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QUEM INVENTOU A BAHIA

No documento Caixas de música (páginas 63-69)

“Quem foi que inventou o Brasil? / Foi Seu Ca- bral! / No dia 21 de abril / Dois meses depois do Carnaval” – diz uma antiga marchinha carnavalesca de Lamartine Babo. Com a mesma liberdade poética, quem inventou a Bahia foi Seu Caymmi, nascido em 30 de abril, dois meses depois do Carnaval. Há mais de cem anos, em 1914.

Dorival Caymmi inventou a Bahia com suas can- ções praieiras, divulgadas inicialmente nos anos 1930, numa rádio de Salvador, e também a baiana tipo ex- portação, personificada por Carmem Miranda. Além de compor e gravar com ela a canção “O que é que a baiana tem”, em 1940, sugeriu-lhe a performance.

As cenas baianas estão presentes na obra do com- positor de tal forma que ele próprio se tornou um per- sonagem, do qual há histórias deliciosas, como a da criação de “João Valentão”, que teria demorado mais de dez anos. A primeira parte, em andamento rápi- do, já estava pronta: “João Valentão é brigão / Pra dar bofetão / Não presta atenção e nem pensa na vida / A todos João intimida / Faz coisa que até Deus duvida”. A ideia para a segunda só veio muito depois, vendo o chamego de um casal na praia: “É quando a morena se encolhe / Se chega pro lado querendo agradar”. Talvez a lendária preguiça baiana seja também um caymmis-

mo, na mesma canção: “Se a noite é de lua / A vontade é contar mentira / É se espreguiçar / Deitar na areia da praia / Que acaba onde a vista não pode alcançar”. Coerentemente, o autor se definia como um bocejo.

A descrição de cenas assim na obra musical de Caymmi permite associá-la com outra manifestação artística à qual ele também se dedicou, a pintura, cujos resultados podem ser vistos nas capas de alguns dos seus discos.

Na literatura, a amizade do compositor com o es- critor Jorge Amado levou o primeiro a musicar ver- sos do segundo, extraídos do romance Mar morto: “É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar”. O escritor acrescentou versos e assim nasceu mais um clássico da nossa música.

Um personagem do mesmo escritor inspirou outro clássico caymmiano, “Modinha para Gabriela”, tema de novela da TV. Os versos “Eu nasci assim eu cresci assim e sou mesmo assim / Vou ser sempre assim” le- varam à criação da “síndrome de Gabriela” para des- crever pessoas resistentes a mudanças.

As novelas e séries televisivas permanecem sendo ótimos veículos para as canções de Caymmi, desde “Gabriela” até a posterior “Joia rara”, cuja trilha so- nora incluiu “Não tem solução”, uma parceria com Carlos Guinle gravada primeiro em 1950.

Sobre temas televisivos, Danilo Caymmi, filho de Dorival, contou uma história interessante duran-

te um show na extinta casa de espetáculos Bordel, em Jardim da Penha. Em 1992, a Globo estava para lançar uma série inspirada no romance Teresa Batista

Cansada de Guerra, de Jorge Amado, e encomendou

a Danilo um tema musical. Apesar do curto prazo, ele convidou o pai para uma parceria, proposta pron- tamente aceita com uma condição: reler o livro, de 1972. O filho entrou em pânico, lembrando da fa- mosa velocidade do pai e do número de páginas do livro, quase 500. Mas a canção ficou pronta em tem- po: “Vamos falar de Teresa”. Danilo contou também, nesse show, que na Bahia existem três velocidades: lenta, lentíssima e Dorival Caymmi.

O sucesso de Gal Costa cantando “Modinha para Gabriela” na novela de 1975 levou-a a gravar, no ano se- guinte, o disco “Gal canta Caymmi”, com repertório do show de mesmo nome e a participação do compositor. Esse show foi apresentado em Vitória, no Teatro Carlos Gomes, quando Caymmi se encantou com a afinação da plateia, cantando junto com ele, e também com a hospitalidade capixaba, na casa de Marien Calixte.

