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A questão recolocada por Sócrates

2. Apologia de Sócrates ou apontamentos para um novo modelo de paideía

3.2. A questão recolocada por Sócrates

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Paul Grenet observa que “Laques é um dos raros diálogos onde Sócrates deve responder a uma questão que ele mesmo não colocou (ao lado de Crátilo, Mênon,

Banquete e Fédon).” 

Não obstante, Sócrates recoloca a questão, dando um novo

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sentido ao diálogo. Ao invés de dar seu voto a um dos generais, o que tornaria inviável o exame da questão, Sócrates aconselha Lisímaco, primeiro, a saber se havia entre eles alguém cujo conhecimento pudesse ser reconhecido por todos naquele assunto. Pois a questão deveria ser respondida pelo conhecimento, epistḗmē, e não pela maioria,

plḗtos (184e). E Melésia, em sua única participação no diálogo, consente com a

posição de Sócrates. Depois, cada qual deveria, perante os demais, indicar quais haviam sido seus professores e, neste caso, se estes dominavam o conhecimento acerca do qual ensinavam. Caso ali houvesse alguém que dominasse tal conhecimento sem ter tido o auxílio de professor algum, este deveria demonstrar por meio das próprias

7 Grenet, P. Note sur structure du Lachès, p.122. 65

7 Em sua tradução francesa para a edição Belles-Lettres, Alfred Croiset nota que Platão coloca o escravo ao 66

lado do homem livre. Segundo Croiset, “Antifonte e Alcídamas reconheciam ao mesmo tempo ou mesmo antes a igualdade entre os homens. A desigualdade entre os homens vem sobretudo de uma diferença de educação, segundo o autor desconhecido (pseudo-Xenofonte) do opúsculo Sobre a república dos atenienses.”

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ações, érga, que alguém, entre atenienses ou estrangeiros, escravos ou homens livres 

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por meio de tais ações, tivesse se tornado um homem de valor, agathós 67 (186a-b).

Sócrates então admite que, embora o desejasse, nunca teve recurso para pagar os honorários que eram cobrados pelos sofistas, os únicos que se diziam capazes de fazer de alguém um homem de bem e de valor (kalós kagathós) 68 e que, sem

professores neste assunto, por esforço próprio nunca descobriu nada desta arte (186c). E, tendo reconhecido nada saber sobre este assunto, Sócrates insiste, em seu conselho a Lisímaco, que faça perguntas aos generais (186e; 187b). Após Laques e Nícias concordarem em responder às questões sugeridas por Sócrates a Lisímaco, este se abdica da tarefa de perguntar e pede àquele que o fizesse em seu nome.

A partir daí, Sócrates decide novamente recolocar a questão aos generais, uma vez que a investigação, sképsis, é mais facilmente levada a cabo quando feita do princípio, ex arkhés (189e). Este retorno é, de acordo com Grenet, não apenas uma necessidade da composição literária, mas uma exigência do raciocínio eficaz. Para Grenet, o mérito da estrutura do Laques consiste em:

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“bem colocar o problema, ou ainda, colocar o bom problema, é, se não a resolução, ao menos a abertura de um caminho para sua solução; mostrar então que as discussões da maioria são mal iniciadas, porque elas não colocam um bom problema” 69.

7 De acordo com Gilda de Barros, “Agathós, palavra extremamente importante para a história da educação 67

grega, pode designar o nobre, o aristocrata, mas, também, o homem de valor, o que tem coragem. Traduzir

agathós por bom pode levar à confusão: o sentido básico não é moral. Na poesia heróica, é adequado dizer-se de

um homem que ele é agathós se ele tem valor. Valor, aqui, especificado a cada passo, ou referido à coragem guerreira, ou a uma certa habilidade.” Ver Barros, G.M. de. Areté e cultura grega antiga - pontos e contrapontos.

7 Neste ponto, mais uma vez nos deparamos com o ideal da antiga nobreza, ainda que, como vimos, a data 68

dramática se situe no final do século V. Werner Jaeger, em uma analogia com o mundo contemporâneo, afirma que “o kalós kagathós grego dos tempos clássicos revela esta origem [ligada à nobreza] tão claramente como o

gentleman inglês. Ambas as palavras procedem do tipo da aristocracia cavaleiresca.” Em ambos os casos, mesmo

com o fim de suas hegemonias, seus ideais, seus tipos ideias de homem, continuavam em vigor. Assim, ao concluir sua analogia, Jaeger afirma que “desde o momento, porém, em que a sociedade burguesa dominante adotou aquelas formas, a ideia que as inspira converteu-se num bem universal e numa norma para toda a gente.” Do mesmo modo, o herói homérico se converteu, ao fim do período arcaico, a norma para a educação de toda a gente. Ver Jaeger, W. Paidéia. A formação do homem grego, p.24.

7 Grenet, P. Note sur structure du Lachès, p.128. 69

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Na mesma direção, Charles Kahn afirma que a lição de Platão, no Laques, é mostrar a necessidade de, antes de discutir algo controverso, deixar claro aquilo sobre o que se fala. Contudo, segundo Kahn, “isto [retornar do princípio] não é simplesmente uma regra de clareza, mas um princípio de prioridade epistêmica, o princípio que a competência efetiva em qualquer assunto requer de alguém que saiba deste assunto o

que é.” 

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A questão recolocada por Sócrates modifica completamente o rumo do diálogo. Ela não busca mais saber quem, possuindo o conhecimento da hoplomoquia, fosse capaz de bem aconselhar Lisímaco e Melésia acerca de suas vantagens para a educação dos jovens. Recolocada do princípio, a questão busca, agora, saber como é possível comunicar a virtude (areté) à alma (psikhé) dos jovens, a fim de deixá-la melhor, ameínōn (190b). Esta é, como vimos na Apologia, a tarefa da atividade de Sócrates: militar em favor da alma a fim de torná-la a melhor possível. Contudo, para que isto fosse possível, era preciso antes conhecer a virtude, noutras palavras, uma vez que os generais eram reconhecidos como corajosos por suas ações, era preciso deixar claro em que precisamente consistia sua competência efetiva, nos termos de Kahn, acerca da coragem. E Sócrates assente junto aos generais, primeiro, que somente conhecendo a virtude alguém seria capaz de aconselhar como esta se comunica à alma e, depois, que quem a conhecesse deveria ser capaz de dizer o que ela é (190b-c). Posto isto, o próximo passo de Sócrates é, então, limitar o escopo da investigação, buscando não a virtude em toda sua extensão, mas tão somente uma parte dela, aquela parte para a qual se volta a hoplomaquia, isto é, a coragem, andreía (190d).

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