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QUI SCRIBIT, BIS LEGIT

No documento A pintura que retém a palavra (páginas 164-200)

As seis pinturas que constituem o políptico Qui scribit, bis legit têm as seguintes dimensões: 19x27cm, 40x50cm, 61x66cm, 38x55cm. O rectângulo 19x27cm usado em Interrupção na leitura, A consulta e em 1, 2, 3, 4… remete para uma dimensão «de bolso», numa livre associação com o «livro de bolso», manuseável, transportável que prescinde da mesa ou do apoio de um ambão.

A representação das seis pinturas recorre ao regime da citação. A partir de outras seis (Figura 1), patentes no Palácio-Convento de Mafra, na Sala dos monges copistas que antecede a Sala da Biblioteca, cada pintura de Qui scribit, bis legit resulta do enfoque feito através de um exercício de zoom que aponta para um enquadramento específico, para um pormenor, que, neste caso, é alusivo a actividades ligadas à escrita, tradicionalmente realizadas por monges (sobretudo, e quase em exclusivo na Idade Média, até ao advento da Imprensa). Há, portanto, uma deslocação do assunto da pintura de «quem» para «o quê», da identidade do monge para a sua função de copista. Este detalhe acentua um gesto: o da leitura à cópia, ou vice-versa: o da escrita à leitura.

Sob o enunciado latino Qui scribit, bis legit que significa «quem escreve, lê duas vezes», figura-se a actividade da escrita e os objectos directa e intimamente convocados para essa actividade: o livro, a pena, o tinteiro, o fólio.

Figura 1. Pormenores referenciais das seis pinturas (anónimas) em exposição na Sala dos Monges do Palácio-Convento de Mafra. Nestas fotografias é patente o enquadramento do

A posição específica e relativa das pinturas em instalação (Figura 2) faz-se por proximidade mas evita a sucessão horizontal e linear colocada ao nível do olhar (convenção de ordem museológica), para constituir um conjunto que remete para a disposição clássica setecentista do Cabinet d’Amateur. Um jogo construtivo está latente nesta fórmula instalativa, pensada como se cada pintura fosse uma peça de puzzle. Contudo, e ao contrário do que acontece com os puzzles, o desenho não transita de uma pintura para outra, num contínuo que a justaposição das pinturas completa e, se há contaminação e passagem entre as pinturas, é pela partilha da cor que os seus planos do fundo comungam. O que se toma do puzzle é o seu sentido de encaixe, onde cada peça pertence a um determinado lugar (exclusivamente). A localização específica de cada pintura, relativamente às que a circundam, vem exaltar afinidades (de ordem figural, temática e cromática) sem questionar a individualidade de cada uma na sua composição do políptico. A estratégia da dupla intitulação (título e subtítulo) manifesta a autonomia (relativa) das partes no todo, pois, ao mesmo tempo que agrega o conjunto, individua.

Figura 3. Ema M, Qui scribit, bis legit: 1, 2, 3, 4…, 2010, óleo s/ tela, 19x27cm

Em Qui scribit, bis legit: 1, 2, 3, 4…, o título vai orientar o olhar em direcção à numeração árabe inscrita, como nota de rodapé, que de uma forma alusiva remete para a paginação dos livros.

Gémea da escrita alfabética, a escrita numérica tem aqui a função de fazer suceder, pelos números, cada página individuando-a com um nome-número. Esta nomeação permite encontrá-la com facilidade na sequência estrutural e estruturante do objecto livro. A numeração evoca uma ordenação e organização internas ao livro que está convocada pelos números pintados, organizados por ordem crescente junto ao limite inferior das páginas: 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9. Não se trata de uma paginação mas de uma inscrição e de um ritmo (semelhante ao da sua enunciação em plena voz), como quem marca um compasso na leitura de uma partitura onde o dizer desta numeração é entoado como ladainha repetitiva e faz-se acompanhar por gestos e posições predeterminadas da mão que «marca o compasso».

O número um (o primeiro, o ímpar, a unidade) e o número dois (a repetição, o duplo, o dobro) estão aparentemente ausentes mas figuram na representação das duas páginas representadas: a primeira e a segunda, par e ímpar, esquerda e direita.

A transparência da leitura dos números inscritos é semelhante à das letras do alfabeto quando apresentadas na sua ordem convencional. Contudo, nesta pintura a representação dos números «um» e «dois» opacifica-se porque não está patente sob os

signos «1» e «2», no início da sequência, embora esteja presente sob o modo da quantidade (duas páginas de um livro).

