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A QUESTÃO DA REVITALIZAÇÃO DA LINGUAGEM

executado por Rosa pode ser verificado em dois âmbitos, o vocabular e o sintagmático. No primeiro âmbito encontram-se as afixações e aglutinações como “sozinhozinho43” (ao perceber a inexpressividade do vocábulo, Rosa reaviva o seu significado originário, servindo-se do mesmo processo que acreditava ter sido utilizado um dia: repetiu o sufixo diminutivo no final e criou a forma “sozinhozinho”). Para o procedimento de aglutinação, comentado na citação anterior de

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Candido, Coutinho exemplifica com o caso de palavras como: “nenhão” (nenhum+não); “fechabrir”; “prostitutriz”; “adormorrer”. O autor repara que nesses casos exemplificados se observa alteração ou recriação de significante, mas nunca a invenção de significantes totalmente novos que estejam dissociados das formas existentes da língua, assim como o exemplo comentado por Haroldo de Campos (et al 2011, p. 54):

[...] a expressão “Num nú” [referindo-se à frase ‘Num nú, os adversários se engalfinharam’] é uma tradução que ele faz direta do alemão, onde existe a frase, im Nu, significando num átimo, num momento, e traduz isso diretamente para o português, e nós pensamos na palavra nu como nudez, e aquela coisa de “Num nú” qualquer pessoa entende, sem explicação de dicionário, que aquilo significa num repente, num momento, num átimo.

No âmbito sintagmático, explicado por Coutinho, por vezes surgem sentenças inteiras de clichês44 que ganham outra expressividade, tais como: “nu da cintura para os queixos” (nu da cintura para cima); “não sabiam de nada coisíssima” (não sabiam coisíssima nenhuma).

Outros procedimentos apontados por Coutinho:

[...] enumeração de palavras pertencentes à mesma classe gramatical e ao mesmo campo semântico, que introduz uma ruptura na estrutura sintagmática do discurso, e contribui para uma espécie de neutralização da oposição entre prosa e poesia; a inversão da ordem tradicional dos vocábulos e sintagma na oração, que constitui talvez o traço mais erudito do estilo do autor e o responsável, em grande parte, pelo rótulo que diversos críticos quiseram emprestar-lhe de neo- barroco; e o uso de orações justapostas e construções elípticas, típicas da linguagem oral, que revelam uma preferência acentuada pela coordenação sobre a subordinação e por um tipo de estilo fluido, linear e direto (COUTINHO in ROSA, 1993, p. 16).

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Aqui podemos fazer uma referência ao ensaio de Walnice Nogueira Galvão sobre as listas de palavras que Rosa costumava colecionar, que comentamos no capítulo 5 deste trabalho.

Em Caos e Cosmos (1976), ao tratar das leituras filosóficas de João Guimarães Rosa, Suzi Frankl Sperber mostrou, por meio de recursos comparativos, que a somatória de leituras permite compreender o processo de crescimento do autor e que isso se reflete na estruturação da obra (do texto) e no estilo de forma mais saliente do que na temática. Segundo Sperber (1982), as leituras e preocupações espirituais de Rosa atuavam significativamente na técnica, no estilo e na linguagem de seu fazer literário. Mas é em Signo e Sentimento que sua análise parte para um viés que se relaciona mais com a ideia deste trabalho. Sperber (1982) inicia por Sagarana:

Pretendo apresentar a formação de visão literária e dos modismos criadores de Guimarães Rosa, a partir de Sagarana, em função do que vimos em

Caos e Cosmos como material inspirador e em

função dos arranjos que o Autor achou para ordenar os temas centrais de sua obra, que incluem a linguagem por ele forjada. Pareceu-me que só a partir deste estudo seria possível entender a contribuição de Rosa na literatura brasileira. Mas como fazer o estudo da linguagem forjada? (SPERBER, 1982, p. 3).

Ao longo de sua análise, a autora questiona se é na diferença que se encontram os dados suficientes para uma compreensão das formas de combinação e organização de um texto. Para ela, as opções do autor são mais facilmente notadas na “diferencialidade”. Partindo de comparações entre a obra rosiana e as possíveis fontes que influenciaram Rosa em sua ficção, Sperber (1982) estuda o fenômeno da organização da linguagem de Rosa e indica que, ao longo da evolução de um mesmo texto, catálises e distaxias são descobertas nos sintagmas, fenômeno que ela nomeou de palavras-instrumento45. Segundo a autora, “o efeito de distorção dos elementos da narrativa corresponde à distorção dos elementos do sintagma” (SPERBER, 1982, p. 6) e essa distorção (daí a diferencialidade, pois ao buscar estratégias de organização da ficção, Rosa inseria uma diferença ou suprimia os traços herdados de uma cultura a respeito de um sentido) ocasiona dificuldade na leitura, a ação

