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Ao falarmos estamos realizando um ato linguístico inédito, mas que está amparado por modelos precedentes. Isso quer dizer que o falante utiliza, para sua expressão individual, moldes e estruturas da língua de sua comunidade. Essas estruturas, normais e tradicionais em uma comunidade, recebem o nome de norma. (COSERIU, 1979).

Ainda de acordo com Coseriu (1979), além da norma, há também o sistema, que é algo amplo, um conjunto de possibilidades de que o falante dispõe para realizar seu ato linguístico. O sistema não é opressivo e só exige que não se extrapole as condições funcionais do sistema linguístico. Já a norma, essa se impõe ao indivíduo:

A norma é, com efeito, um sistema de realizações obrigadas, de imposições sociais e culturais, e varia segundo a comunidade. Dentro da mesma comunidade linguística nacional e dentro do mesmo sistema funcional é possível comprovar várias normas (linguagem familiar, linguagem popular, língua literária, linguagem erudita, linguagem vulgar etc.), distintas sobretudo no que concerne ao vocabulário, mas amiúde também nas formas gramaticais e na pronúncia... (COSERIU, 1979, p. 75)

Segundo Preti (1982, p. 45),

[...] o indivíduo sacrifica sua criatividade, em nome de uma necessidade comunicativa, enquadrando-se inconscientemente, na linguagem do grupo em que atua; a comunidade, por seu turno, admitindo a criação individual, incorpora hábitos linguísticos originais que atualizam os processos da fala coletiva, e evolui naturalmente, procurando uma melhor forma de comunicação.

Podemos entender que a norma é reguladora, mas admite inovações individuais que podem ser aceitas pela coletividade, vindo a integrar a norma e culminando na evolução da língua, que, segundo Preti (1982), processa-se naturalmente em todos os sentidos.

Coseriu (1979) afirma que os indivíduos conhecem ou não a norma, de modo que conhecendo-a podem acatar a ela ou ignorá-la, fazendo uso de outras possibilidades do sistema. O autor afirma ainda que a forma original de se expressar dos indivíduos que não conhecem ou não acatam à norma pode ser tomada como modelo por outros indivíduos, constituindo-se, consequentemente, em norma. Apesar disso, novos elementos não são arbitrariamente incorporados à norma. Para que uma infração, isto é, um desvio da norma, seja aceito pelo grupo, é preciso que toda a comunidade esteja disposta a cometer tal infração e ela passe a ser vista como regra (VENDREYES, 1968, p.268 apud COSERIU, 1982, p.47).

De acordo com Preti (1982), a norma garante a uniformidade da língua, uma vez que a própria sociedade se encarrega de preservar usos por ela mesma estabelecidos. Por isso que os indivíduos visam estar de acordo com a norma, buscando saber o que é certo ou não dizer.

Conforme o que é apontado por Coseriu (1979) e Preti (1982), existem várias normas na sociedade, mas há também um valor atribuído a essas normas. O uso da expressão norma culta está disseminado em nossa sociedade, sendo essa uma norma dotada de prestígio social em detrimento de outras normas. Quanto à diferenciação que existe entre norma culta e norma popular, Preti afirma que

[...] a comunidade acerta, de comum acordo, as melhores maneiras de comunicar-se. E, depois, a própria comunidade elege as formas pelas quais tais comportamentos serão mantidos. A divisão e subdivisão das normas (popular, comum, culta etc.) correspondem a graus de ascensão ou descendimento da escala linguística da comunidade que, às vezes, pode ter força de verdadeira classificação social do falante. Em outras ocasiões, pode indicar que uma mesma comunidade escolhe certa linguagem para determinada circunstância social e escolhe outra para circunstância diversa (PRETI, 1982, p. 49-50).

Ainda segundo Preti (1982), a norma culta representa um ideal linguístico a ser seguido. É a norma usada pelas pessoas cultas da sociedade e disseminada pelos meios culturais, científicos e artísticos. É, ainda, a norma efetivada por meio da escrita e tradicionalmente ensinada na escola.

Não obstante o uso corrente da expressão norma culta, especialmente, nos meios acadêmico e escolar, autores como Antunes (2009), Bagno (2007a) e Faraco (2008) criticam a forma como a expressão tem sido empregada, tanto pelo viés ideológico implícito no uso do adjetivo “culta” quanto pela confusão que a expressão “norma” tem gerado.

