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CAPÍTULO 3 – DESENCONTROS: ENTRE O PENSADO E O PRATICADO

3.1 Questões de gênero subjacentes

Destaca-se nesses documentos a presença de questões relativas a gênero . A ECO-9213 reuniu grupos bem variados para considerar as interações entre meio ambiente e desenvolvimento humano. Estavam presentes no encontro legisladores, cientistas, diplomatas, dentre outros, bem como organizações não-governamentais de todo mundo, destacando-se a presença do Planeta Fêmea, organizado pela Coalizão de Mulheres Brasileiras. Essa participação feminina ocorreu mais significativamente no Fórum Social de ONGs, evento que foi realizado em paralelo a ECO-92. As discussões das mulheres ensejaram a criação de uma plataforma pouco conhecida e divulgada, a Agenda 21 de Ação das Mulheres, que tratou de temas como governança, militarismo, globalização, pobreza, direitos da terra, segurança alimentar, direitos das mulheres, direitos reprodutivos, ciência, tecnologia e educação (CASTRO e ABRAMOVAY, 2005, p. 12).

A relação mulher e meio ambiente é constantemente evocada em documentos e propostas dos governos, como acontece também na Agenda 21. Sabe-se, por exemplo, que cabe às mulheres e às meninas a tarefa de buscar água em locais longínquos, para abastecer a casa, em muitos locais. Tendo em vista que a Agenda 21 de Ação das Mulheres, criada pelas próprias mulheres, é praticamente desconhecida, o discurso de inserção da mulher em políticas ambientais e ou sociais deve ser visto com cautela, já que é possível sentir, em várias situações, uma tendência de se feminizar a pobreza, sem promover necessariamente a maior independência da mulher. No que diz respeito às questões ambientais, esta tendência pode atribuir à mulher pobre a responsabilidade pela sobrevivência em condições inóspitas, bem

13 Realizada no Rio de Janeiro, a segunda Conferência Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (que ficou conhecida como Eco-92) teve como um de seus resultados a formulação de documentos muito importantes. Porém, muitos dos termos desses documentos ainda não foram colocados em prática. Isso por tratarem de questões que estabelecem mudanças no comportamento dos países em relação ao meio ambiente. Essas mudanças deveriam ser implementadas tanto pelos países ricos quanto pelos chamados "países em desenvolvimento". (IBGE)

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como o cuidado com os refugiados ambientais – populações inteiras que começam a se deslocar pelo mundo em função da escassez de água, da degradação da terra, da ausência de condições de sobrevivência em virtude dos problemas ambientais, dentre outras responsabilidades. De acordo com Novelinno,

A maior parte das políticas públicas de gênero para as mulheres pobres podem ser definidas como políticas sociais assistencialistas centradas em programas tais como provisão de ajuda alimentar; programa de renda mínima, programas de bolsa-de- estudos. Para resumir, essas políticas são assistencialistas e voltadas para a família, assumindo a maternidade como o papel mais importante para as mulheres. Um grande problema desses tipos de programas é que eles criam dependência ao invés de ajudar as mulheres a se tornarem mais independentes. [...] Políticas públicas de gênero para as mulheres devem mudar seu foco da família para uma diversidade de abordagens, enfatizando as atividades produtivas das mulheres. (2004, p. 11) A despeito dessa tendência perversa, a mulher tem sido um forte elemento presente nos mistérios da natureza física ou da ordem sobrenatural e em especial nos aspectos da cultura humana que envolvem divindades, mitos e sonhos (NADER, 2005, p. 97). Segundo essa autora, a mulher sempre despertou na humanidade os sentidos de fecundidade e de vida, e a relação mulher e água está presente no imaginário das mais diversas culturas, seja em remotas tribos ou em grandes civilizações asiáticas, européias ou africanas, dentre outras. A autora traz alguns desses mitos e lendas, como o da cidade egípcia de Khemenu, onde se acreditava que no princípio tudo era água, de onde se elevaram as montanhas e as árvores.

A autora relembra também que, na mitologia grega, Tetis era filha de Urano e Gaia, o Céu e a Terra, e casou-se com seu irmão Oceano. Tetis passeava pelo mundo em um carro em forma de concha de marfim puxado por cavalos-marinhos brancos. Já as Nereidas, ninfas do mar, eram mulheres muito bonitas que tinham longos cabelos sempre entrelaçados com pérolas; eram gentis e generosas e ajudavam os marinheiros perdidos no mar. Por sua beleza, contudo, elas dominavam o coração dos homens.

Da união da deusa hindu Saravasti com o deus Brhama nasceu Suayambhuva Manu, o pai de todos os humanos, e Saravasti era também uma divindade da água. Já na mitologia africana, Nanã é uma orixá temida , protetora dos idosos, desabrigados, doentes e deficientes visuais, Era a divindade das águas do rio Níger. Oxum, uma das esposas de Xangô, é a rainha das águas dos rios africanos, elegante, faceira e vaidosa, com o dom de enfeitiçar os homens com

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sua beleza e charme. Yemanjá é considerada ainda hoje como a deusa das águas rasas do mar e do rio Ogum, na Nigéria (NADER, 2005, p. 103)

Nader (idem, p. 104-105) narra a lenda tupi que conta a história da mãe d água Iara:

Essa, uma jovem formosa de uma tribo que habitava as margens do rio Amazonas, era indiferente aos muitos admiradores. Numa tarde, após o pôr-do-sol, Iara banhava-se no rio, quando foi surpreendida por um grupo de homens estranhos. Sem conseguir fugir, foi agarrada, violentada e atirada ao rio. Compadecido, o espírito das águas transformou o seu corpo em ser duplo, da cintura para cima continuou com a forma humana, e abaixo passou a ter a forma de peixe. Iara, desde então, é uma sereia cujo canto atrai os homens de maneira irresistível. Eles se aproximam e ela os abraça e os arrasta às profundezas das águas, de onde nunca mais voltam. Metade mulher, metade peixe, Iara até hoje se deita nos bancos de areia dos rios para brincar com os peixes e pentear seus longos cabelos com um pente de ouro.

Mesmo em face de uma tendência de se legar à mulher uma posição subalterna e exclusivamente provedora, sua inserção como sujeito de direito e como capaz de deliberar e atuar na gestão ambiental vai além da beleza das lendas, em direção a uma compreensão mais aprofundada e sensível da dimensão ambiental.