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1 A VIVÊNCIA DE CALVINO EM PARIS

1.1 UM ENCONTRO MARCANTE

1.1.1 Raymond Queneau na cena literária francesa

Para tentar compreender a importância que Calvino atribui a Que- neau, o autor do único romance que traduziu, cuja presença marcou for- temente os últimos vinte anosda sua carreira, examinaremos brevemente a atuação do escrior francês e as características mais marcantes da litera- turaque produziu.

O lugar de Queneau na cena literária francesa está marcado pela sua intensa atuação. Leitor de grande cultura, escritor e teórico, como Calvino Queneau também esteve ligado a uma grande editora, onde re- alizou um importante trabalho durante décadas. Sua atividade editorial na Gallimard se desenvolveu durante os anos de 1941 até 1976, o ano de sua morte. Foi membro do Partido Comunista Francês e esteve em con- tato com os mais importantes movimentos literários e culturaispresentes na cena parisiense do século XX – do surrealismo de André Breton ao existencialismo de Jean Paul Sartre, sem aderir incondicionalmente a ne- nhum deles. Esta independência intelectual teve como resultado uma obra múltipla e diversificada, composta de romances, poesias, ensaios, contos, roteiros para filmes e letras de música.

No final da década de 1920 começou a frequentar o grupo surrealista, de Prevert a Breton, com quem rompeu relações por problemas pessoais em 1932 e no ano seguinte começou a publicar seus próprios escritos. Como romancista, poeta e dramaturgo, caracteriza-se por cultivar uma paixão insólita pela matemática, cujo trabalho combinava a experimentação com muita imaginação e humor. Na década de 1930 participa das discussões da vanguarda literária e dos estudos especializados, se envolvendo nos debates mais avançados da cultura filosófica daqueles anos. Como observa Calvino, a revolução formal que Queneau preconiza “se enquadra num pano de fun- do que é desde o início filosófico”. (CALVINO, 2007a, p. 257). Quase sem- pre em sua obra são encontradas referências às teorias e pesquisas eruditas mais recentes divulgadas pelas instituições acadêmicas de Paris.

Sua ligação com os escritórios da Gallimard começou em 1938, como leitor, ocupando vários cargos até se tornar diretor do grande pro- jeto da editora, a coleção de volumes clássicos “Bibliothèque de la Pléia- de”, durante as décadas de 1960 e 1970. Nesta coleção sepublicavam edi- ções críticas de obras de autores franceses, com anotações e comentários preparados por um grupo de especialistas e para os autores estrangeiros eram criadas também traduções francesas. Fazer parte da “Bibliothèque

de la Pléiade” era considerado o maior sinal de reconhecimento para um autor na França12.

A primeira experiência literária ligada ao grupo surrealista, que o escritor começou a frequentar na década de 1920 e do qual se afastou alguns anos mais tarde, o levou a elaborar uma concepção de literatura que se con- trapunha à surrealista de matriz romântica, em que o autor escreve movido pela a idéia de libertação dos instintos e impulsos,sem qualquer controle racional.O termo surrealismo, cunhado por André Breton traz um sentido de afastamento da realidade comum que o movimento surrealista celebra desde o primeiro manifesto de 1924. Autor do manifesto, Breton define o surealismo como

automatismo psíquico pelo qual propomos expri- mir, verbalmente, por escrito ou de qualquer outra maneira o funcionamento real do pensamento na ausência de qualquer controle exercido pela razão, fora de qualquer preocupação estética ou moral.13 (1988, p. 328).

A importância do mundo onírico, do irracional e do inconsciente, anunciada no texto de Breton, se relaciona diretamente ao uso livre que os artistas fazem da obra de Sigmund Freud e da psicanálise, permitindo-lhes explorar nas artes o imaginário e os impulsos ocultos da mente. O cará- ter anti-racionalista do surrealismo coloca-o em posição diametralmente oposta às tendências formalistas que estão presentes na arte da Europa após a Primeira Guerra Mundial.

