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Capítulo 2 Os reality shows e o Big Brother Brasil

2.2 Realidade e ficção em Big Brother Brasil

Para Lorenzo Vilches, assistimos hoje a uma ‘‘contaminação ambiental entre a ficção e os formatos de realidade’’. Na concepção do autor, programas como Big

Brother e Gran Hermano incorporam elementos característicos das narrativas

ficcionais, diluindo as fronteiras que separam de forma estrita e categórica os domínios do real e da ficção. Segundo o autor, esses programas combinam os ingredientes dos formatos de realidade com uma estrutura ficcional, geralmente baseada na viagem do herói individual ou coletivo.

É parte da estratégia de marketing do formato acentuar seu caráter de realidade e tentar equipará-lo às produções de tipo afílmico (aquelas em que os filmados não têm consciência da existência câmera). Os flagrantes ao vivo ou as reportagens com câmera

escondida surgem como o ideal ao qual os responsáveis por esses programas se reportam. Na Argentina, a apresentadora do Gran Hermano local anuncia, logo na abertura do programa: Bienvenidos a Gran Hermano. Bienvenidos a la vida en directo! No Brasil, o apresentador Pedro Bial repete diária e insistentemente um convite similar:

Vem! Vamos espiar pelo buraco da fechadura! Nos dois casos, aparece subjacente a

idéia de que o que se oferece ao espectador é um mundo insensível às câmeras. Quem é observado pelo buraco da fechadura não tem consciência daquele que o observa; a ‘‘vida en directo’’ não supõe a mediação nem a interferência da câmera. O que se reivindica, na retórica dos programas, é a idéia ingênua de que nada do que se encena foi produzido para ser filmado, como se Big Brother oferecesse para os espectadores o real capturado em flagrante.

De fato, a reivindicação inscrita nas intervenções dos dois apresentadores é insustentável. O afílmico não faz parte do BBB: os participantes não só sabem que estão sendo filmados como a maior parte do tempo dirigem suas ações para as câmeras. O que predomina em BBB, portanto, são as ações profílmicas, ou seja, performadas para serem filmadas. Nos formatos reality, as posturas e os discursos que atores assumem existem em função das câmeras: sabendo-se filmados, eles assumem algumas posturas e evitam outras, representando-se a si mesmo para a câmera e para o público.

A preponderância do profílmico sobre o afílmico não faz de BBB um programa estritamente ficcional. Mesmo que as ações sejam dirigidas para as câmeras, elas não são roteirizadas nem mesmo dirigidas. Embora a produção de Big Brother busque conformar as ações dos participantes – estipulando horários, criando festas, propondo provas, estimulando o conflito nas votações ao vivo – não existe nenhum tipo de texto que dita falas ou impõe comportamentos específicos aos personagens. Nesse sentido, ao contrário do que acontece em filmes ou nas telenovelas, o rumo das ações dos personagens, em última instância, é determinado por eles próprios.

Para Lorenzo Vilches, é justamente nesse ponto que a ‘‘realidade’’ se insinua em

Big Brother. As brigas, os laços afetivos, os complôs e as chantagens são criações dos

próprios personagens: não existe uma instância superior que lhes dita, de maneira irrevogável, as reações emocionais, as palavras e os gestos. As condutas assumidas pelos personagens são resultado de sua própria ação reflexiva, escolhas efetuadas no dia-a-dia do confinamento, provocadas pela ciência da atenção que lhes é dirigida pelo público e pelos demais confinados.

