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4. PROJETOS DE FUTURO NOS CAMINHOS DA SOCIOEDUCAÇÃO DE MEIO

4.2 Os passos: projetos de futuro na execução socioeducativa

4.2.4 Quarto passo: As despedidas

Gabriel chega na Casa da Juventude agitado, quase nervoso. Veste sua habitual calça jeans, tênis all star e camiseta preta de uma de suas bandas preferidas. Pergunta, assim que entra no pelo portão, se o “sor do violão” já está ali. Logo o educador sai da cozinha e vai recepcioná-lo na entrada. Teria atendimento com a psicóloga de referência dele e depois a oficina de violão. Mas hoje vai ser diferente: é o último dia de sua medida e todos sabem disso. A psicóloga que o acompanha quer ter o gostinho de que a última hora de cumprimento seja no atendimento, onde poderão conversar sobre o futuro.

123 O educador vai dar uma aula exclusiva para Gabriel hoje, é a despedida dele deste seu processo de cumprimento de medida socioeducativa. Nos últimos seis meses, duas vezes por semana o jovem esteve na Casa para cumprir as suas quatro horas semanais de prestação de serviços à comunidade. O que no início parecia que seria um grande sacrifício, hoje apresentava indícios de que deixaria saudades. O jovem olhava para todos os detalhes da Casa, como quem quer apreciar mais uma vez aquele espaço e tudo o que ele representou em sua trajetória.

Na aula de violão mais conversa com o educador do que pratica os exercícios escolhidos para o momento. O educador de violão foi seu grande parceiro nesses meses. Gostou tanto da oficina que “pegou gosto” pela prática do instrumento. Ganhou um violão de presente da família e mais de uma vez o levou para que o educador o afinasse, mesmo que não fosse seu dia de oficinas. Praticou exercícios em casa. Escreveu algumas letras de música, uma em especial é guardada em sua pasta no armário, junto com o seu prontuário: uma música em que fala sobre o seu conflito interno e pela busca diária em “não ser um monstro”.

Ao final da oficina foi acompanhado pelo educador até a sala da equipe. Um abraço forte foi trocado, junto com promessas de reencontros. Gabriel entra na sala já emocionado e a psicóloga que é sua técnica de referência já o espera para o atendimento que encerra o cumprimento de sua medida.

A pauta é conversar sobre aquele futuro que parecia tão distante, mas que agora já é quase o presente: o depois da medida. No caso de Gabriel, segue o acompanhamento psicossocial porque foi acordado isso entre a Casa, o jovem e a família, mas agora sem o caráter de obrigação de quem está cumprindo uma medida judicial. Os planos para o futuro envolvem uma retomada do vínculo mais presente com a escola. Ao contrário de outros jovens atendidos na Casa, Gabriel não possui dificuldades no processo de aprendizagem, é considerado pela escola como um bom aluno. A relação com a escola ficou estremecida depois do ato infracional cometido pelo jovem. O medo era de que também nesse ambiente se reproduzisse o estigma social relacionado aos atos de estupro e o ostracismo à que jovens que são pegos por atos como esse são relegados costumeiramente.

Como projeto de futuro à longo prazo, o jovem retoma a ideia de seguir investindo na música, talvez viver dela. A psicóloga aborda com ele as dificuldades envolvidas em uma escolha como essa, mas tenta estimulá-lo a seguir com os seus sonhos e projeções de futuro. Depois da conversa Gabriel se despede de toda a equipe. Brincamos que esse momento merecia um bolo, mas que fica a intenção de celebrarmos essa finalização de etapa. Gabriel vai continuar

124 frequentando a Casa da Juventude, mas a partir de hoje ele não é mais um jovem em conflito com a lei ou um jovem em cumprimento de medida socioeducativa.

As despedidas da Casa das Juventudes para os jovens em cumprimento de PSC ocorrem, principalmente de duas formas: pela conclusão ou pela evasão da medida socioeducativa. Depois de concluída a medida, os jovens podem seguir frequentando o espaço sem, contudo, ter a obrigação de cumprir uma carga horária específica.

Ao longo do cumprimento da medida socioeducativa o jovem é convidado a refletir sobre os seus desejos e possibilidades em relação ao futuro e, em conjunto com o técnico que o acompanha, desenvolver planos e planejamentos. Por tratar-se de um acompanhamento individualizado, cada um dos jovens o faz em um tempo e da forma escolhida em uma combinação entre ele e quem o acompanha. Em geral, as conversas sobre as expectativas futuras vão se construindo em vários meses de acompanhamento, em meio a outros debates que envolvem temporalidades passadas, presentes e futuras.

É comum que se pense, nesse processo, em planos para o futuro em curto e médio prazo, em geral para o momento após o término da execução da medida. O que se pode observar desses momentos é que a conclusão da medida aparece como um futuro distante. Essa percepção é corroborada pelo fato de que a maioria dos jovens “arrasta” a execução, faltando vários dias da prestação, fazendo com que os seis meses de prestação de serviços não se encaixem em seis meses de calendário.38 Então, os jovens vão cumprindo as horas de prestação como se concluir a medida fosse apenas um sonho para um futuro distante.