Queneau recusa a ideia de que o poeta ao criar seja guiado pelo in- consciente, pelo automatismo, pela inspiração: para ele o autêntico criador é aquele que se impõe regras conscientes. O artista deve estrar consciente das regras que deve seguir, se não estará sujeito a restrições que não conhece. 12 Jorge Luis Borges foi o único autor latino-americano a ser publicado na coleção. A série começou a ser publicada em 1930 pela Gallimard, que a publica até hoje, e a partir de 1992 passou a ser publicada também em italiano, pela editora Einaudi, em volumes com as mesmas características de encadernação, impressão e papel da coleção francesa.

13 “Automatisme psychique par lequel on se propose d’exprimer, soit verbalement, soit par écrit, soit de toute autre manière, le functionnement réel de la pensée en l’absence de tout contrôle exercé par la raison, en dehors de toute préoccupation esthétique ou moral.” (BRETON, A.Ouevres complètes. Gallimard, 1988).

O escritor ou o poeta que se acha inspirado e que vê na sua arte a expressão pura do próprio sentimento, se submete a determinações que não sabe quais são. Essas considerações, que remontam aos anos 1930, antecipam o pro- grama do Oulipo que propunha estruturas literárias artificiais para favorecer a tarefa criativa dos escritores. Leitor atento de obras científicas, conhece- dor das mais novas teorias desde adolescente, Queneau cursa a faculdade de filosofia onde faz curso de lógica e privilegia as leituras filosóficas ligadas à matemática. Este interesse o levou a inscrever-se na faculdade de matemá- tica, mas sem os resultados esperados. Apesar do fracasso da sua carreira universitária, manteve um grande interesse pela matemática durante toda a sua vida. No desenho da circularidade da ciência esboçado por Queneau em um escrito citado por Calvino no ensaio A filosofia de Raymond Queneau, aparece a afirmação: “toda a ciência, em sua forma acabada, se apresenta como técnica e como jogo. Ou seja, nem mais nem menos de como se apre- senta a outra atividade humana: a Arte”. Segundo Calvino,

trata-se de um paradigma que para ele se adapta igualmente à ciência e à literatura: daí a desenvoltura que ele demonstra ao se deslocar de um terreno para o outro e ao compreendê-los num único discurso. (CALVINO, 2007a, p. 263).

Nas obras poéticas como Petite cosmogonie portative (1950), que descreve a criação do mundo em termos científicos, ou Le chant du Styréne (1957), na qual é narrada com a terminologia própria da química a criação do plástico, chamam a atenção essas competências, na verdade nada usuais para um literato, que são a base de grande parte das obras de Queneau. Parece que o que caracteriza a obra de Queneau no cenário literário contemporâneoe não só francês, é o fato de ser construída sobre uma mistura de ciência e literatura sem que isso pese na narrativa, que é divertida e leve como em Les fleurs bleues.

Queneau experimentou novas estruturas literárias e formas linguísti- cas inéditas e a matemática é uma constante na construção de suas obras. A ligação com a matemática que se encontra na base de suas obras, na realida- de corresponde a uma intenção poética proposital, que privilegia a estética da forma. Seus livros são construídos com o jogo combinatório de elemen- tos matemáticos, como Exercices de Style (1947) que conta uma mesma história reescrita noventa e nove vezes em estilos diferentes, ou Cent mille

milliards de poèmes(1961), que não se apresenta como obra acabada, mas como “um modelo rudimentar de máquina para a construção de sonetos, um diferente do outro”. (CALVINO, 2009, p. 203). No livro, dez poemas em versos alexandrinos sobre a origem da Terra podem ser associados livre- mente produzindo outros poemas. Cada verso é escrito numa tira recortada de papel e cada página é composta por quatorze tiras independentes que po- dem ser viradas uma de cada vez, como em alguns livros infantis, chegando a produzir novos poemas em número de dez na décima quarta potência, ou seja, os cem mil bilhões de poemas mencionados no título.

Além do exercício literário da potencialidade, a originalidade do escritor francês foi também ter querido incluir a sintaxe e as imagens da língua naturalmente falada em Paris em sua literatura. Queneau quis trazer para a literaturao neofrancês, a língua francesa falada, com sua inventivi- dade, mobilidade e economia expressiva que queria aproximar do francês escrito, com sua rígida codificação ortográfica e sintática, transpondo a língua da oralidade para o texto literário. Segundo Calvino,

o neofrancês, enquanto invenção de uma nova correspondência entre escrita e fala, é apenas um caso particular da sua exigência geral de inserir no universo uma ordem que só a invenção (literária e matemática) pode criar, dado que todo o real é caos. (CALVINO, 2007a, p. 258).

