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TÍTULO GÊNERO

3. LEITURA DAS NARRATIVAS

3.1. LEITURA INTERPRETATIVA DAS LENDAS LATINAS SELECIONADAS

3.1.1. O Rapto das Sabinas

A história sobre o rapto das sabinas, na versão de Tito Lívio, nos conta que após a fundação de Roma por Rômulo e depois deste ter matado o irmão por causa de uma disputa pelo poder, todos os ladrões, assassinos e escravos fugidos dos reinos próximos tinham vindo se estabelecer em Roma. Apenas alguns deles, no entanto, tinham esposas, pois o número de mulheres era muito escasso, de fato. Os romanos, ansiosos em garantir esposas, tentaram pedir mulheres dos estados vizinhos em casamento, mas como eles tinham péssima reputação, a tentativa de persuadi-las não funcionou como o esperado.

Rômulo sabia que seus companheiros logo iriam deixá-lo, caso não arranjassem esposas, então ele resolveu ajudá-los. Enviou trompetistas para todas as cidades e aldeias vizinhas e convidou as pessoas para assistirem os Jogos15 dos romanos, comemorativos a um de seus deuses.

Como esses Jogos eram compostos por várias atividades de entretenimento, todas as pessoas estavam ansiosas para assisti-los, de modo que vieram a Roma desarmadas e em trajes de festa. Famílias inteiras vieram participar da diversão, e entre os espectadores, estavam muitas das jovens mulheres a quem os romanos queriam como esposas.

Rômulo esperou até que os Jogos estivessem ocupando a atenção dos sabinos. Então, de repente, ele deu um sinal, e todos os jovens romanos prenderam as sabinas em seus braços e levaram-nas para as suas casas, apesar de seus gritos e sua luta. Tito Lívio, nesse trecho da lenda, de certa forma ironiza o fato de as sabinas terem se conformado com sua sorte quando foram convencidas de que seriam respeitadas e gozariam de boas condições de vida com o casamento. Sobre isso, o autor evidencia: “A essas palavras somava-se a ternura dos homens, que invocavam como desculpa o ardor de sua paixão, recurso sempre eficaz junto às mulheres” (TITO LÍVIO, 1989, p. 33). Inclusive, cabe destacar que nos dias atuais a interpretação desse trecho não soa tão bem (como talvez soasse na época de Ovídio16) em virtude do desenvolvimento da sociedade

15 Segundo Spalding (1972), os Jogos eram espetáculos consagrados pela religião entre os antigos, e que faziam parte do culto aos deuses, aos semideuses e aos heróis. Havia vários tipos de jogos, como os Fúnebres, Florais, Seculares etc. 16 Citam-se aqui, como exemplos, as obras A arte de amar e Remédios do amor, de Ovídio: encantadoras como obras de arte; perigosas sob o ponto de vista da moral.

contemporânea, na qual a mulher conquistou e continua conquistando cada vez mais autonomia, independência masculina, individualidade e liberdade de expressão.

Os pais, irmãos e amantes das jovens raptadas imediatamente as teriam defendido, mas haviam vindo desarmados para o evento, e, assim, não poderiam disputar a posse das moças. Embora os parentes das sabinas estivessem de luto pela sua captura e tenham voltado para suas aldeias a fim de preparar a vingança, as donzelas cativas já tinham sido forçadas a se casar com seus captores, que prometeram que ninguém iria roubar-lhes suas esposas recém-conquistadas, e se preparavam para resistir a qualquer ataque. Segundo conta o historiador Pierre Grimal, os sabinos logo revidaram:

