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beira do mar lugar comum começo do caminhar pra beira de outro lugar à beira do mar todo mar é um começo do caminhar pra dentro do fundo azul a água bateu o vento soprou o fogo do sol o sal do senhor tudo isso vem tudo isso vai pro mesmo lugar de onde tudo sai

A Srta. Rosalia H., de vinte e três anos de idade, vinha há alguns anos estudando para tornar-se cantora. Tinha boa voz, mas se queixava de que, em certas partes de seu registro, perdia o controle sobre ela. Tinha uma sensação de sufocamento e de constrição na garganta, de modo que sua voz soava velada. Por esse motivo seu professor ainda não pudera consentir que ela se apresentasse em público como cantora. Embora essa imperfeição lhe afetasse apenas o registro médio, não podia ser atribuída a um defeito no próprio órgão. Às vezes a perturbação desaparecia por completo e seu professor expressava grande satisfação; em outras ocasiões, bastava ela estar um pouco agitada, algumas vezes sem nenhuma causa aparente, para que a sensação de constrição reaparecesse e a produção da voz fosse prejudicada. Não foi difícil reconhecer uma conversão histérica nessa sensação extremamente perturbadora. Não tomei nenhuma providência para descobrir se havia de fato uma contratura dos músculos das cordas vocais. Durante a análise hipnótica que realizei com a moça vim a saber dos seguintes fatos sobre sua história e, conseqüentemente, sobre a causa de seu problema. Ela perdera os pais cedo e fora levada para morar com uma tia que tinha muitos filhos. Em conseqüência disso, envolveu-se numa vida familiar muito infeliz. O marido da tia, que era uma pessoa visivelmente patológica, maltratava de maneira brutal a esposa e os filhos. Feria os sentimentos deles, sobretudo pela forma como demonstrava uma evidente preferência sexual pelas criadas e amas da casa; e quanto mais os filhos foram crescendo, mais ofensivo isso se tornou. Após a morte da tia, Rosalia tornou-se a protetora da multidão de crianças que agora eram órfãs e oprimidas pelo pai. Ela levava seus deveres a sério e superou todos os conflitos a que sua posição a conduziu, embora isso requeresse grande esforço para reprimir o ódio e o desprezo que sentia pelo tio. Foi nessa época que a sensação de constrição na garganta começou. Todas as vezes que tinha de refrear uma resposta, ou se obrigava a ficar calada em face de alguma acusação ultrajante, sentia a garganta arranhar e apertar e perdia a voz — todas as sensações localizadas na laringe ou na faringe que agora interferiam com o canto. Não era de admirar que ela buscasse uma oportunidade para se tornar independente e escapar das agitações e das experiências aflitivas que ocorriam diariamente na casa do tio. Um professor de canto muito competente ajudou-a de modo desinteressado e lhe assegurou que sua voz justificava que escolhesse o canto como profissão. Ela começou então a tomar lições com ele em segredo. Mas muitas vezes saía às pressas para a aula de canto enquanto ainda tinha a constrição na garganta, que costumava persistir após cenas violentas em casa. Como conseqüência, estabeleceu-se com firmeza uma ligação entre o canto e sua paraestesia histérica — uma ligação para a qual o caminho foi preparado pelas sensações orgânicas provocadas pelo canto. O aparelho sobre o qual ela deveria ter pleno controle quando cantava revelou-se catexizado com resíduos de inervação que sobraram das numerosas cenas de emoção reprimida. Depois dessa

época, ela abandonou a casa do tio e se mudou para outra cidade, para ficar longe da família. Mas isso não eliminou sua dificuldade.1

Não menos admirável que essa narrativa que o escritor acaba de extrair e de forjar, juntamente à experiência com as pacientes ─ o que falam, o que apresentam, o que não falam, o que encenam, o que desdizem, o que resta disso tudo na memória do escritor e o que, enfim, engendra-se de sua pena, como uma partitura em diversos registros, como a fala que se põe a fluir num folheto manuscrito impresso e em cuja imagem, o talhe do palimpsesto não deixa de nos impressionar ─, é o relato que faz, complexo, límpido, denso, detalhado, leve e sucinto, das construções teóricas que a experiência também exige. Assim, um exemplo, ainda tomado do que Freud escrevera em Estudos sobre a histeria, mas agora em um capítulo teórico:

