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3 RACISMO DE ESTADO: PARA UMA REFLEXÃO ACERCA DOS PARADOXOS DA (IR)RACIONALIDADE (BIO)POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

3.2 O racismo de Estado no nazismo

Foucault utiliza a noção de racismo de Estado sobretudo para analisar seu modo de atuação no nazismo e no socialismo.14 A presente subseção será dedicada a acompanhar a argumentação de Foucault no que diz respeito ao nazismo. Em seguida, trata-se de observar Coloniser, exterminer: sur la guerre et l’État colonial, no qual o autor, Olivier Le Cour Grandmaison se refere explicitamente ao “racismo de estado”.

12

FOUCAULT, 2000, p. 309. Segundo Agamben (2002, p. 135, 137), o fascismo e o nazismo são “dois movimentos biopolíticos [...] que fazem [...] da vida natural o local por excelência da decisão soberana. [...] são uma redefinição das relações entre o homem e o cidadão e somente se tornam inteligíveis se situados sobre o pano de fundo biopolítico inaugurado pela soberania nacional e pelas declarações de direitos.”

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FOUCAULT, 2001c-364, p. 1645. Recentemente, Agamben (2002, p. 128) voltou a tematizar a díade biopolítica-tanatopolítica: a biopolítica se transforma em tanatopolítica no momento em que a decisão sobre a vida se torna decisão sobre a morte, mas, seguindo a linha de pesquisa aberta por Foucault, afirma que atualmente não mais é possível estabelecer duas zonas distintas.

quais são os acontecimentos da história recente que vêm sendo analisados, na literatura secundária, a partir da noção de racismo de Estado (3.3).

Na perspectiva foucaultiana, o nazismo pode ser traduzido como a generalização absoluta tanto do biopoder quanto do velho direito soberano de matar. De um lado, foi sumamente disciplinar e regulador (assunção estatizante do biológico, da procriação, da hereditariedade, da doença, dos acidentes); de outro, sumamente assassino (o poder de matar deixou de ser apenas um privilégio do Estado ou dos Sturm Abteilung (SA) ou Schutzstafeln (SS), tendo sido conferido, no limite, a todos, pois todos, pela denúncia, tinham o poder de suprimir qualquer um).15 O nazismo é a forma acabada da transmutação da relação guerreira em relação biológica, pois se trata de eliminar o Outro (a raça impura) para fortalecer a saúde do povo, tornando-se indiscerníveis, no dizer de Agamben, a tutela da saúde e a luta contra o inimigo.16 Essa correlação é tematizada explicitamente pelos encarregados da defesa do regime, como se pode ler em um livro de propaganda publicado em 1942 acerca dos méritos da política nacional-socialista em questões de saúde e eugenética, intitulado Estado e saúde:

A revolução nacional-socialista deseja fazer apelo às forças que tendem à exclusão dos fatores de degeneração biológica e à manutenção da saúde hereditária do povo. Ela almeja, portanto, fortificar a saúde do conjunto do povo e eliminar as influências que prejudicam o desenvolvimento biológico da nação.17

Em outro opúsculo, desta feita publicado por Ottmar von Verschuer, um dos especialistas em eugenética do IIIº Reich, pode-se observar uma rigorosa formulação biopolítica da ideologia nacional-socialista:

‘O novo Estado não conhece outro dever além do cumprimento das condições necessárias à conservação do povo.’ Estas palavras do Führer significam que todo ato político do Estado nacional-socialista serve a vida do povo... Nós sabemos hoje que a vida de um povo é garantida somente se as qualidades raciais e a saúde hereditária do corpo popular 14

Cf. FOUCAULT, 2000, p. 309-315; 2002, p. 191-198. Desse modo, mostra-se equivocado Agamben (2002, p. 12) ao afirmar que Foucault não teria “deslocado sua investigação para as áreas por excelência da biopolítica moderna: o campo de concentração e a estrutura dos grandes estados totalitários do Novecentos.”

15

FOUCAULT, 2000, p. 309-311. 16

AGAMBEN, 2002, p. 154. 17

(Volkskörper) são conservadas. [...] Política [...], ou seja, o dar forma à vida do povo.18

É de se observar que o projeto nazista se caracterizou não somente pelo objetivo de destruir as outras raças, mas também pela exposição da própria raça ao perigo de morte: assim como assumir o risco de morrer era um dos “deveres fundamentais da obediência nazista”, considerava-se que apenas a “exposição universal de toda a população à morte” é que a constituiria como raça superior e a regeneraria definitivamente perante as raças a serem “totalmente exterminadas ou definitivamente sujeitadas”. A face assassina do projeto pode ser ilustrada pela “solução final” adotada para as outras raças, pela eliminação, “através dos judeus, de todas as outras raças das quais os judeus eram o símbolo e a manifestação”19; a outra, pela incitação ao suicídio absoluto da própria raça, como em março e abril de 1945, quando Hitler ordenou, no “telegrama 71”, a “destruição das condições de vida do povo alemão”, incluindo-se sua infra-estrutura logística e seus equipamentos industriais. Portanto, no nazismo, biopoder (gerir a vida) e soberania (matar e expor à morte) coincidem: “Temos um Estado absolutamente racista, um Estado absolutamente assassino e um Estado absolutamente suicida.”20

Foucault termina o curso Em defesa da sociedade indagando: “Como se pode fazer um biopoder funcionar e ao mesmo tempo exercer os direitos da guerra, os direitos do assassínio e da função da morte, senão passando pelo racismo? Era esse o problema, e eu acho que continua a ser esse o problema.”21 E, pelo que vem demonstrando a história política recente, a tese de Foucault continua válida mesmo tendo-se passado quase trinta anos desde

18

VERSCHUER, 1936 apud AGAMBEN, 2002, p. 154-155, grifo nosso.

19 Além dos judeus, vários outros grupos foram considerados pelo regime nazista como influências prejudiciais ao “desenvolvimento biológico da nação” a serem extirpadas do corpo social: ciganos, doentes mentais, homossexuais, “asiáticos inferiores”, poloneses, russos, sérvios e comunistas. Há de se destacar que estes foram os primeiros a serem internados nos primeiros campos de concentração estabelecidos na Alemanha, em 1923, pelos social-democratas.

20

FOUCAULT, 2000, p. 310-311. Em A vontade de saber, Foucault (2002, p. 196-197) também analisa a formação do racismo moderno, com referências específicas ao problema na Alemanha nazista. Cf. Id., 2000b, p. 312-315, para uma análise do socialismo.

21

sua formulação. Os problemas decorrentes do racismo de Estado têm se apresentado mais atuais do que nunca, e o instrumental analítico proposto por Foucault, um verdadeiro gabarito de inteligibilidade para algumas das mais agudas inquietações herdadas pelo século XXI.