As primeiras reflexões de Queneau sobre o neofrancês e a orto- grafia fonética são feitas no ensaio Écrit en 1937, publicado em Bâtons, chiffres e lettres, onde aparece a questão “da língua falada, ou melhor, da língua falada escrita, porque se tratará aqui mais exatamente da passa- gem, para uma língua nova (a saber, o francês como se fala atualmente) da fase oral à fase escrita”.14 (QUENEAU, 1965, p. 12, grifo do autor).

A ideia de incluir a linguagem coloquial na literatura é baseada em rever a grafia das palavras, criando uma escrita fonética racional – a ortograf fonétik. Como observou no ensaio Écrit en 1955:

14 [...] “du langage parlé , ou plutôt du langage parlé écrit, car il s’agira ici très exactement du passage , pour une langue nouvelle (à savoir le français tel qu’il se parle actuellment) de la phase oral à la phase écrit”. (QUENEAU. Écrit en 1937. In: Bâtons, chiffres e lettres. Gallimard,1965, p. 12).

a conversação tem um ritmo, um movimento, uma falta de sequência nas ideias com, por outro lado, estranhas associações, lembranças curiosas, que não se assemelham em nada aos diálogos que preenchem, habitualmente, qualquer romance.15 (QUENEAU, 1965, p. 90).

As obras mais conhecidas de Queneau, entre os dezessete romances e os doze livros de poesia que escreveu, são talvez Pierrot mon ami (1942), seu primeiro sucesso, Exercices de Style (1947), Zazie dans le métro (1959) e Cent mille milliards de poèmes (1961). O autor se popularizou com o romance Zazie dans le métro,que foi transposto para o teatro por Olivier Hussenot em dezembro do mesmo ano do lançamento do livro. No ano se- guinte, em 1960, uma transposição para o cinema foi feita por Louis Malle, um dos cineastas de ponta da nouvelle vague, o movimento cinematográfico francês de maior sucesso entre a crítica e o público na época.Está associada a esse romance a consagração do autor na literatura francesa. Seu nome foi atribuído a uma estação da linha 5 do metrô parisiense, privilégio até então compartilhado por renomados autores da literatura francesa mundialmente conhecidos como Victor Hugo e Diderot.

No romance Zazie dans le métro,Queneau utilizou a escrita foné- tica para representar a língua francesa falada na vida cotidiana,adotando uma nova linguagem literária. O artifício usado por Queneau para trans- por a língua falada para a literatura, a ortograf fonétik, procurava repro- duzir a fonética das palavras com uma ortografia própria. De acordo com as considerações feitas por Roland Barthes no posfácio que escreveu para o romance,16 nesta intervenção sobre a língua francesa,

o que é demonstrado e ridicularizado não é de modo algum a irracionalidade do código gráfico; todas as 15 “la conversation a un rythme, un mouvement, une absence de suíte dans les idées, avec, par contre, d’étranges associations, de curieux rappels, qui ne ressemblent en rien aux dialogues qui remplissent, habituellement, n’importe quel roman”. (QUENEAU. Écrit en 1955. In: Bâtons, chiffres e lettres. Gallimard,1965, p. 90). 16 O livro Zazie no metrô foi publicado no Brasil pela primeira vez em 1985, pela Editora Rocco com tradução de Irène Cubric. Em 2009, a Cosac Naify editou um volume comemorativo aos 50 anos do lançamento do romance, com tradução de Paulo Werneck, contendo o posfácio de Barthes escrito para a edição francesa até então inédito no Brasil.

reduções de Queneau têm mais ou menos o mesmo sentido: fazer surgir no lugar da palavra pompo- samente envelopada em sua roupagem ortográfica uma palavra nova, indiscreta, natural. (BARTHES, 2009, p. 178).