As representações que se originam das camadas mais profundas e que formam o núcleo da organização patogênica são também aquelas que são reconhecidas com extrema dificuldade como lembranças pelo paciente. Mesmo quando tudo termina e os pacientes são dominados pela força da lógica e convencidos pelo efeito terapêutico que acompanha o surgimento precisamente dessas representações ─ quando, digo eu, os próprios pacientes aceitam o fato de terem pensado isso ou aquilo, muitas vezes acrescentam: “Mas eu não consigo me lembrar de ter pensado isso.” É fácil chegar a um acordo com eles dizendo-lhes que os pensamentos estavam inconscientes. Mas como enquadrar esse estado de coisas em nossas próprias concepções psicológicas? Devemos desprezar essa negação de reconhecimento por parte dos pacientes, quando, agora que o trabalho terminou, não existe mais nenhum motivo para que eles ajam dessa forma? Ou devemos supor que estamos de fato lidando com pensamentos que nunca ocorreram, que meramente tiveram uma possibilidade de existir, de modo que o tratamento consistiria na realização de um ato psíquico que não se verificou na época? É claro que é impossível dizer qualquer coisa a esse respeito ─ isto é, sobre o estado em que se encontrava o material patogênico antes da análise ─ até que tenhamos chegado a uma elucidação completa de nossas concepções psicológicas básicas, em especial quanto à natureza da consciência. Resta, penso eu, como elemento digno de séria consideração, o fato de que em nossas análises podemos seguir uma cadeia de pensamentos desde o consciente até o inconsciente (isto é, até algo que de modo

algum é reconhecido como uma lembrança), de que podemos mais uma vez acompanhá-la por certa distância através da consciência, e de que podemos vê-la terminar de novo no inconsciente, sem que essa alternância de “revelação psíquica” cause qualquer modificação na própria cadeia de pensamentos, em sua coerência lógica e na interligação entre suas várias partes. Uma vez que essa cadeia de pensamentos se colocasse diante de mim como um todo, eu não seria capaz de adivinhar qual de suas partes seria reconhecida pelo paciente como lembrança e qual não o seria. Vejo apenas, por assim dizer, os cumes da cadeia de pensamentos mergulhando no inconsciente ─ o inverso do que foi afirmado quanto a nossos processos psíquicos normais.2

Ao ressaltar, além de muitos outros pontos de importância, algo que está para além da memória, algo que está alhures ─ posto que até o uso da palavra inconsciente

parece, ainda, intimidar o inventor ─ e, mais ainda, o que permanece em aberto, até melhor elucidação, acerca de nossas concepções psicológicas básicas, o escritor afirma, sem o dizer explicitamente, que é preciso continuar. Sim, é preciso. Recorreremos novamente às cartas a Fliess, que, nesse período, fornecem-nos dessa exigência um testemunho inigualável. A impressão que nos fica, logo de início ─ na leitura dessa “correspondência de mão-única”, pelas circunstâncias históricas ─,3 é que as descobertas de Freud são tão intensamente vividas, tão impostas a ele, e ao mesmo tempo por ele investidas, que na solidão essencial da autoria/invenção, insuperável pelas circunstâncias, insuportável em si mesma, fizessem-lhe estabelecer um ponto, um ancoradouro, no invisível e na escuridão absoluta, para não se perder, não sucumbir, para que ele pudesse ir adiante. Um ponto cego, mas que ilumina, em sua falta de luz, que está ali, como que ao alcance da mão, embora sempre inalcançável, posto que sempre mais adiante. Como não dispomos das cartas de Fliess, a impressão é essa. Impressão de que Freud fala a um outro que não existe. Não existe? Mas as cartas, as letras estão lá, estiveram em algum lugar e estão agora aqui, compondo ao menos um circuito com um modo incessante de existir/não existir.

2

FREUD. ESB, II, p.289-90 (os destaques são do autor).

