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RAMOS, Fernão, MIRANDA, Luiz Felipe Enciclopédia do cinema brasileiro Simpósio Arte e Animação 2001 Texto sem autoria.

A FLOR DO CAOS Quinto Tratamento

© Luiz Nazario I.

No silêncio da noite, a câmara passeia por uma rua torta e sinistra, até chegar ao alto de uma torre branca que domina a cidade deserta; é a única janela iluminada em toda a vizinhança. É o laboratório do Dr. Cretinus, que parece trabalhar noite e dia junto à sua fiel assistente Selenita. Depois de subir pela alta torre branca, a câmara atravessa a janela e mergulha na longa escadaria, espiralada como uma estrutura de DNA, até chegar a uma mesa onde repousam alguns exemplares do jornal A Nova Era. As manchetes desses jornais, estampando notícias espantosas, demonstram que a Genética avança em todo o mundo:

SAPO RECEBE GENE DA INTELIGÊNCIA

PESQUISADORES FAZEM GALO CANTAR COMO CODORNA RATOS VERDES AJUDAM NA LUTA CONTRA O CÂNCER

MOSCAS HOMOSSEXUAIS DE PROVETA REPRODUZEM-SE EM LABORATÓRIO CÉLULA MISTA HOMEM-VACA GERA POLÊMICA

FRANGOS CLONADOS TÊM GOSTO DE ABACATE

Em seu laboratório, onde "genes" isolados, com formatos estranhos, aparecem dentro de vidros, Dr. Cretinus alimenta seus franguinhos clonados e ordena à sua fiel assistente Selenita que traga os últimos genes isolados num gigantesco armário para testar uma nova experiência transgênica. O cientista usa todas as informações disponíveis sobre os avanços da engenharia genética para realizar uma façanha inédita... Sim, Dr. Cretinus cruza genes humanos - o "gene do câncer", o "gene da inteligência" e o "gene da homossexualidade", cuidadosamente guardados em redomas de vidro - para obter um gene composto; depois, mescla esse novo gene com um gene de margarida, da qual extrai o pólen, introduzindo-o numa gigantesca máquina com formato de lesma ou caracol - criando uma planta transgênica de características únicas.

No centro do laboratório, encontra-se a planta transgênica, ainda em semente, dentro de uma redoma. Observado por Selenita, Dr. Cretinus balança os braços e bate os pés no chão, de tanta alegria ao ver brotar, da semente geneticamente modificada, uma estranha flor. Selenita compartilha da emoção do cientista. Foi ela, afinal, quem operou a máquina que criou o novo ser transgênico. A nova flor tem, curiosamente, a forma de uma borboleta. E, ao levantar a

redoma, a flor exótica exala um perfume estranho, que deixa o cientista tonto. Dr. Cretinus cambaleia pelo laboratório, derrubando frascos, abobado. Enquanto isso, a flor-borboleta destaca-se de seu caule. Dr. Cretinus tenta ainda alcançá-la, subindo pela longa e íngreme escadaria que leva a uma pequena e quase inútil janela. E é justamente pela janelinha que a flor borboleta escapa do laboratório.

II.

A câmara passeia novamente pela rua torta e sinistra, agora cheia de flores-borboletas, até chegar ao alto da torre branca do laboratório, mergulhando na longa escadaria em forma de DNA. Passaram-se alguns meses desde a malograda experiência transgênica com a flor mutante. Agora, Selenita acompanha, através de gigantescos monitores, as transmissões da WEB-TV, constituída por milhões de câmaras ocultas por todas as ruas, controladas pela ONU, para tentar reprimir a violência urbana. De uma visão cósmica do planeta Terra, proporcionada por câmaras instaladas em satélites, até a esquina da rua onde se situa o laboratório do Dr. Cretinus, todos os locais do mundo externo pode ser "acessado" e monitorado ao vivo pelos privilegiados assinantes da WEB-TV. Assim, enquanto Dr. Cretinus prepara sua mais nova experiência, Selenita acompanha, cada vez mais preocupada, os acontecimentos caóticos que agora ocorrem em todo o mundo. Bem ali, na esquina do laboratório, um homem está sendo agora mesmo esfaqueado por outro, ambos sobrevoados por inocentes flores-borboletas.

Selenita muda de canal e assiste à colisão de dois trens em alta velocidade. Da sucata de ferro retorcida saem voando dezenas de flores-borboletas. Em outro canal: um avião choca-se contra um arranha-céu, e da fumaça saem centenas de flores-borboletas. No Rio de Janeiro, dentro do bondinho da Urca, cercado por mil flores-borboletas, um homem-bomba detona-se. O bondinho despenca contra o Pão de Açúcar, arrancando dele um bom pedaço, que rola e varre os arranha-céus da orla carioca como uma bola de boliche. Em Paris, uma multidão armada de coquetéis molotov, sob uma nuvem de flores-borboletas, ataca a Torre Eiffel, que arde em chamas, derretendo-se. Milhares de chineses, polvilhados por enxames de flores- borboletas, destroem com picaretas a Muralha da China, que vai desabando como um dominó através da planície.

