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A compreensão do narrador das Memórias do cárcere é uma tarefa que, mais uma vez, nos remete à discussão que temos proposto neste trabalho, isto é, à que se refere às relações entre história e ficção na obra citada. O narrador é uma categoria que está diretamente vinculada à maneira como o discurso se constrói ao longo do relato memorialístico. Aquilo que se diz e a maneira como é dito são gestos discursivos de uma voz cuja autoridade lhe foi outorgada para testemunhar, por meio de seu relato, o passado, objeto da memória. Por isso mesmo, convém situarmos o narrador das Memórias do cárcere – que declara, nessa mesma obra,

ser o autor de outros textos – no centro de sua produção literária, a fim de entendermos de onde ele fala quando da escrita de suas memórias.

Lembremo-nos, primeiro, de que o narrador das Memórias escreve o passado em primeira pessoa, ou seja, ele assume a forma clássica de que fala Lejeune,197 erguendo-se como autor-narrador-protagonista. Em outras palavras, o sujeito real Graciliano constrói-se como um narrador que é, ao mesmo tempo, o centro da história apresentada em sua obra. Muito embora as discussões sobre o narrador, nos mais variados tipos de discurso, nos coloquem numa situação teórica relativamente cômoda – ou temos uma pessoa real que narra fatos históricos ou estamos diante de uma criação de ordem ficcional –, no caso de um texto memorialístico – é esta a situação das Memórias do cárcere –, o problema tende a revelar-se bem mais complexo.

Por um lado, assumir a ideia de que o narrador dessa obra é tão somente a figura histórica do escritor alagoano Graciliano Ramos, que produziu o livro Vidas secas, e negar sua inscrição textual como uma categoria literária é apagar a noção de texto como uma entidade autônoma que, conquanto mantenha um vínculo com mundo, não consegue repeti-lo em sua materialidade. Por outro lado, excluir o sujeito histórico que narra acontecimentos datados e atestados por outras pessoas como parte do que entendemos ser o passado real, implica um desconhecimento generalizado dos estudos acerca do discurso e da autoria. A melhor saída é perceber a fusão entre as duas instâncias narrativas, o narrador e o autor, sintetizadas num único sujeito, que é tanto real como um objeto construído. Dessa forma, interpretá-lo é uma tarefa que implicará, além de um saber sobre o Graciliano autor, um conhecimento acerca do Graciliano de papel presente apenas nas Memórias do cárcere.

Recordemos que o autor se caracteriza pelo nome próprio, o qual indica algo além do sujeito histórico e psicológico a quem designa. Ele é uma inscrição de ordem cultural, histórica e política que surge a partir de sua obra. Ou seja, o autor resulta do conjunto de textos que o identifica e dá existência. Como bem observa Michel Foucault, não se trata, no caso da autoria, de um nome próprio qualquer, mas de uma designação particular:

197

[...] o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso; para um discurso, ter um nome de autor, o fato de se poder dizer „isto foi escrito por fulano‟ ou „tal indivíduo é o autor‟, indica que esse discurso não é um discurso quotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro, imediatamente consumível, mas que se trata de um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto.198

Se o autor se constrói por meio dos discursos que produz, é na autoria que algumas funções discursivas são asseguradas, como a classificação e o reagrupamento de certo número de textos, sua delimitação e seleção, bem como a oposição desses textos a outros textos.199 A autoria garante a ideia de conjunto aos textos que produz, tornando-os familiar, ao passo que as obras, erguidas sob condições estilísticas, de circulação e funcionamento particulares, garantem a emergência daquilo que Foucault chamou de “função autor”, um sujeito racional passível de punição pelos discursos que produz e que nos liberta do fantasma do anonimato literário, ao qual rejeitamos no curso da história.200

Uma obra não existe no vazio: ela vem de um lugar que projeta objetos irmanados por características semelhantes, responsáveis por uma identidade textual que os enforma e distingue. Isso nos leva a crer que uma dada obra está associada ao conjunto de textos onde se insere e com o qual mantém uma relação de familiaridade por terem sido gestados pela mesma entidade discursiva. De fato,

o autor é aquilo que permite explicar tanto a presença de certos acontecimentos numa obra como as suas transformações, as suas deformações, as suas modificações diversas [...]. O autor é igualmente o princípio de uma certa unidade de escrita, pelo qual todas as diferenças são reduzidas pelos princípios da evolução, da

198

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução de António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. 7. ed. Veja/Passagens, 2009, p. 45.

199

idem, ibidem, p. 44-45. 200

Para Foucault, a função autor não condiz com a ideia de que a autoria se manifesta no indivíduo nem com o pensamento segundo o qual os discursos nascem de uma psicologia de um sujeito real à qual podemos ter acesso através dos textos. A função autor “não se forma espontaneamente como a atribuição de um discurso a um indivíduo. É antes o resultado de uma operação complexa que constrói um certo ser racional a que chamamos autor. Provavelmente, tenta-se dar a este ser racional um estatuto realista: seria no indivíduo uma instância “profunda”, um poder “criador”, um “projeto”, o lugar originário da escrita. Mas, de fato, o que no indivíduo é designado como é autor é apenas a projeção, em termos mais ou menos psicologizantes, do tratamento a que submetemos os textos, as aproximações que operamos, os traços que estabelecemos como pertinentes, as continuidades que admitimos ou as exclusões que efetuamos.” (idem, ibidem, p. 50-51)

maturação ou da influência. O autor é ainda aquilo que permite ultrapassar as contradições que podem manifestar-se numa série de textos: deve haver [...] um ponto a partir do qual as contradições se resolvem, os elementos incompatíveis encaixam fielmente uns nos outros ou se organizam em torno de uma contradição fundamental ou originária.201

