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O QUE É LEITURA-ESTAR-NO-MUNDO?

1. A LEITURA NA ESCOLA

1.3 O QUE É LEITURA-ESTAR-NO-MUNDO?

O conceito de leitura-estar-no-mundo, ainda que possa representar uma desconcertante obviedade, não deixa de remeter, ao mesmo tempo, ao pensamento sobre o que seja leitura e o que seja estar no mundo. Essa noção ser no mundo, desenvolvida sistematicamente pelo filósofo alemão Martin Heidegger no início do século XX, põe em questão o sentido do ser a qual, para o autor, foi esquecida pela metafísica tradicional que, de certa forma, despreza o sujeito em detrimento do objeto, não do ponto de vista existencial, mas contextual, daí a expressão ser no mundo, situando o ser no contexto dos acontecimentos que ele mesmo elabora, edificando a estrutura do mundo no sentido óbvio de que não há estrutura sem sujeito. Esse autor defende que é preciso entender-se ser no mundo como horizonte fundamental de onde pode ser abordada a questão de ser em geral. Mas essa estrutura fica ainda mais clara quando Macedo (2004, p. 46), sobre a ideia heideggeriana, diz: “Onde quer que o Ser esteja presente, haverá realidade, mesmo a mais esquizofrênica, isto porque a própria existência humana, seja ela qual for, é estar-no-mundo.”. Eis aí o sentido que se toma dessa ideia de leitura.

Considerando o que nos faz refletir Heidegger, Paulo Freire assevera que a leitura é processo que envolve a “compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (2009, p. 11). Concordando com Freire, essa pesquisa diferencia leitura superficial – decodificação do código linguístico – e a produção de leitura – aquela que considera a relação dialógica entre as condições de produção dos sujeitos da interação, quais sejam: sujeito-autor, sujeito-leitor, sem hierarquias – e estabelece que seu foco seja o encaminhamento que é dado a essa ação, particularmente feita pela (o) docente, como havia sido esclarecido anteriormente, leitura pedagógica. Considerando que há muitas coisas que concorrem para o seu processo de ensino/aprendizado: a estrutura da escola, o acesso a materiais eletrônicos (TV pendrive, som, quadro de qualidade, livros), formação docente, questões sócio-histórica-economicas, apesar dessas nuances é essa a leitura que precisa estar na escola. A ela chamaremos de leitura-estar-no-mundo, considerando o que Freire assevera logo de início ao falar de leitura, já citado anteriormente, mas aqui trazido mais uma vez, reforçando a ideia nele contida: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (2009, p. 11) e

entendendo que a leitura não ocorre de forma produtiva – abarcando diversas possibilidades de interpretação – se não se atrela ao mundo – físico, psicológico, social, ecológico, pois somos seres no mundo, como nos lembra a filosofia heideggeriana. Essa é aqui considerada uma leitura autônoma, intercrítica e situacionada, ou seja, aquela em que o sujeito-leitor demonstra fazer uma produção de leitura que considera o texto em seu contexto, que percebe subentendidos, implícitos, estrutura textual e dialoga com o texto: uma leitura de interação com o texto. Essa leitura se opõe à leitura superficial, aquela em que o leitor não é sujeito de sua leitura, na qual não consegue estabelecer conexões ou perceber as nuances do texto, pois, como nos diz Orlandi (2003), a leitura é discurso e é produção desencadeada pelas condições de produção dos sujeitos interlocutores da leitura. A leitura é, então, o momento crítico da constituição do texto, afirma essa autora, pois é quando o sujeito-leitor se constitui enquanto sujeito no diálogo com o sujeito-autor.

Paulo Freire (2009) nos ensina que a leitura do mundo e a leitura da palavra devem caminhar juntas, uma completando a outra, assim dizendo ele ressalta a importância do outro na formação do leitor-cidadão, que interage com pessoas e contextos. Essa é uma realidade propícia e profícua para a sala de aula, quando visa, preferencialmente, aquilo que nos ensinou o mestre Freire.

