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1. TRANSFORMAÇÃO PARADIGMÁTICA DE QUILOMBO HISTÓRICO EM

1.2. QUILOMBISMO E PAN-AFRICANISMO

Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial. (Abdias do Nascimento. O Quilombismo)

A epígrafe que inicia o presente item diz respeito à uma transformação ocorrida no termo quilombo, pois o mesmo também fora discutido e ressignificado por militantes negros brasileiros na década de 1980, como foi o caso de Abdias do Nascimento. O contexto em que o autor estava inserido diz respeito a uma discussão voltada para o pan- africanismo que se desenvolvia ao longo do globo, sobretudo no contato intelectual e cultural de militantes afrodescendentes com seus pares “do continente”, tendo como norte a discussão na conjuntura das sociedades pós-coloniais. Nessa perspectiva, Nascimento (1980) propôs uma nova organização social e política para o Brasil, o quilombismo, definido segundo o referido autor como “um movimento político dos negros brasileiros, objetivando a implantação de um Estado Nacional Quilombista, inspirado no modelo da República dos Palmares, no século XVI, e em outros quilombos que existiram no país”. Percebemos na definição do autor, a repercussão do pensamento historiográfico de Clóvis Moura, o qual entende Palmares como uma organização na forma de uma república, no sentido de conceder a possibilidade de liberdade para aqueles que fugiram do domínio branco/senhorial que insistia em colocá-los como cativos, ou seja, Palmares se torna sinônimo de liberdade. Palmares é resistência, além do que tendo “[...]como modelo máximo o Quilombo dos Palmares, a historiografia priorizava uma visão quase que romântica dessa forma de resistência, o qual se tornou um arquétipo para todas as demais formações quilombolas.” (LIMA, 2014b p.34)

Sendo assim, a proposta do movimento Pan-Africanista é definida como um movimento antirracista que tem por objetivo desconstruir os mitos acerca do continente africano que foram construídos pela civilização europeia/ocidental, tanto da África negra quando da parte conhecida como “África branca” e que tem como um dos expoentes mais significativos o Egito antigo que “se tornou branco por artes da magia europeia dos egiptólogos” (NASCIMENTO, 1980). Além disso, de acordo com Hernandez (2005), o pan-africanismo é entendido como um movimento que envolve visões de mundo, ideias e teorias, surgidas no final do século XIX, as quais servem de resposta as teorias raciais

vigentes na época, como o darwinismo social e a poligenia17. Seus principais articuladores

são intelectuais e ativistas negros dos mais variados cantos do globo, a exemplo de Cheikh Anta Diop (Senegal), Chancellor Williams (Estados Unidos), Ivan Van Sertima e George M. James (Guiana), Yosef Ben-Jochannam (Etiópia), Theophile Obenga (Congo), Wole Soyinka e Wande Abimbola (Nigéria).

Para Nascimento (1980), esse propósito fica evidente quando o autor afirma que mesmo em

[...] campos diferentes, e sob perspectivas diversas, o esforço desses eminentes irmãos africanos se canaliza rumo a exorcizar as falsidades, distorções e negações que há tanto tempo se vêm tecendo com o intuito de velar ou apagar a memória do saber, do conhecimento científico e filosófico, e das realizações dos povos de origem negro-africana. Tendo como pano de fundo os debates pan-africanistas que se desenrolavam entre intelectuais dos mais variados lugares do globo, Nascimento (1980) vai propor uma modificação na caracterização de quilombo. Outrora visto como lugar de negros fugidos, esse autor vai caracterizar os mesmos enquanto focos de resistência dessa população, resistência física, material e, sobretudo, cultural. De acordo com o referido autor, os quilombos resultaram

[...] dessa exigência vital dos africanos escravizados, no esforço de resgatar a sua liberdade e dignidade através da fuga ao cativeiro e da organização de uma sociedade livre. A multiplicação dos quilombos fez deles um autêntico movimento amplo e permanente. Aparentemente um acidente esporádico no começo, rapidamente se transformou de uma improvisação de emergência em metódica e constante vivência dos descendentes de africanos que se recusavam à submissão, à exploração e à violência do sistema escravista.

Vale salientar também que para Nascimento (1980) o quilombo, ou a prática do quilombismo, está associada diretamente a uma prática de resistência da população negra brasileira. Não diz respeito somente à fuga e organização de um espaço distante do domínio branco/senhorial, mas refere-se a toda e qualquer forma que a população negra, livre ou na condição de cativa utilizou (e ainda utiliza) das brechas do sistema para manter vivas as heranças africanas. Além da formação dos quilombos históricos, que não tem sua importância diminuída ou negada por Nascimento (1980), o mesmo entende como prática de quilombismo a “rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios,

terreiros, centros, tendas, afoxés, escolas de samba e gafieiras”. Para o autor, todas essas formas de organização são “quilombos legalizados pela sociedade dominante

Portanto, a prática do quilombismo para Nascimento (1980), não se relaciona apenas as “florestas de difícil acesso que facilitavam sua defesa e sua organização econômica-social própria” e continua

[...] como também assumiram modelos de organizações permitidas ou toleradas, frequentemente com ostensivas finalidades religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. Não importam as aparências e os objetivos declarados: fundamentalmente, todas elas preencheram uma importante função social para a comunidade negra, desempenhando um papel relevante na sustentação da comunidade africana. Genuínos focos de resistência física e cultural.