Como dissemos acima, não podemos entender o autor-narrador-protagonista Graciliano das Memórias do cárcere dissociando-o de sua produção, que se caracteriza, sobretudo, por sua inscrição no âmbito da literatura de ficção. Uma vez que o autor sintetiza em si um “foco de expressão” que “se manifesta da mesma maneira”202

em seus textos, é preciso, então, considerar o autor das Memórias no continuum histórico e de produção literária em que se situa. Para entendermos melhor a voz narrativa que conduz o discurso das Memórias, convém compreendê-la naquela acepção que Walter Benjamin formula para identificar a origem arquetípica do narrador: ele nasce tanto da experiência acumulada distante de sua terra (como o mercador dos mares), quanto do contato com a tradição plasmada em seu país (à semelhança do agricultor sedentário).203 Ora, o narrador que testemunha os eventos do cárcere erige-se como um sujeito que, primeiramente, tem alguma experiência para comunicar; e o faz desde o lugar de quem se ausentou – forçadamente – de sua terra e, também, do ponto de vista daquele que carrega consigo uma tradição de escrita literária. Ele é, pois, um narrador que deseja transmitir sua visão acerca dos acontecimentos que experimentou e, para fazê-lo, resgata sua trajetória de escritor, assumindo, aí, suas formas costumeiras de composição da narrativa – para o que mantém sua tendência a problematizar sua própria escrita enquanto escreve.204

Em nossa leitura das Memórias do cárcere, no tocante ao narrador que aí se constrói, estamos assumindo que: 1) entre as memórias, os romances e contos de

201 FOUCAULT, 2009 p. 53. 202 Cf. idem, ibidem, p. 53-54. 203

Cf. BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Sobre arte, técnica, linguagem e política. Traduções de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio d‟Água, 1992, p. 29.

204 “[...] uma compreensão adequada do fenômeno narrativo implica simultaneamente numa compreensão adequada do fenômeno da experiência.” (BARBOSA, Márcio Ferreira. Experiência e

narrativa. Salvador: Edufba, 2003, p. 17.) Insistimos neste ponto porque ele ajuda a entender como

se manifesta o narrador da obra em análise. Repetindo: a testemunha das Memórias nasce da necessidade de se compartilharem – com base numa experiência de escrita literária engajada na compreensão do processo de narrar – acontecimentos também eles oriundos de uma experiência particular do passado.

Graciliano não há cisão radical na expressão ou no conteúdo (recordemos: o próprio autor declara que escreve apenas aquilo que, de alguma forma, passou pela sua experiência, a qual move tanto a ficção quanto as memórias), visto que seus textos dividem um ponto em comum: o autor; 2) sendo narrada em primeira pessoa por um sujeito que é a um só tempo autor, narrador e protagonista, a obra em análise faz surgir um narrador cuja natureza transita naturalmente entre a realidade e a ficção; 3) se o narrador dessa obra é, sobretudo, uma construção textual nascida de um autor reconhecido especialmente por sua pertença ao universo da literatura de ficção, sua identidade se manifesta esteticamente por ser uma expressão de natureza artística; e 4) porque é a origem textual de tudo o que conta em seu relato, esse narrador interfere diretamente no modo como se casam, na massa verbal das Memórias do cárcere, os discursos histórico e ficcional.

Nas analises que faremos nesta seção, tentaremos mostrar que o narrador das Memórias, como um artifício literário e como um autor que se implica em seu texto, constitui um sujeito que, responsável por narrar uma história sabidamente real, na qualidade de testemunha ocular dos acontecimentos, assume a impossibilidade de apreender o passado direta e objetivamente, pois sabe que a linguagem é incapaz de resgatar o mundo tal como ele é. Por isso mesmo, está sempre desconfiado de seu próprio discurso, postura também justificada pelo afastamento temporal em que se situa em relação aos eventos que tenta recordar. Por ter consciência do processo de sua escrita, esse narrador – reconhecido por ter composto obras ficcionais de inegável valor crítico e metalinguístico – acaba por revelar os andaimes do edifício literário que constrói, denunciando, assim, a ficcionalidade de sua obra, e isso o torna, do ponto de vista da história, uma testemunha às avessas.

Em todas as situações que passaremos a analisar a partir de agora, é esse mesmo narrador que nos faz ter acesso aos problemas colocados. É ele que, enfim, promove em Memórias do cárcere o diálogo entre ficção e história.

2 “Verdades? Não sei”: a escrita da história sob suspeita

Neste capítulo, vamos investigar diferentes mecanismos utilizados pelo narrador de Memórias do cárcere que suscitam uma discussão sobre o estatuto do discurso histórico na composição dessa obra. Aqui, a escrita do passado é posta em xeque na sua função de resgatar o tempo.

Primeiro, refletimos sobre a incidência da modalização do discurso como um fator de desestabilização da ideia de fidelidade da testemunha. Em seguida, analisamos a presença da ironia como uma forma de reordenação do passado e revisão do registro da história; aqui, chamamos a atenção para a ideia de que a mesma história pode ser contada de maneiras diferentes. Por fim, flagramos o narrador das Memórias desvendando a os bastidores das histórias que se erguiam do lado de dentro e do lado de fora do cárcere.

Buscaremos mostrar que, em todas essas situações, se move um narrador que problematiza a linguagem de que se vale para contar o passado. Pedagogicamente, ele ensina seu leitor a compreender o que está por trás da escrita da história – vista por ele com desconfiança –, revelando que o texto memorialístico, foco de seu trabalho, é também o produto de uma ficção.