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Razão de ser e evolução no tempo

Como se viu, a génese do recurso de revisão assenta num princípio fundamental: o princípio

da justiça142.

Considerou o legislador constitucional e penal que, não obstante a indiscutível relevância da segurança jurídica – obtida pelo trânsito em julgado das decisões – esta não deveria nem poderia ser instituída de forma absoluta, pois, em determinadas situações, os vícios da decisão são de tal modo gravosos que não seria tolerável a manutenção dessa decisão «viciada».

Recorrendo às palavras de Cavaleiro Ferreira143, “o direito não pode querer e não quer a

manutenção duma condenação, em homenagem à estabilidade de decisões judiciais, a garantia dum mal invocado prestígio ou infalibilidade do juízo humano, à custa de postergação de direitos fundamentais dos cidadãos…”.

Assim, a intangibilidade do caso julgado cede, nestes casos, perante o «valor superior» da justiça da decisão e tal acontece porque nestes casos o prejuízo resultante da manutenção da

decisão viciada é superior ao prejuízo causado pela preterição do caso julgado144.

O instituto jurídico do recurso de revisão teve origem no período do Império romano. Contudo, foi apenas no século XIX que este sofreu um crescimento exponencial, com o seu acolhimento pela generalidade dos ordenamentos jurídicos, após a sua inserção no Código de Instrução Criminal francês, em 1808.

Este foi, efetivamente, um «ponto de viragem» para o recurso de revisão, pois se até então era entendido como uma “graça de poder”, a partir daquela altura passou a ser visto como um

verdadeiro direito do condenado145. Este conceito continuou em desenvolvimento, sendo hoje

entendido, não apenas como um direito pro reo, mas também como um direito pro societate.

142 Etimologicamente, “justiça” deriva do vocábulo latim “justitia” e pode ser definido como a particularidade do que é justo e correto (como por

exemplo, o respeito pela igualdade de todos os cidadãos). Para maiores desenvolvimentos sobre a Justiça, cfr. FERREIRA, J. O. Cardona – O Direito fundamental à justiça. Um novo paradigma de justiça? [Em linha]. Julgar [Consult. 29 Setembro 2016] Disponível em http://julgar.pt/?s=o+direito+fundamental+%C3%A0+justi%C3%A7a.

143 FERREIRA, Manuel Cavaleiro de – Revisão Penal. SCIENTIA IVRIDICA, 1965.,Tomo XIV, nº 75/76, Editorial SCIENTIA & ARS Editorial, BRAGA:

Livraria Cruz, p. 520-521.

144 SILVA, Germano Marques da, op. cit., p. 380.

145 Em Portugal, a revisão já existia como “graça de poder” nas Ordenações Afonsinas. Com a revolução liberal, passou a ser entendida como um

verdadeiro direito do condenado e já não, como uma “graça especialíssima do rei”. Para maiores desenvolvimentos sobre a evolução histórica do recurso extraordinário de revisão, cfr. VILLELA, Álvaro Machado, op. cit.; ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de – A reforma da justiça criminal em Portugal e na Europa. Coimbra: Almedina, 2003; e EIRAS, Henriques – Processo Penal Elementar. Lisboa: QUID IURIS, 2010.

53 Em Portugal, o recurso de revisão foi acolhido com as Reformas Judiciárias. Concretamente, em 13 de janeiro de 1837 entrou em vigor a Nova Reforma Judiciária e em 21 de maio de 1841 a Novíssima Reforma Judiciária, as quais foram buscar «inspiração» ao direito francês. Consagravam um sistema legal taxativo, apenas admitindo a queda do caso julgado quando existissem duas decisões contraditórias, a condenação de alguma das testemunhas do processo por perjúrio ou a condenação de algum dos jurados por suborno ou peita.

Em 27 de fevereiro de 1895, o Decreto ditatorial – convertido posteriormente, na Lei de 3 de abril de 1896 – veio introduzir no nosso ordenamento jurídico a revisão propter nova, que permitia a queda do caso julgado – para além das situações já expressamente previstas na Novíssima Reforma Judiciária – quando tivessem ocorrido situações que justificassem a inocência do condenado. Estávamos assim, perante um regime dualista, constituído, por um lado, por uma série de fundamentos expressos consagrados na lei e, por outro, por uma cláusula geral. Esta Lei de 1896 manteve a revisão apenas em benefício do réu injustamente condenado, decisão bastante criticada por alguma doutrina que defendia também a revisão pro societate.

Tais críticas vieram influenciar o CPP de 1929, que veio confirmar e reforçar o regime criado em 1895/96 – alargando o seu leque de fundamentos e introduzindo uma nova cláusula geral, oriunda do Código Processual Penal italiano de 1913, que permitia a revisão quando se descobrissem novos factos ou elementos de prova que, de per si ou combinados com os que foram

apreciados no processo, constituíssem graves presunções da inocência do acusado146 – e veio

admitir a revisão, também em benefício da sociedade, nos casos de falsidade de meios de prova e da decisão ter sido proferida por peita, suborno, corrupção ou prevaricação dos juízes e jurados.

Este regime manteve-se em vigor até à aprovação do atual CPP, em 1987. O novo CPP baseou-se no modelo anterior, sendo notório, no entanto, um alargamento do seu âmbito de aplicação, pela substituição do termo “graves presunções da inocência do acusado” por “graves dúvidas sobre a justiça da condenação” – expressão que ainda hoje consta da letra do art. 449.º, n.º 1, al. d).

Como vemos, foram escassas e pouco significativas, por assim dizer, as alterações feitas nos últimos dois séculos ao recurso de revisão e, por isso, pergunta-se: a que se deve esta inalterabilidade e estagnação, esta falta de reponderação sobre uma matéria tão relevante? Ora, deve-se, desde logo, à manutenção da preocupação com o valor da segurança coletiva em detrimento do valor da justiça, bem como à escassa importância prática dada a este instituto, ou

54 até, às erróneas prioridades do legislador no momento de atuar, que muitas vezes tem passado o tratamento desta questão relevantíssima para segundo plano.

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