• Nenhum resultado encontrado

Queda para a cave

No documento Da prova indireta ou por indcios (páginas 47-50)

Premissa 2 – Condições iniciais singulares (factos históricos)

I. Queda para a cave

1. Em certa acção de responsabilidade civil não havia dúvidas que a autora, cliente de um estabelecimento comercial de utilidades domésticas, tinha caído para a respectiva cave através da abertura que existia no pavimento do estabelecimento, a qual respeitava a um sistema de monta-cargas que servia para descer as mercadorias que eram armazenadas nessa cave.

Na altura da queda a plataforma do monta-cargas estava a ser utilizada e, por essa razão, estava assente no piso da cave, deixando descoberta a respectiva abertura.

Não houve testemunhas da queda da autora, mas a queda era um facto certo, pois a autora foi retirada da cave.

A testemunha A, empregado da ré, pessoa que procedia às descargas,referiu que, na altura da queda tinha ido à rua buscar um novo carregamento, mas tinha colocado, na posição horizontal, a corrente metálica destinada a vedar o acesso de pessoas à abertura do monta- cargas.

A autora, ouvida em declarações, referiu que ia a olhar para os objectos colocados nas prateleiras e de repente «faltou-lhe o chão debaixo dos pés» e caiu para a cave, não admitindo que a corrente estivesse colocada, pois não tinha tocado em nada.

Foram ouvidas como testemunhas diversos funcionários do estabelecimento comercial, que sustentaram a tese da corrente se encontrar colocada horizontalmente, presa nos respectivos pilares.

A colocação da corrente na posição horizontal, que assim vedaria e impediria a passagem de clientes, tornava-se importante na medida em que poderia imputar à vítima alguma quota de responsabilidade na própria queda.

Não se atribuiu relevo ao depoimento da testemunha A com base na circunstância de ser empregado da ré e ser o eventual responsável pela não colocação da corrente a impedir a passagem.

Considerou-se que o emprego garante a sobrevivência das pessoas e que a falta ou perda de emprego é altamente prejudicial, pelo que, em regra, o empregado não terá, e não se sentirá, com a necessária liberdade para declarar o que viu, se porventura a verdade desfavorecer a sua entidade patronal.

Na análise acerca do que terá ocorrido, ponderou-se também a possibilidade de alguém ter colocado a corrente na posição horizontal antes de terem chegado ao local as testemunhas que afirmavam tê-la visto colocada nessa posição.

2.Prova indiciária

Tal colocação podia ter sido levada a cabo pela testemunha A, com o fim de apagar os vestígios da negligência havida, ou por alguém que instintivamente a tivesse colocado nessa posição com o fim de salvaguardar outras quedas, prevendo a afluência de pessoas ao local.

Quanto ao depoimento da autora, considerou-se que o mesmo não tinha, só por si, capacidade para formar a convicção no sentido de que os factos ocorreram como ela declarava terem ocorrido, pois era pessoa interessada, na medida em que era parte e, por outro lado, porque poderia ser objecto de alguma censura se admitisse que a corrente estava colocada horizontalmente, pois tal facto poderia levar a considerar-se que ela devia ter visto e não viu a referida corrente, sendo-lhe imputável, no mínimo, parte da culpa quanto à queda.

Apurou-se que esta corrente metálica se apoiava em dois suportes fixos; ficava a cerca de 70 centímetros de altura e a uns 20 centímetros da abertura do monta-cargas.

Como resulta do exposto, a questão que se colocava consistia em saber se a corrente estava ou não estava colocada horizontalmente, presa a ambos os suportes, quando ocorreu a queda. 2. O tribunal acolheu a versão da autora, mas não com base nas suas declarações.

Logicamente não atribuiu valor persuasivo ao teor dos depoimentos das testemunhas que afirmaram terem constatado a corrente colocada na posição horizontal, desde logo porque a corrente podia ter sido colocada nessa posição depois da queda.

A convicção do juiz baseou-se em dois tipos de indícios.

Com efeito, quando uma hipótese de facto ocorreu mesmo apresenta sintomas de verdade porque há identidade entre ela e a realidade e, sendo assim, tal hipótese, por ser real, obtém, em regra, confirmações variadas da sua existência nessa mesma realidade e esta não a refuta.