3

E, então, retomemos nossa pergunta: o que nos chama na escrita freudiana? A terceira confidência “é que não há contemporâneos, mas elos de ausências presentes; há um anel de fuga. Na prática, é uma cena infinita ─ o lugar onde somos figuras.”4

Como vimos, ao final do terceiro capítulo, o Projeto para uma psicologia científica é um desses escritos anômalos, tal sua história, tal percurso, entre a escrita e sua inserção na obra, nas Gesammelte Werke. Quando foi escrito, seu destino foi não ter existência. Sabemos que é contemporâneo dos Estudos sobre a histeria, e que, equanto escreve a parte teórica desse último, Freud escreve muito mais. Dos Estudos... pouco fala, apenas uma notícia aqui e ali. Mas, em todas as cartas, dá notícias de outra elaboração que o toma por inteiro, da qual não pode fugir. Vamos ver que se trata de uma ausência presente, que seguirá na construção de uma cena infinita. E, o mais importante ─ após toda a história, das descobertas de papéis até então insuspeitos e de sua importância, e da relevância que eles ganham no corpo da obra, e enfim, para nossa pesquisa ─, um anel de fuga.

RETORNO AO PROJETO...

Em 8 de março de 1895 ─ antes de terminar o capítulo teórico sobre as histerias ─ encontramos, em carta a Fliess: “Há uma outra idéia curiosa, de natureza diferente, que só lhe confiarei depois...”5 Em 28 do mesmo mês, aparece a primeira referência, um tanto vaga, ao que virá a ser o Projeto...: “A psicologia tem me atormentado muito.”6 As cartas desse período são cheias de referência a um intenso mal-estar de Freud, quase cotidiano, mas sem qualquer interferência em sua disposição de escrever. Na carta seguinte, de 11 de abril: “No que concerne a minhas pesquisas psicológicas, esfalfei-me até os ossos e agora vou dar o assunto por encerrado. Apenas o livro que estou

4 LLANSOL. Inquérito às quatro confidências ─ Diário III, p.48. Cf. citação 102 de nosso primeiro

capítulo.

5

FREUD. correspondência completa com Wilhelm Fliess, p.119.

6

FREUD. correspondência completa com Wilhelm Fliess, p.124. O livro que está a escrever com Breuer é, justamente, os Estudos sobre a histeria.

escrevendo com Breuer continua a progredir”.7 Três cartas adiante, mas ainda no mesmo mês, em 27, o escritor lamenta-se ao amigo: “a distância e a redação de cartas são um grande infortúnio sobre o qual nada se pode fazer. Especialmente, pelo menos, quando se escreve tanto quanto eu e, vez por outra, fica-se familiarizado com o horror calami”.8 Mas encontramos também, na mesma carta, outra notícia sobre a Psicologia, assunto ainda não encerrado: “Cientificamente, estou num mau caminho, a saber, preso na ‘Psicologia para neurologistas’, que me consome sistematicamente por completo, até que, verdadeiramente esgotado, sou forçado a interromper.”9

Nessa altura, já é bastante evidente a atmosfera caótica ─ envolvendo trabalho intelectual, esforços de raciocínio, estados de ânimo, sentimentos variados ─ entre o escritor e algo que ainda não sabemos se e como estão escritos, se e como estariam anotados. Nem para o amigo mais íntimo, na verdade o único amigo, de um período, segundo todas as biografias, de intensa solidão intelectual e de pesquisa, o que o escritor vem maquinando não é apresentado. Na carta de 25 de maio, podemos ver isso escrito por ele mesmo:

Tenho tido uma quantidade desumana de coisas por fazer e, após períodos de dez a onze horas de trabalho com as neuroses, fico regularmente impossibilitado de tomar a pena para escrever-lhe um pouco, embora, na verdade, muito tivesse a dizer. A principal razão porém é esta: um homem como eu não pode viver sem um cavalo de batalha, sem uma paixão devoradora, sem ─ nas palavras de Schiller ─ um tirano. Encontrei um. A serviço dele não conheço limites. Trata-se da psicologia, que foi sempre minha meta distante a acenar-me, e que agora, desde que deparei com o problema das neuroses, aproximou-se muito mais.(...)Nestas últimas semanas, tenho dedicado cada minuto livre a esse trabalho; tenho gasto as horas noturnas, das onze às duas, com fantasias, interpretações e palpites e, invariavelmente, só me detenho quando, em algum momento, esbarro num absurdo ou sinto-me real e seriamente esgotado pelo trabalho, de modo que nenhum interesse me resta por minhas atividades médicas diárias. Ainda se passará muito tempo antes que você possa me perguntar sobre os resultados.10

7 FREUD. correspondência completa com Wilhelm Fliess, p.125. 8

FREUD. correspondência completa com Wilhelm Fliess, p.128 (destaque do autor).