Loucos de dor e de raiva, enviaram delegações ao rei Tito Tácio, que reinava no país Sabino, e convenceram-no a promover as hostilidades contra os romanos, aqueles vizinhos sem fé nem lei. Logo um poderoso exército Sabino se estendia pela planície do Foro, entre o Capitólio e o Palatino. Por sua vez, os companheiros de Rômulo pegaram em armas e travou-se o combate. O confronto foi terrível, a luta encarniçada. Em alguns momentos, a própria existência de Roma se viu comprometida, e Júpiter em pessoa teve de restabelecer o combate. Por fim houve uma acalmia, e entre os dois exércitos, num lamentável cortejo, surgiram as jovens que eram a causa inocente da carnificina: cabelos soltos, vestes em farrapos, como cabe a suplicantes cuja sorte está em jogo, dirigiram súplicas a seus pais e seus maridos. Perturbados com aquela aparição inesperada dos seres que mais amavam no mundo, uns e outros compreenderam que aquela guerra não só era criminosa como deixara de ter objeto. (GRIMAL, 1991, p. 26). Ainda de acordo com Grimal (1991), após essa intervenção das sabinas em meio ao combate, foi decidida uma trégua entre os dois povos, seguida de um tratado de fusão, que fazia constar que a sede do poder seria transportada para Roma e a população do novo Estado seria

repartida em trinta “cúrias17” designadas pelos nomes das mais virtuosas mulheres sabinas.

Figura 5 – Escultura de Giambologna (1582), chamada O Rapto das sabinas

Fonte: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5d/Giambologna_ra ptodasabina.jpg>. Acesso em: 03 jul. 2013.

Como é possível observar na Figura 5, as representações lendárias não se circunscrevem apenas à literatura: estão presentes nas constantes reescrituras que surgem surpreendentemente novas e belas em obras de arte, sejam elas escritas, orais ou visuais.

Alguns aspectos já analisados em pesquisas anteriores possibilitaram a seguinte interpretação histórica sobre o episódio lendário do rapto das sabinas: após a fundação de Roma, Rômulo e seus companheiros planejaram que mulheres fossem violentamente raptadas de seus pais e maridos em prol do objetivo específico de perpetuar aquela civilização com a instituição do casamento.

17 As cúrias eram uma parcela da estrutura social romana constituída pela reunião de algumas famílias e caracterizada pela existência de um líder, denominado curião.

Portanto, as mulheres, neste episódio lendário, tiveram uma importância histórica imensa em se tratando do fato de que garantiram a perpetuação de Roma:

Esse idílio, embelezado ao longo do tempo pela imaginação dos historiadores e dos poetas (que às vezes o levaram ao palco), inclui talvez fatos exatos. Os ataques maciços de aldeia a aldeia em busca de mulheres não são desconhecidos nas sociedades primitivas, e é possível que os primeiros habitantes de Roma tivessem recorrido a tais práticas. Também é possível que se trate de uma lenda na qual se perpetua apenas a lembrança quase apagada de um rito muito antigo. Mas a realidade última que ela esconde no fundo importa bem pouco; mesmo lhe atribuindo certo valor histórico, os romanos a consideravam basicamente um mito, uma história exemplar que justificava toda uma ideologia do casamento. Foi ela que estabeleceu definitivamente a concepção das relações ente cônjuges, e assim os romanos sempre veriam a história das sabinas: uma conquista violenta que termina na ternura. (GRIMAL, 1991, p. 25). Nesse sentido, o que ocorreu após o rapto das sabinas, portanto, altera o curso de como as mulheres eram vistas na sociedade romana de então, pois “a urbe propriamente dita só começou com o consentimento das sabinas em seu rapto. Sem ele [o consentimento], a obra de Rômulo não poderia ser duradoura; só ele tinha o poder de ancorar Roma em seu solo para sempre”. (GRIMAL, 1991, p. 27). Além disso,

Como hábito, o espírito romano tendeu a dar a este fato consequências jurídicas. Contam-nos que, por ocasião do tratado com os sabinos, os romanos garantiram a suas mulheres condições de vida honrosas. Elas não fariam nenhum trabalho servil; teriam como única tarefa criar os filhos e fiar a lã. Escravas e criadas se incumbiriam do resto. (GRIMAL, 1991, p. 27).

O autor também destaca que, na realidade, a lenda das sabinas mostra que é preciso atenuar as conclusões que acreditaríamos dever tirar dos textos jurídicos, pois junto com o nascimento de Roma houve a ascensão moral da mulher e o reconhecimento de valores quase inteiramente estranhos à idade heroica do mundo grego (GRIMAL, p. 26).