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3.1 El Elefante y el Cara-de-Humo

3.1.2 Questões de ordem expressiva

No começo do doutorado (e inclusive já no final do mestrado), tive a sensação de que algumas das peças escritas nos meses anteriores tinham um caráter um tanto monofônico, enquanto meu interesse começava a se voltar mais para um pensamento polifônico. Mesmo que para vários instrumentos, parecia que peças como Trozz, por exemplo, eram ouvidas como de um estrato só, no tocante à textura. Nessa peça, principalmente no início, todos os instrumentos estão pensados em função de criar um único objeto musical que irá se repetir e se transformar ao longo da peça. Esse pensamento composicional leva a um resultado textural que identifico como monofônico, mesmo que a peça esteja escrita para quatro instrumentos.

Já a intenção em El Elefante y El Cara-de-Humo foi fazer uma peça que, em relação à sua textura, se ouvisse como uma polifonia de várias camadas relativamente independentes, como se se tratasse de uma textura formada por diferentes vozes, relativamente autônomas, superpostas. A ideia de trabalhar de maneira polifônica já estava algo presente no planejamento de algumas das peças do portfólio de mestrado, como em Polifonias (para violino e viola), ou em alguns momentos de Ersticktes Geflüster86 (para dois violões e percussão), entre outras. Em Polifonias, por exemplo, quanto ao aspecto poiético, por momentos três camadas são superpostas. Como comentado no memorial de composição de mestrado:

[Em Polifonias] há a escolha de superpor elementos com o intuito de criar uma unidade de sentido (…). Assim, a forma fluida pode ser entendida em

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Polifonias como a superposição inter-atuante desses três eixos temporais: uma ideia poética que apontaria para adiante, uma estratégia que estabeleceria uma contradição entre movimento e quietude, e dois caminhos paralelos que apresentariam uma linearidade não direcionada – cada uma atuando um pouco individualmente, um pouco conjuntamente, mas com o intuito de criar uma unidade. (GRAS, 2010, p. 67)

Em El Elefante y El Cara-de-Humo a intenção composicional é diferente. Segundo os primeiros planejamentos, cada uma das camadas – sejam estratos, vozes ou planos, entre outras possibilidades que poderiam ter sido cogitadas –, deveria funcionar de maneira autônoma, para poder ser preparada e apresentada em recital de forma separada, e, por outro lado, deveria funcionar, também, conjuntamente com as outras vozes para criar uma espécie de grande polifonia. Na procura por determinar o conceito de polifonia que seria empregado, foram encontradas varias definições, na sua maioria, de um caráter bastante geral. Aclara-se que meu interesse, e, por conseguinte também o foco, aponta para a música da tradição escrita ocidental, principalmente a música de transmissão escrita europeia.

Pierre Boulez, expande a ideia de polifonia entendendo as vozes não somente como linhas, mas também como estruturas.

A polifonia se baseia, a meu ver, no arranjo das estruturas, o que significa utilizar “contraponto” e “harmonia”, contanto que se extrapole o sentido geralmente limitado por estes vocábulos; ou ainda numa distribuição, que não caberia referir nem à harmonia nem ao contraponto. (BOULEZ. 1972, p.118)

Boulez amplia o conceito de polifonia, entendendo-o como:

(…) dois, ou vários “fenômenos” evoluindo independentemente um do outro, sem deixar de manter entre si uma responsabilidade em todos os momentos. Assim se deverá conceber a transformação da noção de vozes, não encarar a sua abolição, que aniquila um dos domínios mais importantes da dialética da composição. (…) A noção de vozes deve ser radicalmente repensada; uma voz se considerará daqui em diante como uma constelação de acontecimentos que obedece a um certo número de critérios comuns, uma distribuição num tempo móvel e descontínuo, que segue uma densidade variável, por um timbre não-homogêneo, de famílias de estruturas em evolução. Estas constelações, estas distribuições serão responsáveis umas pelas outras, especialmente no que diz respeito a suas alturas e suas durações; um controle constante – complementariedade cromática, relações da escala logarítmica – levará em conta a responsabilidade das alturas entre si; o controle das durações se exercerá sobre o campo no interior do que se governarão as relações de alturas. A dinâmica e o timbre introduzirão as tolerâncias necessárias. Na falta deste controle rigoroso, tender-se-á a uma simultaneidade dos acontecimentos, estranha a tudo o que seja orgânico. (BOULEZ. 1972, p.131-132)

Paulo Chagas (2005), por sua vez, afirma que:

Podemos ter vozes simultâneas e independentes, mas elas devem efetuar um processo auto-referencial de produção e atualização de significado, a fim de ser considerado um sistema polifônico. Polifonia é, assim, a manifestação de simultaneidade – um sistema de eventos múltiplos e individuais – que é reconhecido como um sistema de produção de significado distinguindo-se da simultaneidade de sons que ocorrem no ambiente87 (CHAGAS. 2005).

No presente trabalho, o conceito de polifonia será definido a partir da expansão realizada por Boulez e por Chagas. Ou seja, polifonia será tratada como a resultante de uma simultaneidade de estruturas – em sentido de uma dada organização –, cada uma obedecendo a um dado critério, sempre que sejam assim percebidas. Cada uma dessas estruturas poderá, por sua vez, estar formada por uma ou mais partes, podendo ser vozes, instrumentos ou aparelho eletrônico ou mecânico, entre outras possibilidades. Assim, polifonia é a percepção do que Boulez (1972) ideava como “polifonia de polifonias”, “polifonia de heterofonias”.

Contudo, em El Elefante y El Cara-de-Humo a ideia central é criar dois resultados expressivos relativamente diferenciados. Um como resultante da apreciação de cada uma das peças autônomas por separado, outro como resultante da apreciação da conjunção das peças avulsas em uma maior – El Elefante y El Cara-de-Humo –, o que poderia ser entendido como uma grande polifonia – ou polifonia de polifonias, polifonia de heterofonias, como proposto por Boulez.

Em relação à previsão da situação de performance do todo e das peças avulsas, as peças poderiam ser apresentadas por separado ou em conjunto, pois cada uma deveria ter sua própria individualidade, ou seja, como já referido, cada uma das peças deveria funcionar de forma autônoma. Se for uma situação de demonstração, então deveriam ser apresentadas em um recital só, primeiro as peças por separado, em qualquer ordem, e logo El Elefante y El Cara-de-Humo – a montagem da grande polifonia –, entendendo que o ouvinte poderia vir a tecer certas relações e comparar ambos os resultados. A gravação (que se encontra em anexo) foi pensada segundo esta última situação.

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“We can have simultaneous and independent ‘voices’ but they must accomplish a self-referential process of producing and actualizing meaning in order to be considered a polyphonic system. Polyphony is thus the manifestation of simultaneity – a system of multiple and individual events – which is recognized as a meaning-producing system distinguishing itself from the simultaneity of sounds occurring in the environment.” (CHAGAS, 2005. Tradução nossa).