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Quem são os CODAs?

No documento PR ELIZIANE MANOSSO STREIECHEN (páginas 41-45)

1. Algumas teorias sobre aquisição da linguagem

1.3 Quem são os CODAs?

Para discutirmos as questões de relação linguística das pessoas ouvintes com seus pais surdos, tomaremos como base os estudos de Quadros e Masutti (2007), pois essas são as autoras brasileiras que têm se debruçado nas pesquisas que tentam desvendar os mistérios que envolvem as zonas de fronteiras entre o universo surdo e ouvinte. Conforme dissemos acima, ainda são poucos os estudos sobre os CODAs e sobre as línguas de sinais.

Neste sentido, para complementar nossa pesquisa e aprofundar algumas noções a respeito dos discursos que circulam a respeito dos CODAs, aplicamos um questionário para um sujeito17 que afirma que o fato de seus pais serem surdos pode ter afetado seu desenvolvimento social, cognitivo e pessoal. Segundo ele, tornou-se uma pessoa bastante tímida, com medo de falar em público e, muitas vezes, sentia-se diferente de outras crianças e pessoas "[...] havia muita exigência da sociedade por eu ser ouvinte tinha que entender meus pais como se eu fosse responsável por eles. Meus pais eram muito dependentes de mim” (R, 2012).

A necessidade de se comunicar faz parte do instinto natural do ser humano. A comunicação, portanto, é uma maneira de compreender e ser compreendido e de interagir com seus pares fazendo parte do meio em que vive. Por isso, os filhos ouvintes

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Os depoimentos são resultados de um questionário elaborado por nós e respondido por um CODA de quarenta anos de idade do sexo masculino, filho de pai e mãe surdos. Casado com uma mulher, também bilíngue, falante da Libras/Português residentes em uma cidade do Estado do Paraná. Por questões éticas, usaremos a letra “R” para nos referirmos a ele. Devido ao histórico de quatro anos de “parcial isolamento”, R apresentou muita resistência à língua oral (portuguesa), demonstrando, inclusive, em alguns momentos, um comportamento agressivo com as pessoas que tentavam ensiná-lo a falar.

de pais surdos adquirem a língua de sinais de forma natural e há muitos CODAs que consideram a língua de sinais como sua L1.

Muitas crianças ouvintes, quando em contato com os pais surdos, aprendem e vivem a cultura surda. Usam a língua de sinais com fluência e, em alguns casos, a língua de sinais torna-se a L1 dessas crianças.

Até aos quatro anos de idade eu me comunicava somente por meio da Libras. Meu contato com a língua portuguesa era completamente restrito, pois meus pais não me permitiam brincar na rua com os vizinhos. Os amigos que frequentavam minha casa também eram surdos. Ainda hoje tenho preferência em usar a Libras, pois me sinto mais seguro (R, 2012).

A aquisição/aprendizagem de duas línguas simultâneas pode gerar um intercâmbio espontâneo entre as culturas surda e ouvinte, o que acarreta uma mescla linguística, pelo fato de a pessoa decidir por escolhas linguísticas para determinadas situações.

Neste sentido, Quadros e Masutti (2007, p. 263,264) explicam que:

[...] os CODAs encontram na comunidade surda o espaço de segurança, o porto seguro para viver a intensidade de uma língua constituída no corpo e na forma de olhar. Libras é o reencontro e o conforto de uma segurança de volta à casa paterna, a “safe house”; o Português, por outro lado é a língua do colonizador, a necessidade da zona fronteiriça de contato, que impõe espaços de negociação e a revisão permanente do encontro com o outro ouvinte, que faz parte também do ser CODA.

Há histórias de CODAs brasileiros que aprenderam a língua portuguesa somente depois de ingressar na escola. Estas crianças, normalmente, tornam-se intérpretes de seus pais. Algumas, inclusive, perdem sua infância acompanhando os pais em consultas médicas, ao supermercado, à farmácia e interpretando conversas, programas televisivos etc. “No Brasil, as pessoas que sabiam língua de sinais eram consideradas intérpretes. Como os CODAs usavam língua de sinais, eles tornavam-se intérpretes compulsórios, pelo menos para as próprias famílias” (QUADROS; MASUTTI, 2007, p. 261).

As autoras, por meio de um estudo de caso de uma CODA, abordam aspectos relacionados às fronteiras e contato entre as línguas de sinais e orais dentro do processo bicultural (cultura surda e ouvinte) vivenciadas pelos CODAs. Elas destacam que “a experiência de nascer, viver e crescer em meio a uma família de pais surdos faz com que as representações culturais, sociais, políticas e linguísticas sejam atravessadas por

substratos filosóficos, éticos e estéticos marcados por tensões em zonas fronteiriças dos CODAs” (Op. cit. p. 246).

Pratt (1999, 2000), citado por Quadros e Masutti (2007, p 246), define a zona de contato como:

aqueles espaços sociais em que as duas culturas se encontram e se constroem em linhas de diferenças, em contextos assimétricos de poder [...] esse lugar pode oscilar entre um lugar de belicosidade e de perigo e de entendimento mútuo, o que é imprevisível e apenas descoberto nas relações.