Naquele tempo, ainda não eram comuns no Bra- sil os songbooks, discos dedicados a um compositor. Depois, a obra de Caymmi teve bons CDs desse tipo lançados por Claudio Nucci, Juliana Silveira, Olivia Hime, Paulo Moura, Rosa Passos e Tomás Improta, além dos filhos Nana e Dori, isoladamente ou junto com o irmão Danilo.

A expressão “songbook” por aqui é associada ao produtor Almir Chediak, responsável pelo lançamen- to de livro com partituras e um ou mais CDs por com- positor, com novas gravações de cantores diversos. No caso de Caymmi, foram quatro CDs, com 82 canções e intérpretes desde Cássia Eller até Nelson Gonçalves, passando por Tom Jobim.

O maestro, aliás, gravou em seu último disco a canção “Maricotinha” com a participação do autor, Dorival Caymmi. Mais um exemplo da velocidade do compositor baiano, a canção demorou anos para ser concluída e é de uma simplicidade tocante: “Se fizer bom tempo amanhã / Se fizer bom tempo amanhã / Eu vou!... / Mas se por exemplo chover / Mas se por exemplo chover / Não vou!...”. Gravada também por Maria Bethânia, foi título de CD e show da cantora. Para o autor, que sempre perseguiu a simplicidade, uma canção como “Ciranda, cirandinha” era a meta.

As obras musicais de Jobim e Caymmi já tinham se cruzado antes, na gravação do disco “Caymmi vi- sita Tom”, em 1964, do qual participaram a esposa de Caymmi, Stella, e os filhos Dori, Nana e Danilo. Dorival conheceu a cantora Stella Maris na Rádio Na- cional, em 1939, os dois se casaram em 1940, mas ela abandonou a profissão, permanecendo junto com ele até a morte dela, dez dias antes dele, em 2008.

Além dos citados songbooks de Caymmi, uma oportunidade para conhecer a obra do compositor

baiano é o box com sete CDs, contendo quase toda a sua obra, intitulado Caymmi amor e mar. São 162 faixas e algumas canções têm mais de uma interpreta- ção. Entre as raridades do box, destaca-se o disco Ary

Caymmi e Dorival Barroso, no qual cada compositor

interpreta músicas do outro, em gravações lançadas num LP de 1958.

Outro grande compositor cuja obra se cruza com a de Caymmi é Vinícius de Moraes, no disco e show Vi-

nícius e Caymmi no Zum Zum, em gravação de 1962.

A obra de Caymmi só pode ser considerada menor em termos de quantidade: ele viveu 93 anos e deixou pouco mais de uma centena de canções, quer dizer, não atingiu a média de duas por ano. Outro grande compositor baiano, Caetano Veloso, em mais de 70 anos de vida fez mais de 800 músicas, mais de dez por ano. Segundo a Wikipédia, Caetano disse uma vez: “Escrevi 400 canções e Dorival Caymmi 70; mas ele tem 70 canções perfeitas e eu não”. Se é ele quem diz...

Há também o bom humor do Caymmi, como na hilária letra de “Fiz uma viagem”, cujo último verso é “E deu mofo na farinha”. Ele invertia as palavras e forçava o cacófato: “E mofo deu”.

Dorival contava que, na letra da canção Marina, inspirou-se na expressão muito usada pelo filho Dani- lo, quando criança: “Estou de mal com você”. Consta que dona Stella nunca acreditou muito nisso e uma vez, após um show, Dorival fugiu assustado de um

cabra violento, com um revólver, que se apresentou como o marido da Marina.

Aqui em Vitória, essa música inspirou o professor Luiz Paixão, que deu aula de inglês para quase todos nós, a fazer uma versão nesse idioma, que começa as- sim: “Marina, the queen of the samba and tropical style”. O professor não conta se a inspiração veio so- mente da música do Caymmi, mas a sua versão pode ser vista e ouvida no Youtube, na voz do autor, acom- panhada pelo violonista Victor Humberto, também editor das imagens.

No documento Caixas de música (páginas 63-69)

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