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Régio e o homem do seu tempo

3. O CASO DE RÉGIO: UM ARTISTA DE MÚLTIPLAS FACES

3.3 Régio e o homem do seu tempo

A temática regiana, por assim dizer, aborda de uma maneira única questões acerca da humanidade, dos seus conflitos e seus indivíduos complexos e, sendo assim, é uma temática universal e atemporal, típica da dramaturgia moderna do século XX. O profundo apreço pela

religião é grande responsável pelas determinações temáticas na obra de Régio, tanto na produção teatral quanto nas produções poética e narrativa. A eterna luta entre o bem e o mal, representados religiosamente por Deus e o diabo, é o que dá o tom a toda a duplicidade que permeia a obra de Régio. Temas como a vida e a morte, a luz e a escuridão, o eu e o outro, a verdade e a mentira, a comunicação e a incomunicabilidade (tema específico de O meu caso, peça que em seguida analisaremos.) são exemplos desse “duplo” regiano. O objeto de reflexão das produções de Régio, e de todo o teatro moderno, é o homem do seu tempo, um ser humano angustiado e cheio de conflitos de identidade.

O contexto histórico do teatro moderno em todo o mundo envolve a segunda Revolução Industrial e todas as inovações tecnológicas que vieram com ela. O inicio do século XX em todo o mundo foi um período de progresso econômico, grande desenvolvimento de máquinas que otimizavam a produção e tudo se resumia em tirar maior proveito do tempo que se tinha. Assim, o cotidiano nas fábricas e nas ruas se tornou cada vez mais acelerado, transformando os trabalhadores em criaturas alienadas, como bem retratou Charlie Chaplin no famoso filme Tempos modernos (1936). Desta forma, a arte começa a ser deixada de lado, banida da vida prática, e os artistas que percebiam essa alienação pungente pareciam nadar contra a maré, tornando-se cada vez mais alheios à sociedade (AMORIM,2006). Passam a retratar especificamente o ser humano da época, que é constrangido por uma grande força, movendo-se em direções programadas, sem permissão de expressar-se: o homem moderno. Vivendo nesse turbilhão de inovações sociais, os artistas europeus da primeira metade do século XX – Régio , dentre eles – voltavam a sua atenção para o íntimo do ser humano, suas angústias, desesperos e, principalmente, a sua busca por identificar-se e deixar de ser apenas mais um em meio à multidão. O ser humano retratado por essa arte é aquele que se desespera por se conhecer e por não ser capaz de escapar da opressão massificadora de uma sociedade inerte, que se deixa levar.

Anatol Rosenfeld vai dizer, em seu ensaio sobre “Aspectos do teatro moderno”, que essa inovação de temas reflete uma nova concepção de arte que rompe com o tradicionalismo que imperava até então, impulsionando uma renovação, inclusive e especialmente no teatro, que vai contra a ilusão e não se preocupa mais com a realidade empírica:

Paralela ou subsequëntemente à segunda revolução industrial e à expansão da técnica, às novas pesquisas científicas (sobretudo no campo da física, sociologia e psicologia), ao abandono do positivismo na filosofia e ao surgir de enormes metrópoles, verificam-se nos fins do século passado e nos inícios deste século transformações radicais nas várias artes. Nesta revolução artística manifesta-se um

novo sentimento de vida, uma nova consciência de realidade, uma nova visão do homem e da posição do homem no universo e na sociedade. As novas concepções, os novos temas e problemas rompem as formas tradicionais das artes e, entre elas, as do teatro. Os limites do realismo e do naturalismo já não conseguem abarcar as novas experiências. No teatro impõe-se a negação do “ilusionismo” cênico, isto é, a recusa da tentativa de reproduzir no palco a ilusão da realidade empírica e do senso comum [...]. Confessa-se “teatro teatral”, disfarce, ficção, poesia, sonho, parábola. Visando atingir os níveis mais profundos da realidade (exterior e interior), de acordo com as novas concepções, desfaz-se o “espaço euclidiano” e o tempo cronológico do palco tradicional. (ROSENFELD, 1993, p. 107-8). 12

Assim, o teatro tradicional, que estava em crise, dava espaço a um novo teatro que se preocupava em romper com os limites do realismo em cena e transformar o palco em um espaço de reflexão, identificação e escancaramento dos artifícios da obra de arte. Nesse sentido afastava-se cada vez mais da objetividade dos temas e da forma e passava a apegar-se ao seu oposto, por assim dizer, transformando o teatro em um palco de expressão da subjetividade, mais ou menos como a continuidade do simbolismo literário que vigorou no final do século anterior.

É nesse contexto que Régio escreve suas peças, sob influência de grandes dramaturgos que despontavam na Europa na mesma época. E é também nesse contexto de inovações que surge a

Presença, veículo importantíssimo para a divulgação da arte moderna. Observemos, então,

especificamente a produção teatral de José Régio. Não foram muitas as peças escritas e publicadas por ele – apenas sete, como vimos, mas todas elas abordam a questão humana de diferentes prismas. A estudiosa Amorim (2006) ressalta que:

O dramaturgo da Presença ignora as bases cientificistas e racionalizantes do teatro naturalista e, em sua dramaturgia, procura trazer à cena figuras fantásticas e até absurdas que rompem com os pressupostos defendidos pela estética realista- naturalista, a qual ainda dominava a produção teatral da sua época. Os temas abordados por Régio em suas obras teatrais vão de [sic] encontro a esta nova abordagem, visto que, para ele, o homem e os valores humanos necessitam de uma revisão, de um novo olhar que dê destaque ao que atormenta o íntimo do indivíduo. (AMORIM, 2006, p.26)

A existência angustiada e atormentada do homem moderno é a força motora da dramaturgia regiana. E pensando nesse “homem do seu tempo”, Régio desenvolve um retrato dessa angústia

12 Vale observar que Rosenfeld escreveu esse ensaio originalmente em 1993; “século passado”, portanto, é o século

humana através do duplo, abordando uma série de questões metafísicas e filosóficas ligadas à condição da sociedade moderna em que se encontrava. Assim, em toda a literatura regiana é possível encontrar referências de outros grandes artistas seus contemporâneos e, no que diz respeito ao teatro, há um diálogo quase direto com a proposta estética de Luigi Pirandello, dramaturgo italiano. Na peça a ser analisada nesta dissertação poderemos observar como Régio dialoga com a forma teatral de Pirandello a fim de colocar em debate um dos temas que mais parece afligi-lo em relação à modernidade: a incomunicabilidade que isola o homem moderno. Em O meu caso, Régio nos apresenta um retrato daquilo que vê ao seu redor, na primeira metade do século XX, e que com maestria é levado por Oliveira para a tela do cinema. Para pensar esse diálogo com mais clareza, vejamos O meu caso em dois casos: o de Régio e o de Oliveira.

4. PREMIER RÉPÈTITION: DO PALCO PARA A TELA – “O MEU CASO”, NO CASO DE