Na lida diária com as câmeras e com os outros participantes, os participantes do programa fabricam personagens de si mesmos, se inventam e reinventam, seja como figuras paternais, sensuais, ou intelectualizadas, sempre levando em conta a massiva atenção pública que lhes é dirigida. Essas diferentes estratégias implicadas na representação do eu não devem ser tratadas como vetores de ficcionalização. Como lembra Goffman, nas mais ordinárias situações do dia-a-dia, os agentes se vêem envolvidos na tarefa de construir uma representação de si que seja condizente com seus propósitos em uma situação interacional particular. Em face de interlocutores e de situações específicas, os agentes orientam sua conduta de forma a assumir um papel que se entende mais adequado para o momento em causa. Nesse sentido, o que vemos em

Big Brother não são pessoas empenhadas em ser o que não são, mas sim pessoas sendo

o que de fato são, em uma situação sui generis – que as mantém 24 horas monitoradas por câmeras e submetidas ao escrutínio de um público amplo. O sorriso constante de um personagem ou as lágrimas que outro teima em ostentar nas mais diferentes ocasiões podem ser fingidos, mas são incapazes de esconder um dado incontornável do real: estamos diante de pessoas que buscam incluir alegria e/ou fragilidade na representação que constroem para as câmeras e para o público.

Para Fernando Andacht, o acento de realidade implicado no formato aparece ainda no ‘‘resíduo de real’’ surgido das relações estabelecidas entre os participantes do programa. Adotando uma perspectiva pierciana, o autor define o real como ‘‘aquilo cujas características são independentes de nossa opinião a respeito delas’’ (PIERCE, apud ANDACHT, 2003, p.18). Em BBB, no contato cotidiano entre os competidores, traços inequívocos de realidade se insinuam frente às câmeras em manifestações de natureza indicial. Como postula Pierce, índices são objetos de significação menos mediados pelos sujeitos e mais motivados pelo fenômeno representado: na acepção do autor, trata-se de signos que mantêm com aquilo que representa uma relação de causalidade e contigüidade espacial e existencial. Para Andacht, o mais importante no formato Big Brother – aquilo que determina sua especificidade e sua popularidade – não são as intervenções verbais dos confinados, mas sim o derrame cotidiano e monitorado de seus humores corporais, o suor, a lágrima, a crispação de músculos que indica dor ou alegria, prazer ou fadiga, sinceridade ou fingimento. ‘‘O autêntico protagonista de Gran

Hermano é uma transpiração sígnica difícil de produzir intencionalmente de modo

convincente (...) Nisso consiste a atração semiótica do index-appeal. (Andacht, 2003, p. 43). Para o autor, o componente indicial presente no programa coloca em cena

inequívocos fragmentos do real, marcas de um mundo que dificilmente se produz intencionalmente e que a produção do programa não consegue escamotear ou falsear.

Dessa forma, em resumo, o que é ‘‘real’’ em Big Brother é aquilo que se insinua frente às câmeras: as relações de afeto estabelecidas entre os participantes, os comportamentos adotados, as manifestações indiciais do estado de espírito e das disposições dos confinados. Contudo, essa matéria prima de realidade não é apresentada ao público tal qual captada pelo olho da câmera. O que vai ao ar diariamente em BBB é uma versão reconfigurada desse material: os editores e a equipe de montagem do programa refazem e reordenam a narrativa do programa, atribuindo-lhe uma ordem e uma coerência particular, acrescentando ao material bruto uma nova camada de significados.

Os recursos de edição, montagem e sonorização empregados pelo programa, reconstroem o filmado e introduzem traços ficcionais da narrativa. Em BBB7, o riso de Caubói, em mais de uma ocasião, é distorcido de modo a se assemelhar à gargalhada estereotipada dos vilões e das bruxas dos contos de fada. As músicas – onipresentes no programa – são acopladas às imagens, de forma a sugerir climas de romance, tensão ou humor, associando ao filmado um sentido que ultrapassa e conforma aquele capturado pela câmera. Além disso, recursos como charges e animações eletrônicas, repetidamente explorados pelo programa, são utilizados para reproduzir diferentes ações dos personagens, tanto dentro quanto fora da casa: enquanto um participante relata o sonho ou alguma experiência de sua infância, por exemplo, uma animação transforma em imagens aquilo que é narrado em off, oferecendo para o telespectador uma versão caricatural e colorida das confidências do personagem. Além disso, os próprios resumos diários selecionam e eliminam passagens específicas, construindo uma narrativa particular, condensada, enxuta e coerente, que atribui papéis e um lugar específico na trama para a cada participante.

