídios materiais e organizacionais para tal trabalho, quando o mesmo docente diz que “há ainda uma certa ausência de

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imigrantes que chegam no Brasil”. Ora, se há cobrança deveria existir respaldo, que

deveria vir em forma de políticas públicas.

Quando Carvalho se remete ao trabalho feito na EMEF Infante Dom Henrique, em que alunos da instituição, envolvidos em um projeto de reconhecimento mútuo entre bolivianos e brasileiros, foram à Bolívia, ele nos alerta que

“A Expedição à Bolívia foi possível devido ao comprometimento do então secretário municipal de Educação, César Callegari, que numa visita à EMEF toma conhecimento do projeto desenvolvido com os alunos estrangeiros e garante esforços na obtenção de recursos para a viabilização da empreitada.” (2015 p. 202)

Louvável esforço individual mas que reflete, inversamente, a inexistência de uma política de subsídios, materiais e conceituais para o desenvolvimento desses projetos. Entretanto, voltando à fala de Paulo, chama ainda mais atenção quando ele indica que na escola particular onde leciona isso também ocorre. A escolha da imigração como tema de um trabalho de ano parece, a princípio, abertura interessante ao tema. Mas não parece haver, por parte da instituição, uma política e acolhimento desses alunos, quando é dito que “na prefeitura você tem um

engajamento um pouco maior até pelo número ser maior também desses alunos nas escolas públicas”.

Essa última declaração faz saltar aos olhos um termo que é repetido muitas vezes na sua fala: vivência. A vivência do professor, as vivências dos alunos imigrantes e descendentes, a vivência dos alunos em geral. Nos remetendo à discussão do capítulo anterior sobre a contextualização teríamos então muito espaço para tal prática. Se lançarmos a vivência como matriz de discussão encontraremos as proposições de Paulo Freire sobre a necessidade de partirmos do conhecimento prévio dos alunos para podermos estabelecer uma relação de ensino- aprendizagem mais completa. Freire nos provoca:

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“Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma intimidade entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? (...) Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada a ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos estes operam por si mesmos.” (1996, pp. 30-31)

Ao não entendermos a escola como simples transferidora de saberes consagrados mas como promotora de reflexões sobre o mundo que a cerca, soa óbvio o uso das vivências para expandir a capacidade da instituição em reconstruir sua sociedade. Contudo, aparece também, nas entrelinhas do depoimento do professor Paulo Thiago, a pouca conversão dessa vivência em efetivo trabalho sobre os temas. Quando ele próprio se refere à iniciativa do professor em discutir tais questões nos conta que não se trata de programa escolar, intenção pedagógica ou definição curricular abordar tal discussão.

As instituições escolares, pelo menos as que ele se refere, não impedem o trabalho sobre migrações. E só. Não impedir não significa reconhecer a importância da discussão e transformá-la em objetivo institucional. Se essa situação é verificada em outras escolas temos alguns dos motivos mais fortes das ausências. Se nos remetermos apenas às falas de Luciana e Lucineide, essa inferência não parece tão absurda.

As maneiras de tratar do tema encontradas pelo docente também nos apontam elementos fundamentais desse “falar pouco” ou “falar limitado”. O uso de documentários e de notícias revela uma vontade de alicerçar o trabalho em fontes minimamente confiáveis. Não que essa opção não seja comum para vários professores. Mas, quando colocamos essa informação em oposição ao pouco (ou nenhum) apoio de materiais oficiais para discutir um assunto específico, podemos

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imaginar que existem muito mais dificuldades e barreiras para o tratamento da matéria do que incentivos.

Mesmo que consideremos o enfoque nas questões relativas ao mercado de trabalho – trabalho análogo à escravidão, direitos trabalhistas, desemprego – podemos compreender que a situação específica dos latino-americanos é tratada por total determinação do docente.

A situação apresentada até aqui, levando em conta os três depoimentos, aparenta bastante difícil. Mas nas três vozes há ao menos uma tentativa de chegar no tema. E quando o professor simplesmente não chega? O que poderia explicar?

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