9

FREUD. correspondência completa com Wilhelm Fliess, p.128.

Curiosa carta, na qual Freud tenta a impossível justificativa de dizer que não tem tempo ou energia para escrever ao amigo: trata-se de uma longa carta, que aborda muitos outros assuntos. Na verdade, pressentimos, há algo que insiste para vir à luz, como texto, mas que, no espírito do escritor, ainda é sem forma, sem palavras, sem escrita possível. Ele mesmo utiliza uma expressão metafórica para dizer isso, na carta seguinte (12 de junho): “Fazer um relatório sobre ela [a psicologia] agora seria como mandar a um baile um feto feminino de seis meses.”11 Aqui, a alusão a uma gestação não parece fora de lugar, tal a intensidade com que o autor refere-se ao processo que está vivendo. Pode até falar disso, mas não pode ainda apresentar algo de material, de concreto. Os dois amigos estão prestes a se encontrar, numa visita que Freud faz a Fliess, em Berlim, e por isso discutem, nas cartas, os detalhes desse encontro. O mais comum, no entanto, era outro tipo de reunião, a que chamavam “congressos” (Freud sai de Viena; Fliess sai de Berlim; encontram-se em algum local entre as duas cidades, dependendo das facilidades da malha ferroviária). Esses encontros, de poucos dias de duração, eram dedicados ao deleite da conversa livre de interferências de toda ordem ─ trabalho, família, sociais ─ e aos temas científicos de cada um. Outra metáfora embriológica, ou de gravidez, em carta em que tratam da viagem de Freud a Berlim: “quanto a mim, chegarei carregado de rudimentos e embriões em germinação”.12

Nas cartas seguintes, vai havendo uma mutação acerca da natureza das relações que Freud mantém com a Psicologia. Em carta de 6 de agosto: “Ela não está nem perto de ficar pronta, mas ao menos posso falar a respeito (...). Ela é ousada, mas bela, como você verá.”13 Em 16 de agosto de 1895, o estado de ânimo e o interesse de Freud mudaram significativamente e, mais uma vez, ele diz que vai desistir dela: “Tive uma estranha experiência com a φ (...). Assim, deixei toda a coisa de lado e venho-me convencendo de que não estou nem um pouco interessado nela.”14 E, na mesma carta, sua sinceridade é quase pueril:

A psicologia é mesmo uma cruz. Jogar boliche ou catar cogumelos, pelo menos, são passatempos muito mais saudáveis. Tudo o que eu estava tentando fazer era explicar a defesa, mas experimente só tentar explicar algo que vem do âmago da natureza!

11

FREUD. correspondência completa com Wilhelm Fliess, p.132.

12 FREUD. Correspondência completa com Wilhelm Fliess, p.134. 13 FREUD. Correspondência completa com Wilhelm Fliess, p.136 14

FREUD. Correspondência Completa com Wilhelm Fliess, p.136. Freud referia-se à “psicologia” também dessa forma, utilizando as três letras gregas que davam nome aos três sistemas do aparelho psíquico em construção no Projeto.

Tive que abrir caminho palmo a palmo através do problema da qualidade, do sono e da memória ─ em suma, a psicologia inteira. Agora não quero mais ouvir falar nisso.15

Há aqui um tom confessional meio ingênuo, meio juvenil, como de alguém que fala de algo sem importância, de um desejo qualquer, uma bobagem, e enfim, apesar dos esforços já despendidos, faz um trejeito de abandono, de desistência da coisa.