Essa definição de organizações “permitidas ou toleradas” ilustra as dificuldades vivenciadas no território brasileiro pela população negra no momento pós-diáspora, implicando dizer que, mesmo permitido ou tolerado, não consistia necessariamente em ser aceito, no sentido de ser seguido/imitado pela sociedade dominante. O ato de formar “focos de resistência física e cultural” se distancia um pouco da concepção de quilombo histórico e se aproxima do ideário de quilombo cultural, uma vez que deve ser preservado, além da liberdade do indivíduo, seu legado cultural.

Essa herança africana que se desenvolveu no Brasil, sendo mantida ao longo do tempo como prática de resistência cultural, bem como a manutenção da memória do negro brasileiro na qual “o esforço da reconstrução de um passado ao qual todos os afro- brasileiros estão ligados” (NASCIMENTO, 1980) são os principais elos articuladores entre o movimento pan-africanista e o quilombismo proposto pelo autor.

Nascimento (1980) conclui seu pensamento afirmando que tanto quilombos “ilegais” quanto quilombos legalizados pela ordem dominante, foram (e ainda são) espaços de resistência, física e cultural da população negra brasileira. Além disso, faz a ressalva de que a quantidade de organizações que, no passado ou no presente, denominam-se de Palmares ou Quilombo “testemunham o quanto o exemplo quilombista significa como valor dinâmico na estratégia e na tática de sobrevivência e progresso das comunidades de origem africana” (NASCIMENTO, 1980).

A definição de quilombo proposta por Nascimento (1980), cuja discussão foi iniciada no segundo item do presente capítulo, diz respeito a segunda transformação paradigmática ocorrida no conceito. Como o próprio autor afirma, “quilombo não significa escravo fugido”, ou seja, podemos perceber uma ampliação do entendimento na

concepção dos quilombos em terras brasileiras, estendendo a compreensão para além da lógica escravista/senhorial e ultrapassando a definição de lugar de fugitivos, para um lugar de “reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial”.

“Solidariedade, convivência, comunhão existencial”, o pensamento de Nascimento (1980) evidencia também o seu “lugar social” (CERTEAU, 2011). Inserido em uma discussão que era contrária a ordem capitalista vigente, Nascimento (1980) afirma que “a revolução quilombista é fundamentalmente anti-racista, anticapitalista, antilatifundiária, anti-imperialista e antineocolonialista”, nesse sentido, o pensamento anticapitalista se faz presente em diversos momentos da sua obra. O quilombismo, assegurados todas as suas instâncias, materializa-se na forma de uma opção contrária ao capitalismo desenvolvido no país, uma vez que para o autor a sociedade brasileira poderia se beneficiar com a proposta do quilombismo, já que é “uma alternativa nacional que se oferece em substituição ao sistema desumano do capitalismo”.

Para Nascimento (1980), o capitalismo é um sistema opressor que explora o trabalhador comum, enriquecendo uma pequena parcela da população que não participa ativamente do processo de produção das riquezas naturais. Essa relação de opressão e dominação torna o trabalho, para o trabalhador, uma espécie de castigo, opressão ou exploração. Nesse sentido, o quilombismo se opõe a essa forma de organização social do trabalho “fundada na razão do lucro a qualquer custo”, buscando a “realização completa do ser humano” em todas as instâncias, inclusive no trabalho, que tem como principal diferença a negação da organização do trabalho aos moldes capitalistas e se configura da seguinte maneira

Nem propriedade privada da terra, dos meios de produção e de outros elementos da natureza. Todos os fatores e elementos básicos são de propriedade e uso coletivo. Uma sociedade criativa, no seio da qual o trabalho não se define como uma forma de castigo, opressão ou exploração; o trabalho é antes uma forma de libertação humana que o cidadão desfruta como um direito e uma obrigação social. Liberto da exploração e do jogo embrutecedor da produção tecno-capitalista, a desgraça do trabalhador deixará de ser o sustentáculo de uma sociedade burguesa parasitária que se regozija no ócio de seus jogos e futilidades. Frente ao que foi exposto, acreditamos que conseguimos transpor a definição de quilombo, como também as práticas de quilombismo que foram propostas por Nascimento (1980), ampliando assim a definição que o termo quilombo possui. Ressaltamos ainda que o objetivo nesse item não foi analisar a proposta política do quilombismo, mesmo sendo essa sua real intenção, mas sim demonstrar como o

Movimento Negro, utilizando os pressupostos do pan-africanismo ressignificaram o termo quilombo, elemento que se caracteriza como uma das faces da transformação paradigmática do termo quilombo.

1.3. QUILOMBOS DA PARAÍBA: Um histórico de lutas quilombolas nos períodos