Existem discussões muito abrangentes em torno da questão. Primeiramente, vale referir que a designação de norma culta não é das melhores, do ponto de vista ideológico, pois favorece a suposição de que aqueles que a adotam é que são os cultos, têm cultura; e aqueles que não a adotam são os incultos, não

têm cultura. Mesmo não sendo explícito, esse contraste pode ser pernicioso,

se não se chama a atenção para seus efeitos discriminatórios, sobretudo em relação àqueles falantes das classes sociais menos favorecidas. (ANTUNES, 2007, p. 87, grifo da autora).

A ideia de que alguns indivíduos têm cultura, portanto são cultos, e outro não têm amparo científico ou histórico. Como afirma Antunes (2007, p.88) “[...] todos somos cultos ou temos cultura, como defende a antropologia, no sentido de que criamos, ao longo da história,

nossas formas de vida, nossas representações e manifestações simbólicas ...”. No entanto, pode haver uma avaliação social do que é aceito como cultura.

Para Bagno (2007a), existe uma duplicidade de sentidos para o conceito de norma assinalado pelo dicionário Houaiss que não deveria existir. A palavra norma, de acordo com o dicionário, é usada tanto para indicar o que normal, de uso corrente e amplo, quanto para designar, no que tange à língua, o que é ideal, elaborado. Além disso, para Bagno, existe outro problema no uso da expressão “norma culta”, que é o emprego do adjetivo “culta”.

Dos diversos adjetivos usados para qualificar a norma, o mais comum, certamente, é o adjetivo culta, e a expressão norma culta circula livremente nos jornais, na televisão, na internet, nos livros didáticos, na fala dos professores, nos manuais de redação das grandes empresas jornalísticas, nas gramáticas, nos textos científicos sobre língua etc. (BAGNO, 2007a, p.42, grifo do autor).

Ainda segundo Bagno (2007a), o uso da expressão “norma culta” está revestido de equívocos. Um deles é o de que existe um modelo de língua que deve ser seguido por quem quiser usar a língua de modo correto.

[...] existe uma única maneira ‘certa’ de falar a língua e que seria aquele conjunto de regras e preceitos que aparece estampado nos livros chamados

gramáticas se baseariam, supostamente, num tipo peculiar de atividade

linguística – exclusivamente escrita – de um grupo muito especial e seleto de cidadãos, os grandes estilistas da língua, que também costumam ser chamados de ‘os clássicos’. Inspirados nos usos que aparecem nas grandes obras literárias, sobretudo do passado, os gramáticos tentam preservar esses usos compondo com eles um modelo de língua, um padrão a ser observado por todo e qualquer falante que deseje usar a língua de maneira “correta”, “civilizada”, “elegante” etc. É esse modelo que recebe, tradicionalmente, o nome de norma

culta. (BAGNO, 2007a, p. 43, grifo do autor).

Associar uma variedade da língua com a escrita e a tradição literária e tomá-la como padrão é um recurso que existe desde a Antiguidade Clássica, quando uma variedade do latim foi associada à literatura Greco-latina e alçada ao patamar de padrão (GNERRE, 1985). Também foi nesse período histórico que surgiu a disciplina batizada de gramática, palavra que, em grego, significava “a arte de escrever” (BAGNO, 2007a). Ou seja, admitir uma norma como culta é algo muito antigo, que está mais revestido de questões filosóficas e políticas do que propriamente linguísticas. Segundo Bagno (2007a), ao tomarem a língua dos escritores do passado como modelo, excluindo completamente a língua falada pelo povo e ao considerarem

as mudanças ocorridas ao longo do tempo na língua como decadência, os fundadores da gramática e seus discípulos propagaram – e ainda propagam – o preconceito linguístico, pois, assim, tudo que foge ao modelo é considerado erro. “Por isso, até hoje, as pessoas julgam a língua falada usando como instrumento de medição a língua escrita literária mais consagrada: qualquer regra linguística que não esteja presente na grande literatura [...] é imediatamente taxada de ‘erro’.” (BAGNO, 2007a, p.46).

Bagno (2007a) aponta ainda outro problema relacionado ao uso da expressão “norma culta”.