No início do mês seguinte, ocorre o encontro com Fliess e, na primeira carta após esse “congresso”, carta de 15 de setembro, em meio à extensa narrativa de tudo que se passou na viagem de trem, Freud anuncia que começou a escrever o primeiro rascunho da psicologia! E ainda, na carta seguinte, de 23 de setembro:

Tenho-lhe escrito tão pouco apenas por estar escrevendo muitas coisas para você, ou seja, escrevendo aquilo que comecei no trem: um relato sumário da φ , que você poderá usar como base para sua crítica e ao qual tenho dado prosseguimento em minhas horas de lazer e nos intervalos entre os atos de minha clínica médica (...) Existe já um volume considerável ─ rabiscos, é claro, mas mesmo assim, uma base, segundo espero, para seus acréscimos.16

A história mais íntima desse escrito não termina aqui. Na carta seguinte, Freud envia ao amigo mais um grande rascunho ─ designado de rascunho I na SE, onde esses esboços tomaram uma denominação segundo as letras do alfabeto ─, dedicado às enxaquecas, assunto mais da lavra de Fliess, mas com o qual Freud não deixa de colaborar. Comunica ainda a existência de dois cadernos de notas, inteiramente preenchidos pela Psicologia e muitas idéias novas que lhe parecem esclarecer definitivamente os mecanismos das duas neuroses básicas, presentes em seu dia-a-dia clínico: histeria e neurose obsessiva. A luta com a Psicologia tem nova comunicação em 15 de outubro: “É uma loucura minha correspondência, não é? Por duas semanas estive em plena vasca da febre de escrever e acreditei ter desvendado o segredo; agora sei que ainda não o fiz e tornei a pôr tudo de lado.”17 Continua permanente a impressão de que

15

FREUD. Correspondência completa com Wilhelm Fliess, p.137.

16

FREUD. Correspondência completa com Wilhelm Fliess, p.140.

Freud trava um incessante combate, do qual aparecem os avanços e os recuos, as iluminações e os mergulhos na treva, e até alusões a movimentos táticos, como o de retirada, ou a decisão de um esforço extremo, como se fosse o derradeiro para vencer a guerra. Em 20 de outubro, vamos encontrar:

Numa noite laboriosa da semana passada, quando eu estava sofrendo daquele grau de dor que propicia as condições ótimas para minhas atividades mentais, as barreiras ergueram-se subitamente, os véus caíram e tudo se tornou transparente ─ desde os detalhes das neuroses até os determinantes da consciência. Tudo pareceu encaixar- se, as engrenagens se entrosaram e tive a impressão de que a coisa passara realmente a ser uma máquina que logo funcionaria sozinha. Os três sistemas de neurônios; os estados livres e ligados de Qn (quantidade); os processos primário e secundário; a tendência principal e a tendência de compromisso do sistema nervoso; as duas regras biológicas da atenção e da defesa; as características de qualidade, realidade e pensamento; o estado do grupo psicossexual; a determinação sexual do recalcamento; e, por fim, os fatores que determinam a consciência como função da percepção ─ tudo ficou e continua correto até hoje! Naturalmente, mal consigo conter minha alegria. (...) Outras confirmações acerca das neuroses estão chovendo sobre mim. A coisa é mesmo verdadeira e genuína.18

Temos aqui um resumo, muito conciso, do próprio autor, sobre o que veio a ser o Projeto para uma psicologia científica, projeto que, como assinala Freud, desenha as margens de uma alegria quase incontrolável, quase incontida. Quase. Porque, tendo enviado os dois cadernos de notas ao amigo, e antes de enviar o terceiro, que fecharia seu sistema, retornam as dúvidas sobre a validade de toda aquela construção. Ele as expressa na carta de 31 de outubro, dizendo precisar colocar tudo aquilo de lado e mencionando, talvez, o que o tenha detido naquele momento: “Felizmente para mim, todas essas teorias precisam fluir para o estuário clínico do recalcamento, onde tenho oportunidades diárias de ser corrigido ou esclarecido.”19 O terceiro caderno, de que não se tem notícia, trataria exatamente da articulação do mecanismo do recalque na máquina neuro-psíquica construída por Freud. Os biógrafos, de qualquer maneira, sempre fazem

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