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1.4 O Romance para Saramago: um espaço em que tudo pode e deve

1.4.3 A presença do Outro: a dialógica narrativa saramaguiana

1.4.3.1 Quando o romance evoca a epopeia

Em Memorial do convento a referência às epopeias não se limita às alusões, embora estas também estejam presentes nessa narrativa. O texto desse romance utiliza-se, ainda, para fazer essa referência/resgate, de citações diretas que não se apresentam marcadas pela presença das aspas. Com a ausência da consciência de protagonistas como Raimundo Silva e Tertuliano Máximo Afonso, que têm conhecimentos que tornam possíveis as discussões de questões concernentes às diferenças entre a tradição narrativa histórica e a literária, o narrador de Memorial do convento recorre a outros procedimentos estruturais e estéticos para estabelecer essa reflexão. Um desses estratagemas é a transposição direta de intertextos oriundos de epopeias clássicas e modernas.

Além da enumeração dos homens que saem rumo a Pêro Pinheiro para transportar a grande pedra, referida no tópico que tratou da metanarratividade em Memorial do convento, é possível apontar como intertextual o trecho em que os homens das aldeias começam a ser escravizados e retirados dos seus ofícios para trabalharem na construção do convento, uma vez que o megalomaníaco D. João V quer a obra pronta em um curto tempo. Nesse momento, a fala do Velho do Restelo, do Canto IV da epopeia de Camões, é citada sem aspas:

Já vai andando a récua dos homens de Arganil, acompanham-nos até fora da vila as infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó doce e amado esposo, e outra protestando, Ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha, não se acabavam as lamentações, tanto que os montes de mais perto respondiam, quase movidos de alta piedade, enfim já os levados se afastam, vão sumir-se na volta do caminho, rasos de lágrimas os olhos, em bagadas caindo aos mais sensíveis, é então que uma grande voz se levanta, é um labrego de tanta idade já que o não quiseram, e grita subido a um valado que é púlpito de rústicos, Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem justiça, e tendo assim clamado, veio dar-lhe o analisar os intertextos que o narrador de Memorial do convento vai atritando ironicamente com a sua narrativa, uma vez que os intertextos de História do cerco de Lisboa e de O homem duplicado serão mencionados durante este estudo em outras seções e com outro direcionamento analítico — vide, por exemplo, a análise feita em 1.4.2.2, que trata do intertexto de Todos os nomes e da contribuição dessa “repetição” para que Tertuliano pense acerca do fluxo circular do retorno.

quadrilheiro uma cacetada na cabeça, que ali mesmo o deixou por morto. (SARAMAGO, 1996, p.293, grifo nosso).

São resgatados, em Memorial do convento, os versos que, em Os Lusíadas, mais se desviam do tom de exaltação presente na epopeia camoniana. À crítica social tecida pelo Velho de Camões, Saramago adiciona uma censura ao rei e à pátria, não sendo a ofensa permitida em Os Lusíadas, uma vez que a obra, para que pudesse ser publicada, anos depois de sua finalização, teve que passar pela fiscalização do rei e do Santo Ofício.

Enquanto o Velho do Restelo tem sua fala sufocada pelo tom de exaltação do restante da obra, o velho de Saramago é abatido por um quadrilheiro, que o acerta na cabeça. Castigo semelhante é dado à personagem Tersites, em Ilíada, de Homero. Homem do povo, Tersites levanta a voz contra o rei, sendo calado por Odisseu, que lhe bate o cetro nas costas.

Nesses três episódios, são perceptíveis a reivindicação de um representante das massas e o seu sufocamento pelo opressor. O romance, entretanto, manterá a crítica viva, por meio do tom irônico que permeia toda a obra. Ao tom nacionalista presente na epopeia clássica, sobrepõe-se irônica e acidamente a crítica à exploração social exercida sobre o povo e sobre as suas verdadeiras vontades. Uma analogia seria estabelecida, por meio da exploração do intertexto, entre o episódio histórico e literário da expansão marítima portuguesa e a construção do convento de Mafra, sendo, em ambos os episódios, necessário dar ao povo sacrificado o protagonismo merecido.

Mensagem, de Fernando Pessoa, também é intertexto de Memorial do convento, como se percebe no trecho:

Em seu trono, entre o brilho das estrelas, com seu manto de noite e solidão, tem aos seus pés o mar novo e as mortas eras, o único imperador que tem, deveras, o globo mundo em sua mão, este tal foi o infante D. Henrique, consoante o louvará um poeta por ora ainda não nascido, lá tem cada um as suas simpatias. (SARAMAGO, 1996, p. 227, grifo nosso).

As primeiras linhas do trecho acima são citação sem aspas dos dois primeiros versos de um dos poemas de Mensagem, livro de poemas de Fernando Pessoa, dividido em três partes, que aborda, em sequência, o nascimento de

Portugal, os seus feitos marítimos e o seu declínio, seguido de um possível renascimento. Trata-se, como nas epopeias, de uma exaltação, embora fragmentada, do espírito nacional português.

O narrador de Saramago retoma os versos, que em Mensagem se referem a D. Henrique, para ironizar o seu sentido, no contexto de um romance que relata os sofrimentos dos homens do povo durante a construção de um convento desejado pelo rei D. João V. Por meio do intertexto, a narrativa saramaguiana coloca D. Henrique e D. João V em um patamar de igualdade. Essa comparação é irônica, vista a frequente degradação da figura do rei pelo romance de Saramago.

Os espíritos da aventura e da possibilidade épica, que permeiam as epopeias, são, dessa forma, apontados e ao mesmo tempo subvertidos por Memorial do convento, uma vez que este evoca a matéria épica, como no episódio de transporte da pedra, mas a configura como repleta de elementos que deterioram os valores da épicas clássicas. Os homens que partem de Mafra não saem em busca de aventuras, mas pela necessidade, não se aparentando, nem mesmo fisicamente, como evidencia o narrador, aos heróis das epopeias. Mesmo quando o narrador tenta conferir alguma virtude às personagens, isso se mostra impossível, vistas a miséria e as necessidades inexoravelmente humanas e nem sempre virtuosas.

Os romances de Saramago trazem para o seu construto estrutural e semântico tradições narrativas literárias e históricas, a fim de promover o atrito entre o gênero e o os percursos da própria épica e da narrativa. Essas evocações são feitas principalmente por meio da ironia, afastando o intertexto do seu contexto original e fazendo do romance uma paródia dele mesmo, como Claudio Magris (2009) prevê, duvidando, no final de “O romance é concebível sem o mundo moderno?”. Nesse texto, o crítico e escritor italiano, além de discutir, apoiado especialmente na tipologia de Lukács, a relação essencial entre o gênero e o contexto sócio-histórico em que se estabeleceu, faz um apanhado das modificações sofridas por ele até o século XX. Magris finaliza o seu texto substituindo a pergunta inicial que lhe dá nome ao discutir, sem se estender em sua reflexão, os caminhos tomados pelo romance no século XX. Terminaria o romance em um autoparódia involuntária? O crítico, referindo-se a Kipling, diz ser esta “outra história”.

É possível afirmar, ainda acerca da escolha dos intertextos, que o narrador, ao elaborar, por meio da ficção, uma espécie de epopeia negativa, afasta-a dos primórdios da epopeia e da História, que, como afirma Paul Ricoeur (2010, p. 322), “tinham transformado a glória efêmera dos heróis em fama duradoura”. Esse afastamento provoca, ao mesmo tempo, uma evocação crítica dessas matrizes, tornando possível, em Memorial do convento, trazer o sofrimento dos trabalhadores à memória.