O efeito resultante dessas intervenções sobre a língua, que são usa- das também em Les fleurs bleues, é uma linguagem literária que deve ser lida como se fosse dita. Como afirmou Roland Barthes, concluindo o posfácio que escreveu para Zazien o metrô: “Para Queneau, a literatura é uma categoria da palavra, portanto da existência, que diz respeito a toda a humanidade. Sem dúvida, como se viu, boa parte do romance é jogo de especialista”. (2009, p. 181).

De acordo com Calvino, Queneau “durante a sua batalha pelo neo- francês, dessacraliza a suposta imutabilidade da linguagem literária para aproximá-la da verdade da fala”. (CALVINO, 2007a, p. 268). Ao usar esta escrita fonética em seus romances Queneau tinha também a intenção de provocar um efeito cômico, mas com a preocupação de não tornar seus textos incompreensíveis, tomava o cuidado de não usar essa linguagem em toda a extensão do texto.

O trabalho com o significante, os jogos de palavras nos romances com as suas pesquisas expressivas, desde Zazie dans le métro até Les fleurs bleues, expressa uma irônica visão existencial que atrai o leitor pela sua carga de humor, mas o leitor percebe logo que o objetivo do romance não é apenas fazer rir. De acordo com Chabanne,

os verdadeiros leitores de Queneau não se conten- tam em reduzir o humor a simples jogos sobre a matéria verbal e a um efeito de divertimento sem consequência para o leitor. Para eles, os jogos de linguagem são apenas a superfície de um trabalho cuja proposta é ambiciosa.17 (1996, p. 4-5).

17 les vrais lecteurs de Queneau ne se contentent pas de réduire l’humour à de simples jeux sur le matériau verbal et à un effet d’amusement sans conséquence pour le lecteur. Pour eux, les jeux de langage ne sont que la surface d’un travail d’écriture dont l’enjeu est ambitieux. (CHABANNE, Jean-Charles. En lisant les lecteurs de Queneau, 1996, p. 4-5).

Depois da publicação de Les fleurs bleues, Queneau escreve apenas mais um romance Le vol d’Icare (1967), em que narra a história de um perso- nagem que foge da página escrita e passa a viver no mundo real. A partir desta data dedica-se exclusivamente à poesia, escrevendo a trilogia composta por Courir les rues (1967), Batre la campagne (1968) e Fendre les flots (1969), que segundo Sergio Cappello pode ser associada a Palomar. A trilogia inicia:

uma nova poética da experiência trivial do cotidia- no, da experiência ordinária, que não é sem relação com o que se pode considerar como a obra prima da maturidade de Calvino, o romance Palomar.18 (CA- PPELLO, 2007, p. 244).

Palomar (1983), o último romance de Calvino, se detém também na descrição detalhada de observações das experiências diárias da vida cotidiana.

Além de ser conhecido pela literatura que produziu, a notoriedade de Queneau se deu também por ter fundado em 1960, junto com o matemático François Le Lionnais, o Oulipo – Ouvroir de littérature potentielle, o La- boratório de literatura potencial, grupo que promovia a experimentação de literatura baseada em vários tipos de limitações, as chamadas contraintes. Segundo Henri Godard, crítico literário que organizou com a colaboração de outros autores a coleção das obras completas de Queneau para a Gallimard,

Ninguém na França explorou mais metodicamente as possibilidades desta via que Raymond Queneau. Longe de se limitar a ela: ele surpreende a cada dia passando a outros meios de recolocar em questão a forma dominante do romance.19 (GODARD, 2003, p. 23)

18 “une nouvelle poétique du quotidien, de l’expérience ordinaire, qui n’est pas sans rapport avec ce que l’on peut considérer comme le chef d’oeuvre de la maturité de Calvino, le roman Palomar”. (CAPPELLO, Sergio. Les années parisiennes d’Italo Calvino, 1964-1980: Sous lesigne de Raymond Queneau. Paris: Presses Paris Sorbonne, 2007, p. 244).

19 “Personne en France n’a plus méthodiquemente exploré les possibilités de cette voie que Raymond Queneau. Il est loin de s’y limiter: il saisit tour à tour au passage bien d’autres moyens de remettre en question le forme dominante du roman.” (GODARD, Henri. Queneau et les problèmes de la construction du roman. In Europe, revista literária mensal, 2003, p. 23).

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