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2. O HIP HOP ENQUANTO MOVIMENTO POLÍTICO-CULTURAL

2.2 Rap : ritmo e poesia em forma de protesto

O rap é o elemento do Hip Hop de maior representatividade no cenário mundial e, por isso, nos deteremos um pouco mais sobre ele, em relação ao break e o grafite. Assim como o reggae, o rap, abreviatura de rythm and poetry, deu os seus primeiros passos na Jamaica, na década de 1960. Como lugares de expressão da diáspora negra, a Jamaica, os Estados Unidos e o Brasil têm muito em comum. São países fortemente influenciados pelo modelo escravista do período colonial e pelos traços culturais trazidos – apesar da tentativa de diluição dos mesmos pelos colonizadores – pelos africanos. No entanto, não é nossa intenção e nem teríamos condições para tal propósito, empreender uma busca das raízes africanas do rap. Por outro lado, os traços que marcam a produção cultural desses três países têm, também, suas raízes na África com sua rítmica, seus tambores e suas expressões orais e corporais.

O rap tem suas origens nos “Sound Systems”12 colocados nos guetos jamaicanos como alternativa musical ao monopólio das rádios do governo e nos “Toasters”13 – animadores de festas – que além dessa função, invariavelmente, falavam da exclusão social, violência da polícia e da busca de conscientização por parte dos participantes dos eventos nos quais se apresentavam.

Tal retrospectiva histórica do rap, a partir da herança da difusão do reggae na Jamaica feita pelos mesmos sistemas de som, nos leva ao Rythm and Blues americano, som trazido de New Orleans e Miami para a Jamaica que os DJ’s desses países tocavam em festas para os “Toasters” animarem.

12 De forma elementar o sound systems consiste em um par de pick ups (dois toca discos interligados, dois

amplificadores e um microfone) (SILVA, J., 1998).

13 Toasters, advém da palavra Toast. “O Toast caracteriza-se pelo uso da linguagem das ruas e pela construção

de narrativas de experiências que remetem à história de vida dos excluídos, atividades ilegais e semi-ilegais, como jogo e drogas” (SILVA, J,. 1998, p. 38).

Nesse mosaico de influências, com o tempero do Blues, ainda surgiria o “Rocksteady” onde os artistas jamaicanos

[...] pela primeira vez, tinham a oportunidade de mostrar sua consciência política e musical. Com letras de cunho explicitamente social e político, tais músicas mostram a realidade jamaicana, a fome e a miséria dos “bairros de lata”, o desemprego e as perseguições policiais sofridas pela população pobre e negra das favelas (SILVA, Carlos., 1995, p. 42).

Nos Estados Unidos da América, o Jazz já havia proporcionado aos negros norte- americanos uma identidade cultural que “[...] tornou seus gritos de protesto mais comoventes e esmagadores [...]” (HOBSBAWM, 2004, p. 281). Porém o Jazz, assim como o Blues, estava cada vez mais afastado de suas raízes musicais e perdia espaço considerável ao Rock (HOBSBAWM, 2004; TELLA, 1999; HERSCHMANN, 2005).

É nesse contexto que o Soul e depois o Funk aparecem como músicas agressivas, resgatando a retórica negra de protesto, consoante com os acontecimentos históricos da década de 1960, principalmente na voz de James Brown.

O funk radicalizava suas propostas e empregava ritmos mais pesados e arranjos mais agressivos, na tentativa de extrair toda influência branca, refletindo na não aceitação destes parceiros musicais. Esse era um novo momento, uma afirmação da música e do músico negro na sociedade norte-americana. (TELLA, 1999, p. 57).

James Brown, com a música Say it Loud: I’m Black and Proud! contribuía com as manifestações pelos direitos civis nos EUA e proporcionava as bases do pensamento político que foram utilizadas pelos pioneiros do rap mundial.

O rap surge, então, a partir de uma mistura de ritmos e influências que passam pelo reggae jamaicano ao jazz14 americano e recupera tradições orais africanas como a dos griots15, contadores de história que carregavam na memória toda a tradição das comunidades africanas. Reforçamos, também, que as características contestadoras do rap fazem parte de uma história de resistência da arte negra norte-americana, que desde os work songs e os spirituals lutam por seu reconhecimento (HOSBSBAWM, 2004; TELLA, 1999).

Portanto, podemos afirmar ser o rap, bem como boa parte das músicas negras norte-americanas, jamaicanas ou brasileiras, fruto de uma história cultural que remonta às sociedades africanas e sua conseqüente diáspora pelo mundo.

14 É importante constatar que o estilo de jazz que maior influência teve sobre o Hip Hop foi o bebop. Surgido nos

anos 1940, mas retomado nos anos 1960 – década anterior ao surgimento do rap – era o estilo de maior agressividade e com mais características de protesto do jazz americano, inclusive com o uso excessivo de gírias (também característica do rap) para os brancos não imitarem. (HOBSBAWM, 2004).

15 “A referência aos griots remete para práticas comuns ao nordeste da África (Gana, Mali) em que uma casta de

músicos se responsabiliza pela narrativa da história e da sociedade, [...]. Mas, a prática de se narrar a história via oralidade a partir de contos e mitos é algo mais universal na África, [...]”. (SILVA, J., 1998, p. 37).

A sua constituição em termos históricos se prende a fusões culturais e reelaborações musicais relacionadas à tradição cultural afro-americana no contexto das transformações tecnológicas contemporâneas. Os pesquisadores confirmam que no rap ecoam elementos inscritos na tradição africana reelaborados na diáspora. (SILVA, J., 1998, p. 37).

Interessantes, nessa direção, são as palavras de Milton Sales – fundador do movimento Hip Hop organizado de São Paulo e um dos mais reconhecidos produtores de rap do Brasil – em entrevista a Rocha; Domenich e Casseano (2001, p. 133-134):

O rap não é propriedade dos americanos. Tanto a música dos Estados Unidos quanto a do Brasil são a soma de várias coisas do mundo. Você pode falar que ele é pan- africano, porque ele é uma fusão, que vem do reggae, que nasceu com os caras tocando na Jamaica e que ouviram Rhythm’n’blues de Miami. O som começou a se difundir, veio o Ska, o Rocksteady, depois o reggae. [...] o rap é importante pra gente e para o mundo porque não é de ninguém, é uma mistura com as batidas que vêm da África, que os americanos começaram, inspirados nos jamaicanos, mas não é americano. É do mundo.

O rap para os integrantes do movimento Hip Hop não se configura como uma música americana, mas pelo contrário, é reivindicado como uma forma musical que tem origens na rítmica africana, nos contadores de história daquele continente – os griots e que em cada lugar por qual passou adquiriu formas específicas e locais, retratando o cotidiano das comunidades pobres e negras e fundindo-se a elementos musicais diversos, de acordo com a realidade cultural de cada país no qual se inseriu. Mas sem sobra de dúvida foi nos Estados Unidos que o rap adquiriu proeminência se expandido pelos outros continentes. Mas como, de fato, o rap surgiu e se difundiu, via Estados Unidos, pelo mundo?