Quando acabar mesmo, aí eu penso em como vai ser, penso no que eu quero fazer. (GABRIEL, 17 anos)

Aí eu pensava assim: quando terminar o comunitário aí eu volto a estudar, né? (HUGO, 14 anos)

Quando ocorre a conclusão da medida, então, coloca-se um momento de tensão, como se se construísse a necessidade imediata de colocar em prática todos os planejamentos que foram prorrogados até essa marca temporal. Assim, a conclusão da medida aparece como um momento de confronto entre os desejos e as possibilidades, uma vez que o futuro torna-se

38 De acordo com as diretrizes legais, o tempo máximo de prestação de serviços à comunidade é de 6 meses. A medida de PSC é medida em horas semanais de prestação. Quando o jovem falta ou faz uma carga horária semanal menor do que a estipulada (em geral, 4 horas), a medida se estende até que seja cumprida a carga horária referente aos seis meses.

125 presente e o jovem vê-se na obrigação de repensar-se e repensar sua trajetória e suas expectativas.

É comum que, nesse momento, o jovem sinta-se desamparado de alguma forma. Durante os últimos meses, semanalmente, o jovem pode pensar em sua vida, em seu futuro, em um ambiente ‘seguro’, de acompanhamento individual, onde a demanda por reconhecimento coletivo dava uma pequena trégua, e o jovem podia mostrar-se frágil ou confuso de alguma forma e contar com a companhia de uma pessoa nesse processo. Agora, as projeções sobre o amanhã serão feitas por ele sozinho ou então na interação com pessoas da sua vida, principalmente com os demais jovens, não sobrando muito espaço para a possibilidade de demonstrar fragilidade ou insegurança.

Talvez por isso que, por vezes, mesmo depois de concluírem a medida os jovens seguem frequentando o espaço da Casa da Juventude, como forma de manter esse momento de atendimento, e sociabilidade juvenil proporcionada por esse espaço. Isso ocorreu com Hugo, Gabriel e Marcos que frequentaram a Casa vários meses depois, sem a obrigação de carga horária de prestação de serviços.

Há, contudo, uma grande parte das despedidas que ocorrem não pela conclusão da medida e sim pela evasão. Como é comum que os jovens faltem os seus dias de prestação de serviços “arrastando a medida”, torna-se difícil caracterizar a evasão inicialmente. Em acordo com o CREAS, entendíamos que o jovem estava evadido quando não havia cumprido nenhuma hora no mês de referência. Nesse caso, tentava-se a realização de visitas domiciliares, o contato com a família e com o próprio jovem para compreender o porquê das ausências.

Em alguns casos, a evasão ocorria pelo risco de circular pelo território, assim, o procedimento adotado era o de transferir a medida para outra unidade executora, principalmente na própria sede do CREAS, localizada na região central da cidade. Em outros casos, a evasão justificava-se pela falta de sentido que esse processo significava para o jovem. Alguns jovens reproduziam o discurso social punitivista de que a medida socioeducativa de meio aberto “não era nada” e seu descumprimento “não dava em nada”. Dessa forma, considerava-se perda de tempo cumprir a prestação de serviços por acreditar ser improvável a determinação de uma privação de liberdade pelo descumprimento do meio aberto, mesmo que legalmente exista essa possibilidade.

Em alguns momentos, discursos derrotistas em relação à projeção de futuro também eram usados para justificar o não cumprimento da medida, como o jovem que disse que seu

126 caminho “é só a cadeia ou o cemitério mesmo, então por que perder tempo com o comunitário?” (TAYLOR, 17 anos).

Essa postura é mais facilmente encontrada em jovens que possuem trajetórias já bastante marcadas pela criminalidade e pela recorrência de práticas infracionais. Em certo ponto, o próprio processo de repensar as escolhas possíveis para o futuro, é particularmente doloroso para os jovens que possuem seus referenciais e valores mais consolidados na dinâmica criminal territorial ou na presença constante de violações de direitos.

Há, por parte de alguns desses jovens, quase um pedido para que a medida seja por meio de um trabalho braçal, onde seja exigido apenas o esforço físico e não o exercício de reflexão acerca de sua própria vida. Em algumas trajetórias, essa outra maneira de cumprimento de medida faz mais sentido e, por isso, avalia-se conjuntamente se existe a necessidade de transferir a execução da medida para uma unidade onde a execução ocorra de forma mais “tradicional”. Em outras, contudo, avaliamos ser importante estimular esse processo de autorreflexão, então, buscamos reinserir o jovem na PSC da Casa.

Dezenas de jovens que evadiram da execução da medida na Casa da Juventude e também não aderiram à execução em outra unidade, continuavam circulando pelo território e não raras vezes nos encontrávamos nas imediações da Casa. Ao me ver esboçavam um cumprimento tímido, parecendo sentir vergonha, como quem precisa se desculpar de algo que fez. Sempre os cumprimentava com entusiasmo e dizia “Aparece lá na CJ quando der”, faziam que sim com a cabeça, mesmo que soubéssemos, tanto eu quanto eles, que isso provavelmente não aconteceria. Por fim, a última possibilidade de despedida é nos casos em que o jovem falece durante a execução de sua medida. Henrique foi o único jovem assassinado durante a execução de sua medida durante o andamento dessa pesquisa. Outros dois jovens foram baleados quando estavam em situação de evasão de medidas na Casa da Juventude.

Se durante a execução de sua medida, as discussões sobre futuro aparecem como centrais nos acompanhamentos, são nas despedidas caracterizadas pela morte, ou seja, pelo fim da possibilidade de futuro que residem as maiores contradições dessa abordagem socioeducativa.

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