Figura 4. Ema M, Qui scribit, bis legit: A consulta, 2010, óleo s/tela, 19x27cm

Em vez da numeração, em Qui scribit, bis legit: A consulta estão inscritas duas letras maiúsculas. «A» e «Z» são articulados por um sinal que os liga convocando, de imediato, todas as letras da sequência alfabética situadas «entre» o «A» (que a inicia) e o «Z» (que a termina). Porque esta inscrição faz referência ao alfabeto e, sobretudo, porque se inscreve num contexto figural específico (como enunciado representado sobre uma etiqueta na capa de um livro), convocam-se, genericamente, todos os livros que se organizam pelo alfabeto, como os dicionários e as enciclopédias, e que podem ter no título a inscrição «A-Z».

A identificação dos livros faz-se pela inscrição de letras que determinam duas relações simultaneamente, a de pertença e a de limite: informam que se este livro é sobre x (x é o assunto onde se enquadra ou ao qual pertence), consequentemente não é sobre y (delimitação por exclusão de tudo o que não é x).

Figura 5. Ema M, Qui scribit, bis legit: Interrupção na leitura, 2010, óleo s/tela, 19x27cm.

Qui scribit, bis legit: Interrupção na leitura (Figura 5) é a representação do momento (em aberto) de retoma ou de suspensão da leitura. Tanto as fitas, que funcionam como marcadores, como o dedo indicador são usados para marcar esse lugar, dentro do livro, que delimita dois momentos da leitura, lugar de fronteira entre o que já se leu e o que ainda está por ler. O título pintado, «Livro Azul», é descritivo da cor da capa do livro e da cor da inscrição. A sua função parece redundante pois faz corresponder o que se vê como o que se lê, numa total transparência entre a visibilidade e a legibilidade dos signos textual e visual.

Figura 6. Ema M, Qui scribit, bis legit: Desde o princípio, 2010, óleo s/tela, 40x50cm

A frase que intitula e agregada este políptico, Qui scribit, bis legit, estende-se num subtítulo a todas as pinturas. Desde o princípio (Figura 6) é tão abrangente nas possibilidades da sua significação que nada parece dizer. Mas porque este título nomeia uma pintura completa-se na sua condição figural, na representação pintada. «Desde o princípio» é um enunciado que só adquire um sentido, uma direcção quando se prende ao pintado: se o conhecimento deste paratexto vai delimitar e preparar o olhar do observador, é o pintado que lhe garante significado pelo contexto, ou antes, pelo enquadramento propriamente plástico e visual. A formulação do enunciado é de tal forma vaga que, sem esta correspondência visual e figural, perde sentido (no infinito da sua amplitude) e por isso a transparência desta pintura advém da inter-relação com o seu título (e vice-versa).

Tal como em Qui scribit, bis legit: A consulta (Figura 4) é visível a inscrição de «apenas» um «A» pintado na sua configuração de maiúscula. O «A» é a primeira letra do alfabeto, é o seu início. É também a primeira das vogais e, em termos sonoros, a representação gráfica do som mais aberto que o sistema vocal humano produz. Por isso, a sua representação isolada (quer dizer, sem outras inscrições) acrescenta uma carga ao

enunciado: é «desde o princípio» da invenção da escrita, ou antes, é «desde o princípio» do som ou antes, ainda, é «desde o princípio» da linguagem.

Figura 7. Ema M, Qui scribit, bis legit: De um código para outro, 2011, óleo s/tela, 61x66cm.

O protagonismo que o gesto adquire é resultado de uma deslocação do enfoque, do retratado para a sua actividade. O assunto da pintura altera-se. Na pintura de referência – exposta na Sala dos monges copistas no Palácio-Convento de Mafra (Figura 1) – o assunto é um retrato que, no políptico Qui scrit, bis legit, está omisso. Esta omissão faz-se segundo três estratégias: o obscurecimento da figura, a redução da área de enquadramento que põe a figura fora de campo e ainda no apagamento da identidade no título (quer da identidade genérica do monge – de que ordem? de que religião? –, quer da identificação com um indivíduo).

A omissão desta identidade, pelo seu apagamento na pintura, remete para a particular questão autoral onde, a partir da estratégia do anonimato, a autoria fica em aberto por norma (como acontece no pré-Renascimento onde a função do autor está por pensar e, logo, todos os copistas são anónimos), por estratégia de defesa (como acontece nos regimes censórios) ou como intenção autoral. Justamente, esta linha de pensamento

só se coloca porque se sabe, neste contexto, quais as pinturas de origem (quais as referências).

