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No campo da EJA, existem vários estudos que se ocuparam da caracterização de seu público (HADDAD, 2002). Com base nesses trabalhos e no nosso conhecimento sobre os jovens e adultos da EJA, construído a partir da experiência prática vivenciada com esse grupo, procuraremos nesta seção responder à questão acima: “Quem são os sujeitos da EJA?”. Desde já, podemos afirmar que “idade mais avançada” não é o único traço que distingue esses jovens e adultos dos alunos da escola “regular”. Outros fatores precisam ser considerados para entendermos de forma mais precisa a EJA: origem social, histórico escolar prévio e inserção no mercado de trabalho.

Comecemos então tratando da origem social dos alunos da EJA. De uma maneira geral, os sujeitos da modalidade de ensino em questão são oriundos das camadas populares, definidas por Giovanetti como

(...) uma das categorizações existentes ao nos referirmos à população pobre, aquela que vivencia o não-atendimento a questões básicas de sobrevivência (saúde, trabalho, alimentação, educação). E para o campo da EJA, são jovens e adultos que, não tendo tido o acesso e/ou permanência na escola, em idade que lhes era de direito,

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retornam hoje, buscando o resgate do mesmo. (GIOVANETTI, 2007, p. 244).

Na trajetória desses alunos, foi-lhes negada a vivência do direito à educação (em um tempo considerado próprio para isso) e de vários outros direitos como o acesso aos bens materiais e culturais de prestígio (FONSECA, 2005; ARROYO in SOARES, GIOVANETTI & GOMES, 2007). Arroyo (2007) destaca que os jovens e adultos da EJA repetem essa condição histórica de negação e marginalização que acompanha seus antepassados pertencentes, assim como eles, aos mesmos coletivos sociais, raciais, étnicos e culturais. Diante desse quadro, o autor afirma que “Desde que a EJA é EJA esses jovens e adultos são os mesmos: pobres, desempregados, na economia informal, negros, nos limites da sobrevivência.” (ARROYO in SOARES, GIOVANETTI & GOMES, 2007, p. 29).

A negação do direito à educação a esse público se inicia com as antigas condições educacionais brasileiras, que não disponibilizavam escolas e vagas suficientes para o atendimento de toda a população – situação que ainda hoje se verifica em algumas regiões do Brasil. A inserção escolar dos grupos socioculturais aos quais pertencem os jovens e adultos da EJA só se deu recentemente e, mesmo assim, não houve uma reconfiguração da organização e do funcionamento pedagógico da instituição para o atendimento eficiente desse novo público que, junto com os filhos da classe média, constituíam o novo contingente escolar (FONSECA, 2005). As inadequações do ensino juntamente com as condições sociais e econômicas dos grupos populares passam a ser fatores desencadeadores da evasão escolar. Como afirma Fonseca (2005), o aluno deixa então a escola porque não há vaga, professor ou porque não possui o material necessário para acompanhar as aulas, ou devido aos horários escolares não-compatíveis com seus afazeres dentro e fora do lar, ou porque é preciso trabalhar para manter a si mesmo e a família. Segundo a autora, esses alunos “Deixam a escola sobretudo porque não consideram que a formação escolar seja assim tão relevante que justifique enfrentar toda essa gama de obstáculos à sua permanência ali.” (FONSECA, 2005, p.33).

No entanto, os alunos evadidos do sistema escolar tendem a não reconhecer em toda essa dinâmica social, política e econômica as reais e principais razões que os levaram a deixar a escola. Geralmente, a evasão é considerada por eles, pela instituição e até mesmo

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pelo senso comum, como o resultado do baixo desempenho e do fracasso pessoal do discente que não foi capaz de levar adiante os estudos, apesar das dificuldades enfrentadas (FONSECA, 2005). Tal justificativa socialmente forjada gera nesses alunos, que futuramente constituirão o contingente da EJA, os sentimentos de incapacidade e de inferioridade frente ao sistema escolar. A convivência com os estudantes da EJA e as pesquisas nessa área nos revelam que, na maioria das vezes, tais sentimentos acompanham os alunos jovens e adultos, mesmo depois do retorno tardio à escola. A incapacidade de aprender é uma noção persistente entre eles, que se reforça com a concepção recorrente entre os sujeitos da EJA de que a idade avançada é um empecilho para o aprendizado. Fonseca (2005) afirma que este último tipo de pensamento reflete a “ideologia do dom”8, que busca nas características do indivíduo as razões de seu sucesso ou de seu fracasso. De acordo com a mesma autora, há estudos psicológicos que comprovam a capacidade de aprendizagem do adulto e atribuem mais a outros fatores de ordem diversa do que à idade, em si, a definição do nível de competência cognitiva das pessoas de idade mais avançada.