Como vimos, atualmente, a leitura tem se tornado uma preocupação constante tanto nos meios acadêmicos, quanto nos órgãos de educação do governo brasileiro. Pode-se perceber isso através de alguns projetos incentivados e subsidiados por instâncias governamentais. No entanto, há que se esclarecer: de que leitura estamos falando? Para Paulo Freire (2009, p. 11), a leitura é um processo que não se restringe à decodificação linguística, ou seja, extrapola o que vem sido chamado de “alfabetização”, ampliando-se para o letramento conforme nos explica Magda Soares (2010). E vai além, interagindo com a ideia de enleituramento, isto é, a capacidade de tormar-se leitor de forma ampla, tendo na leitura uma ação que é contínua e ampliada a cada contato com o contexto que cerca o sujeito-leitor. Por conta disso, é importante que aqui se tenha claro que a leitura-estar-no-mundo, uma leitura de letramento e enleituramento, é aquela que torna o texto inteligível em suas várias nuances: lexical, gramatical, de conhecimento de mundo, indo além da leitura das palavras e coadunando com a ideia de que, “... ao professor cabe criar oportunidades que permitam o desenvolvimento do processo cognitivo com o objetivo de formar o leitor crítico.” (KLEIMAN, 2004, p. 09), não só ao docente, mas, tomando-se a perspectiva assumida nesse texto de que a escola deve dar conta da constituição do sujeito-leitor, enfatizamos esse aspecto, considerando-se que o professor, a professora também se formam ao formar. É

importante deixar bem clara essa perspectiva uma vez que se considere a leitura o fundamento do ensino-aprendizagem, notadamente em sua capacidade de interação à distância, permitida através da escrita, por exemplo, sendo que essa interação necessita de uma mediação intencional para a formação do leitor, da leitora com autonomia para engajar-se ou não, para criticar e se tornar leitora, leitor de mundo, tal como nos ensina Paulo Freire em suas obras. Espera-se que a escola dê conta desse processo.

Ao estudar a leitura na categoria do contexto contemporâneo, só é possível vê-la na perspectiva da leitura estar-no-mundo, concordando com Paulo Freire, quando ele adiciona a leitura de mundo às categorias de leitura e amplia a ideia de leitura propriamente dita, inserindo-a no contexto, tirando-a da biblioteca somente, para entrar no cotidiano cada vez mais envolto em leituras e que nos constitui enquanto cidadão. Cabe, portanto, à escola um estudo da leitura que esteja para além do simples deleite, embora o simples deleite nem seja tão simples assim, nem sempre só deleite. Ou seja, o diferencial da escola é exatamente a mediação docente, trazendo a ampliação do conhecimento de mundo e do funcionamento da língua, promovendo a produção de leitura que culmina primordialmente nesse contexto em inferências e interferências. A leitura que nos constitui enquanto leitores, pois cada leitura acaba nos transformando de várias maneiras, provocando o reassujeitamento.

Em Análise de Discurso, diz-se que os fatores que constituem as condições de produção é que vão configurar o processo de leitura. Orlandi (2003) aponta alguns fatores relevantes que constituem as condições de produção da leitura: a linguagem, ampliada em sua perspectiva linguística – competência gramatical escolar, ideologia, contexto –; incompletude – eivada pela multiplicidade de sentidos possível –; intertextualidade – aí inclusa a ideia de implícito que abrange os pressupostos e subentendidos –; legibilidade – que dá conta do tipo, contexto e sujeito, além da leitura parafrástica e polissêmica. Todos esses fatores importantíssimos e que a escola precisa dar conta.

A leitura-estar-no-mundo é trazida para este trabalho como fator que engloba os constituintes da condição de produção da leitura, apontando para o fato de que todo texto é transdisciplinar, uns mais, outros menos, sendo assim, precisa dialogar com o mundo no qual circula para provocar sentidos nos sujeitos envolvidos na leitura. Para dar conta desse fator da leitura, é preciso a mediação – ou mediações, seria mais adequado, posto que ninguém dê conta da aprendizagem sozinha, mesmo estando só – no sentido de dar voz a toda a polifonia que envolve um texto. A leitura-estar-no-mundo abarca todos os fatores que constituem as condições que configuram o processo da leitura. Sendo assim, ela é a que dá conta do texto em seu contexto de acontecimento. Na sala de aula, pensar a leitura-estar-no-mundo é pensar

que o texto não é constituído em partes, ele é um todo de sentidos e é como um todo, um corpo inserido num contexto de acontecimento que precisa ser considerado.

Um mediador da leitura que considera a leitura-estar-no-mundo entra profundo no texto ao lado dos sujeitos da leitura – sujeito-leitor, sujeito-autor – sem impor interpretações mediando esses sujeitos no sentido de dialogarem da forma mais ampla possível, considerando quantos referentes sejam necessários, inclusive aqueles a que não havia se dado conta e que são apontados no percurso.

Essa é, aqui, considerada uma leitura proficiente, ou seja, aquela em que o sujeito- leitor demonstra fazer uma produção de leitura que considera o texto em seu contexto, que percebe subentendidos, implícitos, estrutura textual e diálogo com o texto: uma leitura freireanamente crítica com relação ao texto, pois, como nos diz Orlandi (2003), a leitura é discurso e é produção desencadeada pelas condições de produção dos sujeitos interlocutores da leitura. Essa leitura se opõe à leitura superficial, aquela em que o leitor não é sujeito de sua