São várias as identidades e as autorias em questão neste políptico, a saber: a do retratado, que sofre um apagamento para se pintar como copista (aferida pela interpretação do gesto representado), a do pintor que faz o retrato ou que se auto-retrata e, neste espelhamento, retrai-se e esconde-se no obscuro da pintura – na sua sombra – para dar a ver (apenas) os seus gestos.

No canto inferior direito de Qui scribit, bis legit: De um código para outro (Figura 7), numa fita/marcador do livro é visível a inscrição da data de execução da pintura, «2010», e duas iniciais maiúsculas, «M» e «P», que têm a função de uma assinatura. Esta inscrição convoca a expressão ic, ergo, sum (eu, aqui, agora). A autora/pintora dá, assim, a garantia da autoria da pintura pela sua assinatura, através do gesto de a inscrever, de a representar dentro da composição. Uma marca de autenticidade que, neste caso, é dupla pois as duas letras iniciais não são as do seu pseudónimo (Ema M) mas as do ortónimo (Margarida Prieto). Ou seja, a ficção do pseudónimo está numa relação de co-presença com a autora que ficciona, aqui, uma dupla assinatura (própria e enquanto outra).

Figura 8. Ema M, Qui scribit, bis legit: De um código para outro (verso) 2011, óleo s/tela, 61x66cm.

Justamente, no verso da tela, na ficha técnica (também pintada) inscreve-se o pseudónimo «Ema M» no lugar do nome do autor que precede a data, a técnica e as dimensões. Do outro lado, a inscrição «MP» pertence ao plano propriamente pictórico e converte-se no pseudónimo de Ema M, assinado no verso: a autenticidade autoral é alimentada pelo regime de co-presença de duas assinaturas («M P» e «Ema M»), mas questionada pela inversão do lugar da sua inscrição (Figura 8).

Também o gesto se representa como encenação. A carnação das mãos desmaterializa-se assemelhando-se a luvas – luvas sem corpo mas que o substituem ao tomar-lhe o gesto. A transposição mimética do gesto do monge é alterada contextualmente com o intuito de provocar um ênfase: o gesto da mão protagoniza-se na sua substituição enluvada152. A acção desta luva-sem-mão sobre a pena/pincel ou sobre o livro/caderno, acontece como extensão do pensamento dessa figura obscurecida identificada como copista na referência à pintura de origem. A mão conversora, definida como a que torna o pensamento em acto, torna-se uma luva conversora cujo acto de escrever ainda está no plano do devir, uma vez que não há inscrição, ainda. Mas há intenção de escrever, ou assim se propõe a representação ao observador.

Em Qui scribit bis legit, a mão conversora camuflada pela luva branca e os objectos figurados destacam-se no sem-fundo indianthene: sobre-expõem-se num contraste teatral ou pantomímico.

«L’œil, une main…

(…) Sa main – la pression sentie claire et prête énonçait dans quel mystère la limpidité de la vue y descendait, pour ordonner, vivace, lavé, profond, aigu et hanté de certain noir, le chef-d’œuvre nouveau et français» 153.

Também as páginas são brancas, ou antes, estão «em branco» (Figuras 7 e 9). São representadas imaculadas, sem qualquer registo e constituem-se por uma espessa

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A luva é um acessório obrigatório no manuseamento dos objectos artísticos, por exemplo, nos processos de montagem e deslocação das pinturas antes e depois da sua exibição. Por norma é branca para ser substituída quando se suja e assim evitar que os próprios objectos artísticos sejam danificados. O uso da luva torna in-tocáveis estes objectos, remetendo-os para o domínio do sagrado.

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«Um olho, uma mão... (…) A sua mão – a pressão sentida clara e disponível a enunciar o mistério de uma visão límpida que se mostra como escrita, que se organiza célere, pálida, profunda, aguda e assombrada por um certo negro, a nova obra-prima francesa» (tradução livremente minha). MALLARMÉ, S., «Édouard Manet», in Quelques médaillons et portraits en pied, Œuvres complètes, Gallimard, Pléiade, 1945, p. 532-533.

camada de titânio, um pigmento opaco que satura até ao limite a superfície pictórica154. O que se inscreve na página é a própria pintura (através do acto de pintar) onde a pena do copista se metamorfoseia no pincel do pintor, na extensão de um gesto – anónimo – que nada diz (ou escreve). A inscrição é duplamente substituída: a tinta pela pasta, o azul pelo branco, a transparência da leitura pela opacidade da pintura. Encena-se a expectativa, a tensão frustrada pela ausência de uma (qualquer) inscrição, fundada no silêncio: «a pintura retém a palavra».