Esses recursos de montagem e edição permitem a construção de narrativas que se assemelham às narrativas de ficção. Para Lorenzo Vilches, os reality shows geralmente apresentam conteúdos análogos ao das telenovelas ou dos TV movies europeus: heróis anônimos, proezas da vida cotidiana, sonhos de glória artística são uma constante nas narrativas do gênero. As amizades, os amores desfeitos e os conflitos surgidos espontaneamente entre os participantes ao longo do jogo são aproveitados pela equipe de edição e transformados em motor da trama exibida na TV. De acordo com o Vilches, é nesse ponto que a narrativa de BBB toca os domínios da ficção: ‘‘todo roteiro

de ficcional se constrói por meio da intervenção de obstáculos como desencadeantes do drama’’ (VILCHES, 2005 p. 34). A partir das brigas e dos conflitos surgido na casa, os personagens se aliam e/ou se opõe uns aos outros, sedimentando o terreno sobre o qual a trama se desenrola. Esses acontecimentos são explorados ao máximo pela produção do programa: as disputas, a construção e a ruína das amizades e dos laços de afeto são acompanhados em seus pormenores e ocupam um lugar central no programa. É grande o interesse do público pelo fazer e desfazer das relações dos personagens na casa: o desenlace dos conflitos passionais converte-se em um atrativo fundamental do programa, exatamente como acontece em telenovelas e seriados televisivos5 (VILCHES, 2005).

A semelhança entre a narrativa de Big Brother e as narrativas ficcionais não anula a relevância dos vestígios de ‘‘real’’ presentes nas posturas adotadas pelos participantes e no apelo indicial do programa, mas aproxima o formato dos gêneros estritamente ficcionais. Nesse contexto, os princípios melodramáticos que norteiam as histórias das telenovelas e dos seriados televisivos acabam contaminando a própria narrativa dos reality shows. Para Fernando Andacht, ‘‘as lágrimas, gritos e sussurros’’ que emergem como indício de real em Big Brother, são apresentados ao público num enquadramento melodramático. ‘‘O elenco, recrutado por ser propenso a interagir sem demasiado recato expressivo e a música que propicia afetos e emoções a flor da pele, fazem que Gran Hermano possua as características típicas de um melodrama convencioanal (ANDACHT, 2003, p. 19).’’ Além disso, como lembra Vilches, a amada, o herói e o vilão melodramático estão presentes também nos formatos reality. Desse modo, se, de forma geral, a televisão brasileira se mostra bastante receptiva ao melodrama – gênero que encontra expressão até mesmo em programa jornalísticos, como Jornal Nacional e Linha Direta – a inclinação melodramática de Big Brother não faz do programa uma exceção no universo televisivo brasileiro, mas sim um dos muitos exemplos de produtos em que o real e o ficcional se interpenetram, alimentando mestiçagens e diluindo fronteiras.

5 Nesse ponto, os diagnósticos de Lorenzo Vilches e Fernando Andacht entram em confronto: se para

esse último, o espectador de Big Brother é um ‘‘caçador de índices’’, figura interessada sobretudo em flagrar a irrupção do real em horário nobre, para Vilches, é o reconhecimento dos traços de ficcionalidade presentes do programa que explicaria o sucesso popular do formato. Segundo ele, ‘‘os formatos de realidade tem a força que estão demonstrando graças à utilização de dispositivos narrativos que pertencem ao gênero de ficção’’. Nesse sentido, postula o autor, é provável que ‘‘as pessoas premiem aquilo da realidade que mais se assemelha à ficção’’.

Nas páginas seguintes discorreremos sobre as principais características melodrama para, em seguida, discutirmos a forma com que o gênero se dá a ver nos enquadramentos que o programa aplica aos posicionamentos assumidos pelos personagens de BBB7.

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