Embora não tenham concluído ou cursado a Educação Básica, os sujeitos da EJA carregam consigo uma vasta gama de conhecimentos, derivados da vivência e da experiência pessoal de cada um diante das diversas situações da vida que lhes exigiam a tomada de certas atitudes. Infelizmente, a sociedade de uma maneira geral e a maioria dos estudantes jovens e adultos não percebem e não valorizam esses saberes construídos acumulados ao longo de suas trajetórias. Reconhecer a especificidade dos alunos da EJA é reconhecer também seus saberes experienciais como parte do conhecimento socialmente produzido, valorizando-os e dialogando com eles (ARROYO, 2007).

O não-reconhecimento e a não-valorização, por parte dos próprios alunos da EJA, dos saberes produzidos por eles através da vivência são, em parte, resultado da visão tradicional que esses sujeitos e a sociedade, de uma maneira geral, possuem acerca do ensino, de sua organização e das práticas de letramento nele presentes. Associa-se à instituição escolar os conhecimentos e as práticas de leitura e escrita valorizadas socialmente e consideradas como necessárias para a ascensão social e econômica. Nessa

8 Segundo Fonseca (2007), a “ideologia do dom” foi levantada pela autora Magda Soares, em seu livro

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perspectiva, os demais conhecimentos que fogem do âmbito escolar passam a ter valor menor, pois não estão relacionados às práticas de prestígio e poder. Tal concepção, que vai de acordo com o modelo autônomo do letramento (um dos temas abordados no próximo capítulo deste trabalho), leva muitos sujeitos, incluindo os jovens e adultos da EJA, a acreditarem que o conhecimento obtido através das experiências vivenciadas ao longo da vida não pode fazer parte do universo escolar.

O fato de a grande maioria de seus alunos serem trabalhadores é outra especificidade do público atendido pela EJA, que exerce influência significativa sobre a mesma. A relação existente entre a EJA e o trabalho gera uma dinâmica contraditória, mas constituinte da modalidade de ensino (HADDAD, 2002). Os jovens e adultos voltam a estudar almejando, entre outras coisas, um emprego com melhores condições e remuneração mais alta. No entanto, muitas vezes esse retorno é interrompido em virtude do próprio trabalho que gera a fadiga ou apresenta jornadas que os impedem de dar continuidade aos estudos, mesmo no período noturno com sua flexibilidade de horários e de freqüência. Entre os estudantes participantes desta pesquisa, por exemplo, há um número significativo de empregadas domésticas que sempre dormiram nas casas onde trabalhavam. Segundo essas mulheres, os antigos patrões as impediam de estudar quando descobriam que elas deixavam o trabalho no período noturno para irem à escola. Uma das exigências para a permanência nesse tipo de emprego era, e em alguns casos continua sendo, a disponibilidade para o trabalho no período noturno.

Vale destacar que o trabalho não é o único fator motivador que leva à continuidade dos estudos pelos jovens e adultos da EJA. Segundo Fonseca (2005), apesar de haver motivações e/ou necessidades externas que contribuam para o retorno à escola – tais quais a exigência freqüente do mercado por maior escolaridade, a possibilidade de se conseguir trabalho e salário melhores por meio da qualificação – há também motivações internas, de ordem pessoal, responsáveis por esse retorno. Dentre elas podemos citar a busca pela realização do desejo de concluir os estudos, pela melhora da qualidade de vida através do aumento do nível de escolarização; a vontade de acompanhar os filhos no processo de

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escolarização; o desejo de se sentir útil, de ler e escrever melhor e ainda a concepção de que o momento vivenciado é adequado para a volta à escola9.

A partir de todas essas especificidades concernentes ao público da EJA e aqui levantadas, esperamos que tenha se explicitado ainda mais o quão peculiar são esses sujeitos, sobretudo quando comparados aos alunos do ensino “regular”. Tal caracterização deixa nítida a necessidade de uma abordagem pedagógica diferenciada para o atendimento eficiente dos estudantes jovens e adultos, embora essa modalidade de ensino esteja inserida no contexto maior da Educação Básica. A condição socioeconômica dos sujeitos da EJA, suas demandas e suas trajetórias de vida requerem propostas pedagógicas situadas – incluindo aí aquelas que se prontificam a utilizar o computador em sala de aula – relevantes para sua experiência de vida e necessidades particulares. A seção que segue discute de forma mais detalhada como as iniciativas de EJA foram se estruturando pedagogicamente para atender às especificidade desse público.

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