Esses lugares são denominados por Pratt de safe houses (casa segura), que possibilitam aos grupos sociais constituírem suas identidades e suas comunidades e protegerem-se dos sistemas opressivos.

A esse respeito, Quadros e Masutti (2007, p. 248) ressaltam que:

Em muitas situações familiares, um CODA passa pelo impasse do campo representacional de línguas distintas. Nos eventos cotidianos, no encontro de intermediação entre surdos e ouvintes, há pequenos conflitos gerados pelos distintos campos de significações. Os vínculos estreitos dentro de um circulo familiar onde compartilham intimidades também produzem sentidos que interferem na forma como os sujeitos interagem nas esferas sociais e as percebem.

As autoras dizem ainda que “para as famílias surdas, os CODAs são vistos como possíveis “pontes” entre os mundos surdo e ouvinte” (p. 261). Neste sentido, R faz a seguinte declaração:

[...] durante a minha infância, muitas vezes, me foi tirada a oportunidade de ser criança, pois era obrigado a interpretar programas televisivos aos meus pais ou então acompanhar minha mãe ao ginecologista. Toda vez que a minha mãe me chamava, não era para me dar colo, carinho, mas para eu interpretar algo. Queria que, às vezes, ela me visse como filho e não apenas como seu intérprete (R, 2012).

No convívio familiar, os CODAS passam por muitas situações interlinguísticas conflitantes. Isso se deve ao fato de que a comunicação ou a expressão de um fato ou palavra pode ser feita de uma maneira em uma língua embora não o seja em outra e vice-versa. Essa dificuldade ou barreira entre línguas pode interferir ou dificultar a comunicação pessoal do próprio CODA, além das barreiras comunicativas encontradas entre ele e seus familiares. Além disso, vale lembrar de que nem todos os CODAs têm o privilégio de ter pais que se comunicam por meio da língua de sinais. Muitos não

tiveram a oportunidade de conviver com falantes dessa língua e por isso a comunicação ocorre por meio de gestos caseiros criados pela própria família, dificultando, assim, ainda mais a interação comunicativa.

Esta breve explanação acerca das experiências de um CODA serve para adensar a discussão que segue, a qual tem como destaque os sujeitos desta pesquisa. P e M ainda são crianças e, portanto, não passaram pela responsabilidade de interpretar eventos à mãe. Essa ponte descrita pelas autoras, Quadros e Masutti (2007), conforme observado em nossa pesquisa, tem sido realizada pela avó dos sujeitos. Ainda que ela não saiba se comunicar em Libras, por meio de gestos caseiros e leitura labial, consegue transmitir as informações a sua filha surda.

Quando nascemos, estamos com nossos sentidos naturalmente prontos para serem usados e desenvolvidos. Isso não depende que outra pessoa nos ensine. Ver, ouvir, sentir, cheirar e tocar são habilidades que aprendemos sozinhos. O que não conseguimos é desenvolver uma língua sem aprendê-la com alguém. A linguagem só se desenvolve por meio da interação com outra pessoa que tenha domínio da fala. É uma habilidade passada de geração a geração, ensinando e aprendendo (SACKS, 1989).

O desenvolvimento linguístico da criança depende da interação que ocorre desde cedo no seio da família por meio da comunicação, da presença da língua manifestada no ambiente, de ações sociais das quais participa, das experiências que envolvem aspectos linguísticos entre outros aspectos.

Alguns estudos têm constituído diferentes posicionamentos sobre a interação que ocorre principalmente entre filho ouvinte e mãe surda, uma vez que as situações da aprendizagem linguística da criança ocorrem no contato com a mãe. Mas, no caso dos CODAs, há uma questão que direciona a este estudo: como ocorre a construção da linguagem da criança ouvinte se a sua mãe na condição de surda apresenta uma linguagem diferente, no caso, a Libras?

Conforme acima descrito, os CODAs de certa forma, “transitam” entre as culturas linguísticas nas quais estão envolvidos. Falar em línguas, portanto, é também falar em culturas. Ambas estão associadas. Para tanto, no capítulo 2, abordaremos questões relativas à alternância de línguas, fenômeno detectado nas interações comunicativas entre os sujeitos da pesquisa no contexto familiar. Discorreremos, também, a respeito do conceito de bilinguismo e de acordo com McCleary (2009), Bloomfield (1933), Grosjean (1982), entre outros.

CAPÍTULO 2

Neste capítulo, apresentaremos algumas teorias que discutem o code-switching (alternância de línguas), fenômeno desencadeado nos diálogos de pessoas bilíngues. E para que possamos afirmar se os CODAs, sujeitos desta pesquisa, podem ser considerados sujeitos bilíngues ou plurilíngues, destacaremos o que alguns autores discutem sobre esta questão.

No documento PR ELIZIANE MANOSSO STREIECHEN (páginas 41-45)