A outra definição que se dá ao rótulo norma culta se refere à linguagem concretamente empregada pelos cidadãos que pertencem aos segmentos mais favorecidos da nossa população. [...] sendo esses falantes cultos definidos por dois critérios de base: escolaridade superior completa e antecedentes biográfico-culturais urbanos. (BAGNO, 2007a, p.46).

Novamente, os critérios para estabelecer quem são os falantes cultos é muito mais social do que linguístico e aqueles que gozam de maiores privilégios econômicos têm tais privilégios estendidos à variedade da língua que usam.

Faraco (2008) também critica o uso da expressão “norma culta”. Para o autor, o termo tem sido utilizado para indicar “[...] um conjunto de preceitos dogmáticos que não encontram respaldo nem nos fatos, nem nos bons instrumentos normativos, mas que sustentam uma nociva cultura do erro e têm impedido um estudo adequado da nossa norma culta/comum/standard.” (FARACO, 2008, p. 94). Faraco usa, então, o termo “norma curta” para indicar essa norma idealizada da língua, que reúne preceitos normativos exageradamente puristas, fruto de uma tradição histórica, mas que em nada corresponde à língua falada até mesmo pelos falantes mais letrados da sociedade. “A norma curta é a miséria da gramática”. (FARACO, 2008, p. 94, grifo do autor).

Em uma abordagem que está mais próxima da realidade de uso da língua, Faraco (2008, p. 42), conceitua norma como “[...] termo que usamos, nos estudos linguísticos, para designar os fatos da língua usuais, comuns, correntes numa determinada comunidade de fala”.

Não é por acaso também que, no imaginário social, a norma culta representa uma marca de excelência ou, pelo menos, da boa qualidade de uso da língua; quer dizer, instala-se a vinculação entre a boa linguagem e a classe social de maior prestígio. Consequentemente, essa norma culta é a norma prestigiada, e a norma estigmatizada é exatamente a norma da classe menos favorecida. Daí à vinculação da norma culta ao poder é apenas um salto: ao poder político,

ao poder das agências de informação e de comunicação, ao poder exercido pela escola, inclusive. Mas também daí ao preconceito linguístico é apenas outro pulo, pois o uso da língua que se afasta da norma culta é considerado

português de morro, rude inferior, tosco, estropiado, corrompido, entre outras

qualificações menos edificantes. (ANTUNES, 2007, p. 90, grifo da autora).

Diante disso, Antunes (2007) faz uma distinção entre norma culta ideal e norma culta real. “A norma ideal, como o próprio nome sugere, corresponde àquela norma concebida, pensada, prevista e proposta como a norma representativa dos usos da língua considerados cultos. Trata-se, portanto, de uma idealização, no sentido próprio do termo”. (ANTUNES, 2007, p. 92). Já a norma culta real:

[...]corresponde àqueles usos que são fato, ocorrência; isso é, aqueles que podem ser atestados como concretamente realizados, em diferentes suportes em que se expressam cientistas, escritores, repórteres, cronistas, editorialistas, comentaristas, articulistas, legistas e outros ‘istas’ da comunidade encarregada da informação pública e formal. Os usos que ocorrem nesse contexto é que representam os parâmetros da norma culta real, aquela que deveria constituir a referência de identificação da norma prestigiada, uma vez que corresponde aos falares mais típicos da interação escrita, pública e formal. (ANTUNES, 2007, p. 93)

Considerando todo o exposto acima, neste trabalho, utilizamos a expressão norma de prestígio para nos referirmos à norma que é valorizada pela sociedade. Acreditamos que essa norma deve ser ensinada pela escola, contudo sem desprezar a norma que já é de uso corrente do aluno.

[a norma de prestígio] é a norma tradicionalmente ensinada pela escola, embora hoje se pense que a função do organismo escolar não seja substituir no aluno a norma popular que ele já traz com sua linguagem falada, pelos modelos da norma culta, mas sim de mostrar-lhe que ambas podem coexistir e ser utilizadas na comunicação, conforme as circunstâncias. (PRETI, 1982, p. 54).

Tradicionalmente, para a escola, a norma de prestígio corresponde à fala sem erros, que segue as regras estipuladas pela gramática normativa e que goza de prestígio social. Entretanto, acreditamos que o ensino escolar de língua portuguesa distancia a norma ensinada da norma real por estar, muitas vezes, apegada à norma ideal, existente somente em compêndios de gramática normativa e não utilizada nem mesmo pelos próprios professores que a ensinam.

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