Em Poétique du Blanc, Anne-Marie Christin começa por afirmar: «O branco é a cor de um enigma»155 porque é simultaneamente vazio e cheio, dependendo do ponto de vista. É «vazio» como metáfora para o ecrã imaculado (vazio pela ausência) e «cheio» no tropo da iluminação (pleno de luz)156.

«Sur la brillance, le prix accordé depuis toujours à ce qui brille, à l’éclat, au resplendissement, au scintillement – à ce qui éblouit, aveugle – donc à cette part de la lumière qui ne favorise pas la visibilité, mais l’obture. Cette part la plus lumineuse de la lumière qui n’éclaire rien – dont l’éclat très condensé atteint une intensité telle qu’il relègue toute autre chose dans la ténèbre»157.

Branca é superfície que, do ponto de vista da física óptica, reflecte integralmente a luz que lhe chega e, por isso, «vazio» e «cheio» são categorias puras de aparência.

Neste contexto, o termo «branco» identifica uma cor. A cor é a codificação de um estímulo provocado pela acção da luz no órgão da visão humano (formado por dois olhos, receptivos e sensíveis à luz, e pelo cérebro, descodificador da informação veiculada pela luz). Se a luz se determina e caracteriza numa relação entre refracção e reflexão, então a cor é a manifestação de cada uma das faixas de frequência em que o

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Em termos técnicos, este pigmento aplicado em camadas pastosas, como acontece nestes casos, impede uma repintura, quer dizer, a sobreposição de outros pigmentos, justamente porque vai interferir neles depois da secagem abrindo fissuras nessa outra camada de tinta.

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CHRISTIN, Anne-Marie, Poétique du blanc. Vide et intervalle dans la civilisation de l’alphabet, Bélgica, Librairie Philosophique J.VRIN, col. Essais d’art et de philosophie, (1ª ed., 2000), 2009, p. 7.

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«A iluminação como tropo tem antecedentes antiquíssimos nomeadamente no pensamento hebraico : «A sabedoria é um sopro do poder divino, uma efusão pura da glória do Todo-poderoso, (…) é reflexo da luz eterna, um espelhamento marcado com a actividade de Deus, uma imagem da sua excelência» (tradução livremente minha). Sg., VII, 22-26.

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«O brilho e o que brilha é sempre precioso, a luminosidade, o esplendor, a cintilação – fascinam e cegam –; o brilho é aquela parte da luz que não favorece a visibilidade, obtura-a. É a parte mais luminosa da luz onde nada está iluminado; onde a luz se condensa numa tal intensidade que relega tudo o resto para a escuridão» (tradução livremente minha). PONTÉVIA, Jean-Marie, La Peinture, Masque et Miroir..., op.

feixe luminoso se refracta. Quando a luz é totalmente reflectida, quando não consegue atravessar uma superfície e o feixe luminoso é devolvido inteiramente, o sistema visual é estimulado com o branco. Neste sentido, o branco é consequente da total impenetrabilidade da luz na superfície. Qualquer outra cor implica um trânsito na superfície: um atravessamento (ou absorção) de uma parcela da luz (as variantes cromáticas dependem da proporção entre absorção e reflexão luminosa). O negro é a sensação cromática produzida no limite da absorção, quando o feixe luminoso não se reflecte. O negro, como ausência de qualquer reflexão luminosa, e o branco, como reflexão integral da luz, estão nos limites opostos do comportamento da luz na superfície. Ao escolher um pigmento branco (titânio, prata, lítio), escolhe-se a cor da máxima reflexão, a cor do brilho. (Independentemente das metáforas e das suas implicações psicológicas.)

As experiências sobre a cor, ao nível da percepção visual, garantem que o máximo contraste é conseguido com o negro sobre o amarelo primário e, assim, a máxima legibilidade de uma página impressa implicaria tingi-la de amarelo e inscrevê-la de negro. Contudo, por várias e distintas razões, a página branca impõe-se sobre a página amarela e com ela a sensibilidade ao branco.