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Aprofundaremos mais esse estudo de Sperber numa abordagem estatística no capítulo 6. Esses procedimentos surgiram de acordo com o amadurecimento de escrita do autor, isso se relaciona diretamente com os estudos de evolução lexical que faremos no próximo capítulo. Contudo, salientado a diferença de que Sperber tratou da evolução da versão manuscrita à publicada de uma mesma obra. Nossa análise parte da evolução da primeira obra publicada à última.

da narrativa é disfarçada, camuflada por palavras-instrumento que propiciam exigência de uma leitura muito mais atenta, haja vista a própria definição da linguagem dada por Rosa: “Não procuro uma linguagem transparente. Ao contrário, o leitor tem de ser chocado, despertado de sua inércia mental, da preguiça e dos hábitos. Tem de tomar consciência viva do escrito, a todo momento.” (in MARTINS, 2007, p. ix).

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omparando os contos de Sagarana, a versão primitiva (Sezão, primeira elaboração) e a publicada, Sperber (1982) repara em uma economia da escrita que se dá inicialmente por meio de eliminação das palavras estrangeiras ou rebuscadas. A autora considera tal procedimento como um “amadurecimento de consciência de nacionalidade da linguagem” (SPERBER, 1982, p. 30). Signo e Sentimento entra em nossa discussão por apresentar processos de escolhas (a economia da escrita comentada anteriormente) que Rosa fez durante as reelaborações de Sagarana. Questionamo-nos, então, se esse amadurecimento ocorreu com todos os textos, no seu léxico propriamente dito, ou seja, se esse processo de refinamento de vocabulário aconteceu também ao longo da produção da obra. Para detectar de maneira efetiva esse processo, vamos utilizar ferramentas estatísticas que nos apresentem dados sobre crescimento e a evolução de vocabulário46.

Para o conto A hora e a vez de Augusto Matraga, Sperber (1982) ensaia uma contagem, bastante simples, sobre as conjunções aditivas e adversativas: e, ou, mas, porque, que, porém e pelo que. Pelo resultado obtido, ela afirma que a ênfase dessas conjunções traduz um sentido de causalidade como processo fundamental do relato (do conto específico). Diz a autora:

Nas cinco primeiras páginas do conto temos um total de 57 “e”, 18 “ou”, “mas” e “porém” e 8 “porque” ou equivalentes causais. Comparando- se com outros contos de Sagarana, com “O burrinho pedrês”, por exemplo, notamos uma diferença considerável. Nas cinco primeiras páginas de “O burrinho pedrês” há um total de 53 “e”, 13 “ou”, “mas”, e “porém” e 6 “porque” ou equivalentes causais. Porém, “porque”, propriamente dito, há 3 em “O burrinho pedrês” e 6 em “A hora e a vez de Augusto Matraga”. A

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ênfase ao sentido da causalidade, propiciada por este processo é fundamental para o relato como todo. (SPERBER, 1982, p. 42).

O diferencial, apontado por Sperber (1982) acerca do emprego das conjunções coordenativas aditivas e adversativas, está na posição onde a conjunção se encontra na frase e sua frequência em tal posição. Ambos os contos (A hora e a vez de Augusto Matraga e O burrinho pedrês), segundo a autora, mostraram o emprego de conjunções coordenativas aditivas e adversativas no início de períodos, elemento de escrita que não pode ser ignorado quando a intenção é radiografar os traços estilísticos significativos do autor.

No terceiro capítulo de Signo e sentimento, Sperber analisa Corpo de baile, ainda sob o viés da articulação entre signos e sintagmas, e dá atenção especial a Campo geral tratando da conjunção coordenativa mas. Ela percebe, igualmente, maior incidência da conjunção no início de frases:

O ‘mas’ revela-se restritivo. Esta restrição pretende coordenar sintagmas que em princípio dispensavam esta articulação. Ora, a articulação forçada quer explicar o que não se explica. Deste modo, buscamos, nós, leitores, compreender o sintagma anterior através do seguinte. Consequentemente, o sentido do sintagma anterior, em si completo, é minimizado, é limitado pela restrição da conjunção coordenativa adverbial inicial (SPERBER, 1982, p. 72).

Sobre a comparação entre o esboço e a finalização de Grande sertão: veredas, Sperber informa que Guimarães Rosa renova a linguagem pelo uso que faz de um léxico arcaico (do sul da Bahia e norte de Minas), criando neologismos que, segundo a autora, parece ser uma prática do próprio povo dessa região (SPERBER, 1982, p. 72). Por fim, questiona: “Qual o sentido da evolução estilística e narratívica de Guimarães Rosa?” (SPERBER, 1982, p. 93). Essa é justamente a questão que retomaremos ao longo dessa pesquisa, pois, se existe uma evolução na escrita, é preciso determinar quais elementos fazem parte desse processo e de que forma ela transparece no material linguístico.

5.4 COVIZZI E A LINHA TEMPORAL DA PRODUÇÃO