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2.3 GÊNERO COMO CATEGORIA DE ANÁLISE

2.3.2 A Questão da Performatividade do Gênero

De acordo com Butler (2016), é preciso pensar muito além das categorias “homem” e “mulher”, visto que são noções instáveis. Segundo Butler, o reforço das categorias de identidade “engendram, naturalizam e imobilizam” (BUTLER, 2016, p. 24). Assim como Nicholson (2000), Butler acredita que a diferenciação sexual pareceu importante para o feminismo, mas é preciso ir além. De acordo com a autora, a diferença sexual é simultaneamente material e discursiva, funcionando como um ideal regulatório, cuja materialização é imposta através da reiteração forçada destas normas. Deste modo, não se pode universalizar a experiência das mulheres, como se o sujeito denominado “mulheres” fosse presumido e estável. Além disso, é preciso vincular as constituições de classe, raça, etnia e outros eixos de relações de poder.

Outra crítica de Butler – que se aproxima de Nicholson – é de que, em muitos estudos, o corpo é um meio passivo ou uma situação, opondo o construcionismo social ao determinismo biológico. Isto porque “as opressões não podem ser sumariamente classificadas, relacionadas casualmente e distribuídas entre planos pretensamente correspondentes ao que é ‘original’ e ao que é ‘derivado’” (BUTLER, 2016, p. 38). Além disso, “quando ‘o corpo’ é apresentado como passivo e anterior ao discurso, qualquer teoria a respeito dele, culturalmente construída, tem a obrigação de questioná-lo como um construto cuja generalidade é suspeita” (BUTLER, 2016, p. 223). A partir dessa reflexão, a autora se questiona se essa “unidade”, na categorização e conceituação de gênero, é realmente necessária para uma ação política efetiva. Ou se não seria, apenas, uma norma excludente.

Se partirmos da identidade como premissa, possivelmente novos conceitos de identidade serão excluídos e tratados como incoerentes, descontínuos ou não inteligíveis. Estes seres se localizariam fora da norma, tratados como um desvio, como se houvesse uma “verdade” no sexo, nos termos foucaultianos. Segundo Butler, “esta matriz excludente, pela qual os sujeitos são formados, exige a produção simultânea de um domínio de seres abjetos” (BUTLER, 2000, p. 112), que ocupam espaços inabitáveis, não gozando do status de sujeito. De acordo com o que Butler denomina de “sistema de gênero binário oposicional” (BUTLER, 2016, p. 52), homens e mulheres são vistos como opostos e/ou complementares em um âmbito linguageiro da heterossexualidade presumida. Deste modo, “a instituição de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada exige e regula o gênero como uma relação

binária, em que o termo masculino diferencia-se do termo feminino, realizando-se essa diferenciação por meio das práticas do desejo heterossexual” (BUTLER, 2016, p. 53).

Essa estrutura binária é apresentada como uma coerência interna. Mas necessita de uma reiteração e naturalização da heterossexualidade compulsória, funcionando como um aparelho de produção excludente. Butler (2000) aponta que “o fato de que essa reiteração seja necessária é um sinal de que a materialização não é nunca completa, que os corpos não se conformam, nunca, completamente, com as normas pelas quais sua materialização é imposta” (BUTLER, 2000, p. 111). Neste sentido, a autora sugere pensar o gênero como performático, pois ele está não apenas no discurso, mas também na materialidade do corpo, através de atos, gestos e ações que são performativos. Assim, os gêneros não serão verdadeiros nem falsos, mas apenas efeitos da verdade.

Os vários atos de gênero criam a ideia de gênero, e sem esses atos não haveria gênero algum, pois não há nenhuma ‘essência’ que ele expresse ou exteriorize, nem tampouco um ideal objetivo ao qual aspire, bem como não é um dado de realidade. Assim, o gênero é uma construção que oculta normalmente sua gênese; o acordo coletivo tácito de exercer, produzir e sustentar gêneros distintos e polarizados como ficções culturais é obscurecido pela credibilidade dessas produções (BUTLER, 2016, p. 241).

A performatividade necessita de repetições em ações públicas, sendo que normalmente ela não é entendida como performática em si, mas como algo natural. O efeito do gênero deve ser produzido incessantemente através de gestos, movimentos e estilos corporais, constituindo uma ilusão de permanência deste eu (BUTLER, 2016). Na mídia, é possível ver diversos exemplos da heterossexualidade compulsória, atuando de acordo com um binarismo hierárquico. O filme “Ele não está tão a fim de você” expõe esta problemática, mostrando como regra uma situação em que a mulher é a pessoa mais apaixonada da relação, enquanto o homem não está muito interessado.

Figura 11 – Cena do filme “Ele não está tão a fim de você” (2009)

Fonte: Cinema UOL19.

Lançado próximo ao Valentine’s Day de 2009, nos Estados Unidos (equivalente ao Dia dos Namorados no Brasil), o filme mostra diversas situações em que a mulher está mais “a fim” da relação do que o próprio homem. Quando o contrário ocorre, ou seja, quando a mulher não está muito ligada à relação, há uma exceção. A personagem Gigi, interpretada por Ginnifer Goodwin (Figura 11) representa a insegurança e a ansiedade de uma mulher esperando o telefone tocar, após o encontro com um homem. Esta relação pode ser compreendida em termos de heterossexualidade compulsória, reiterando a norma e pondo as personagens dentro de uma matriz reguladora de gênero.

Estas performatividades também podem ser descontínuas, o que aqui podemos relacionar com o conceito de ruptura em Lotman (1978), como uma desordem ou desorganização de uma esfera aparentemente estruturada. De acordo com Butler, não é possível pensar o gênero como uma construção social imposta na matéria, em que o natural é cancelado pelo social, assim como o cabide descrito por Nicholson (2000). Desse modo, se partirmos do gênero como uma categoria (SCOTT, 1995), é possível fazê-lo por meio da perspectiva da perfomatividade do gênero, questionando-se "através de que normas regulatórias é o próprio sexo materializado" (BUTLER, 2000, p. 118). Assim, acredita-se que será possível articular a materialidade do corpo e as práticas discursivas encenadas através do discurso publicitário.

19 Disponível em: <http://cinema.uol.com.br/album/ele-nao-esta-tao-a-fim-de-voce_album.htm?abrefoto=1>.