Isto é, a realidade acolhe-a no seu seio ao invés de a rejeitar, pois, tendo existido aí, nessa realidade, a hipótese real resulta do fundo factual onde ocorreu (foi fabricada aí), pelo que se reflectiu nele e recebeu dele influências variadas, tudo isto de acordo com a estrutura nomológica que existe no mundo natural e da lógica motivo-crença-intenção-finalidade que governa as acções humanas.

No caso havia dois tipos de indícios com aptidão para desfazer dúvidas quanto a saber se a corrente estava ou não colocada no momento da queda.

Primeiro conjunto de indícios – Considerou-se na motivação relativa à decisão da matéria de facto que acaso a corrente estivesse colocada na horizontal, amarrada aos respectivos suportes, então a autora teria chocado com a corrente antes de cair, como não podia deixar de ser.

Apurou-se no decurso da audiência que a autora media de altura 1,53 metros. Nestas condições, a corrente ficaria sensivelmente a meio da altura da autora.

2.Prova indiciária

Por outro lado, se a corrente estivesse colocada, a autora, ao andar em direcção à corrente e ao embater nela, sensivelmente a meio do seu corpo, caso não parasse logo ao sentir o contacto e forçasse a corrente em direcção à abertura do monta-cargas, então a corrente teria impedido que o corpo da autora chegasse à abertura do monta-cargas, pois esta estava localizada ainda a cerca de 20 centímetros.

Nestas condições, a hipótese da autora ter caído, estando a corrente colocada horizontalmente, revelava-se improvável.

Segundo conjunto de indícios – Muito embora a autora não tivesse alertado para tal matéria, havia indícios que, aliados aos anteriores, apontavam com clareza para a hipótese da corrente não se encontrar colocada horizontalmente.

Com efeito, continuando a considerar a hipótese da corrente estar colocada horizontalmente, como a autora caiu para o interior da abertura do monta- cargas, este facto implicava que a autora tivesse passado por cima da corrente e implicava também que tivesse caído, digamos, de «cabeça para baixo», como quem mergulha, ou, pelo menos, numa posição «enrolada», mas nunca numa posição corporal vertical em relação ao piso da cave, pois a posição horizontal da corrente impedia uma queda com essas características.

Ora, verificava-se pelo teor do relatório do Instituto de Medicina Legal, onde se encontravam descritas as lesões sofridas pela autora em consequência da queda, que esta tinha sofrido fracturas no pé esquerdo e na vértebra D12 – trata-se da vértebra que faz a transição entre as vértebras dorsais e as lombares.

Estas lesões, e não havia outras, eram compatíveis com a hipótese da queda da autora numa posição corporal vertical, «de pé», posição em que todo o peso e pressão do corpo se concentra, ao embater no pavimento da cave, nos pés, pernas e coluna vertebral, ou seja, precisamente onde se registaram as lesões.

Estas lesões constituíam factos gerados pela queda, ou seja, indícios localizados causal e cronologicamente após os factos sob prova – colocação da corrente/queda para a abertura – e apenas se conciliavam com a hipótese da corrente não estar colocada.

Com efeito, se a corrente estivesse colocada horizontalmente, o corpo da autora como já se disse, tinha sido obrigado a passar por cima da corrente, mas como a corrente ficava sensivelmente a meio do seu corpo, isso significava o desequilíbrio e queda da autora em direcção à abertura, passando primeiramente sobre a corrente e entrando na abertura em primeiro lugar, a parte superior do corpo, ou seja, cabeça, braços e tronco, e só depois a parte inferior, isto é, pernas e pés.

Por conseguinte, era altamente improvável que a autora tivesse fracturado o pé esquerdo e a vértebra D12, se a corrente estivesse colocada, e era apropriado que tivesse sofrido tais lesões se tivesse caído numa posição corporal vertical a qual, por sua vez, era incompatível com a existência da corrente colocada em posição horizontal.

2.Prova indiciária

Nestas circunstâncias, a convicção não podia deixar de se formar no sentido da corrente não estar colocada2.

No documento Da prova indireta ou por indcios (páginas 47-50)