Desesperada com o que vê, Selenita atira ao chão o controle da WEB-TV. Ela percebe que a flor-borboleta gerou milhões de outras flores-borboletas exatamente iguais, parecendo de algum modo associadas ao caos que agora domina o planeta. De fato, o caos tomou conta do mundo. Massas fogem em pânico sem saber o que está acontecendo. Do alto, aparentemente inofensivas, as flores-borboletas nada fazem a não ser espalhar seu pó. Selenita suspeita que

as catástrofes que se multiplicam devem-se à proliferação incontrolável das flores-borboletas. Mas não está certa do processo que leva as pessoas a enlouquecerem ao contato com aquelas criaturas transgênicas.

Desconfiada de que a causa de tudo ainda se encontra no rastro de pó que a flor-borboleta original deixou na redoma de vidro, Selenita tenta alertar Dr. Cretinus. Surdo às preocupações mundanas de Selenita, Dr. Cretinus ignora-a, completamente absorto em sua nova experiência. Selenita resolve retirar do armário a redoma da fugitiva flor-borboleta original e estudar ao microscópio o pouco de pó que ainda resta ali. O que ela vê recorda-lhe algumas formas entrevistas há muito, quando tinha aulas de química com o Dr. Cretinus na velha biblioteca, hoje abandonada. Ela desce, então, aos porões do laboratório, abre uma porta esquecida e chega, através de uma escada de pedra espiralada, aos aposentos empoeirados da cavernosa biblioteca, ornada com motivos clássicos - estátuas gregas, globos renascentistas, iluminárias barrocas - cobertos de teias de aranha.

Uma trilha sonora de filme de terror reforça o caráter "tenebroso" dessa regressão ao mundo "primitivo" das humanidades. Os livros parecem ameaçadores, como monstros que poderiam devorar um leitor que ousaria abri-los. Mergulhando num desses compêndios volumosos, Selenita depara com a fórmula do LSD. Ela examinara o rastro de pó que a flor-borboleta deixara em seu caule original e descobre que sua composição química assemelha-se à da mescalina. Ou seja, das asas-pétala da flor-borboleta cai um pó que, inalado, desorienta os sentidos. Por isso as pessoas passaram a fazer gestos ridículos; por isso os guardas agora confundiam o trânsito, os automóveis colidiam, os animais tornavam-se selvagens. A flor- borboleta original reproduzira-se por cissiparidade: de seu corpo saíram outras flores- borboletas, multiplicando-se, encobrindo os céus, sobrevoando o Arco do Triunfo, a Estátua da Liberdade, o Cristo Redentor.

Selenita retorna ao laboratório e revela sua descoberta ao Dr. Cretinus. Somente eles agora sabem que o caos que ganhou o mundo é uma conseqüência de seus experimentos. Com a reprodução em massa das flores-borboletas, toda a gente foi assaltada por alucinações lisérgicas. A civilização começa a entrar em colapso. Decidido a enfrentar o mal que gerou, Dr. Cretinus procura a solução. Ele caminha para lá e para cá pelo laboratório, em cujas paredes aparecem, como fantasmas, as manchetes das catástrofes que estão ocorrendo no mundo lá fora:

INCÊNDIO DESTRÓI O VATICANO SURTO DE CANIBALISMO NOS EUA

TRENS E CORREIOS PARAM NA EUROPA

TRÊS BILHÕES MORREM DE FOME NO MUNDO

Selenita pergunta ao Dr. Cretinus o que poderão fazer para acabar com os desastres. Dr. Cretinus destrói sua nova experiência e conclui que o lança-chamas é a arma mais eficaz de destruição. Vai, então, pregar na ONU o extermínio das flores-borboletas. Selenita assiste a tudo pela WEB-TV. Dr Cretinus incita os governos sobreviventes dos Estados arruinados a destruir as flores-borboletas onde quer que elas se encontrem. Formam-se brigadas de extermínio, que vestem roupas parecidas com escafandros, protegendo-se contra as emanações das flores-borboletas. Uma grande quantidade de flores-borboletas é destruída. III.

A câmara retorna em seu travelling pela rua torta e sinistra, agora com suas casas e edifícios arruinados. Chegando ao alto da torre branca do laboratório, mergulha novamente na longa escadaria em forma de DNA. Passaram-se meses. No laboratório, momentaneamente vazio, a WEB-TV foi esquecida ligada, e uma barata mutante passeia por seus monitores, que mostram o mundo transformado num imenso palco arruinado. No monitor central, os sobreviventes aclamam Dr. Cretinus como seu herói salvador: "Dr. Cretinus é tão bom! Dr. Cretinus é maravilhoso!". Num outro monitor, a barata mutante poderia ver, se tivesse olhos, Selenita, no meio da turba, com ar orgulhoso e feliz. Num monitor acima, a barata poderia, se pudesse ouvir, acompanhar o discurso do cientista na praça pública, anunciando o advento de uma nova era de progresso científico e prosperidade. Mas a barata não pode ver nem ouvir, por isso sobe até o último monitor, que focaliza a visão cósmica da Terra: afastando-se do Dr. Cretinus discursando entre as ruínas, da platéia em delírio, da cidade esburacada e das planícies devastadas, a câmara satélite da WEB-TV mostra para a barata o planeta Terra parecendo não mais uma bola azul, mas uma gigantesca caveira a girar, abandonada, na irremediável solidão do universo.

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