«Car la page, ici, est fondatrice, non seulement parce que c’est sur elle que repose la création du poète mais parce que le don du texte passe également d’abord par son approche»158.

Tal como o papel, também o suporte pictórico é convencionalmente branco, o que tem implicações na própria reverberação cromática da representação pintada. O branco da tela (na pintura sobre tela), da madeira (no retábulo) ou da parede (no fresco) garante a máxima intensidade de reflexão dos pigmentos, mesmo quando a primeira acção sobre o suporte é a aplicação de um primário (independentemente da sua cor) que cobre a superfície totalmente159. Porque o espectro cromático é gerado na relação luminosa,

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«A página, aqui, é fundadora, não somente porque nela repousa a criação do poeta, mas porque a aproximação do poeta torna perceptível o dom do texto» (tradução livremente minha). CHRISTIN, Anne- Marie, L’image écrite ou la déraison graphique, op. cit., p. 214. Embora no seu texto a autora se debruce sobre a obra de Mallarmé, Un Coup de Dés jamais n’abolira le Hasard, a sua afirmação é validada também no contexto desta pintura.

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A aplicação de uma mesma cor sobre toda a superfície a pintar é uma técnica que joga, justamente, com as propriedades de reflexão dessa cor aplicada, que atravessa várias camadas de tinta seguintes. Nomeadamente, consoante o tema ou género pictórico, esse primário pode ser especificado (azul para as

entre reflexão e absorção, para todos os pigmentos cuja cor resulta de uma reflexão maior do que uma absorção (ou seja, que são pouco absorvidos e muito reflectidos), a superfície branca subjacente maximiza-os. Para os pigmentos que resultam de uma relação inversa (mais absorvidos do que reflectidos) dá-se uma perda, na medida em que a qualidade reflectora do branco da base os trespassa e, em vez de os obscurecer, ilumina-os.

A técnica da pintura a óleo faz-se por sobreposição de camadas de tinta. Justamente, sempre que se sobrepõem dá-se um ganho em espessura do medium, relativamente ao fundo: a camada superior distancia-se e opacifica-se (gradualmente). Se este espessamento se constrói com o mesmo pigmento, a cor intensifica-se pela concentração do pigmento constituinte.

Os pigmentos claros têm características espaciais distintas dos escuros que são manifestas no espaço pictórico e relativamente ao observador. Os claros são percepcionados mais à frente constituindo o primeiro plano pictórico da composição, visto como o mais perto do observador; por contraste, os escuros afastam-se em direcção aos planos do fundo. A sensação de profundidade ocular manifesta-se também pela transparência do pigmento, como acontece no fundo de todas as pinturas do políptico Qui scribit, bis legit pela aplicação do azul indianthene.

Se a espessura de tinta se constrói pela sobreposição de diferentes pigmentos, obtém-se uma «contaminação» pois o medium oleoso tende a fundi-los (a misturá-los). Todas as camadas reverberam na camada final (de superfície) por isso o pigmento último aplicado perde alguma da sua pureza reflexiva. A solução técnica que garante a máxima qualidade reflexiva aos pigmentos, está em manter a mesma cor em cada área da superfície pictórica (condição que torna o desenho estrutural da composição determinante na coloração) porque também o branco do suporte, não sendo transparente, transparece nas outras cores, afecta-as.

paisagens marinhas, ocre para o nu, por exemplo). Esta técnica desenvolveu-se especialmente na pintura a óleo onde as características do médium garantem uma fusão das cores (mínima, mas presente).

Figura 9. Ema M, Qui scribit, bis legit: Momento antes, 2010, óleo s/tela, 38x55cm Qui scribit, bis legit: Momento antes (Figura 9) faz referência à escrita pela encenação do gesto de escrever. Como numa pantomima, o escritor resume-se à visibilidade luminosa e branca de duas mão anónimas que vêm acentuar expressivamente a linguagem dos gestos do escritor. Nesta pintura a inscrição está ausente; o que se mostra é a intenção de escrever usando um utensílio arcaico e próprio ao exercício. A pena cinzenta toma a sua cor no intervalo entre o escuro e o luminoso, entre o indianthene transparente e profundo que cobre o último plano e o branco opaco e pastoso das mãos enluvadas ou das páginas do livro aberto em primeiro plano. A pena – único sinal de que há uma intenção de escrever e nele, uma tensão – é utensílio de mediação, extensão da mão do escritor, representada com uma cor que se forja «no

No documento A pintura que retém a palavra (páginas 164-200)

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