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Realidade Urbana Fonte: Autor Artur Garlet Dietrich – 2009

“Uma coisa que me atinge muito mesmo é sobre a natureza,

que eu tinha que estar mostrando pros meus filhos, contando pra eles, fazendo com eles,

praticando com eles seria mesmo no mato, na mata.

Só que hoje eu passo pros meus filhos em palavra, em história agora, eu passo sempre pros meus filhos em palavra, em história o que ainda existe, o que nós fizemos, o que a gente faz, sempre falei, sempre conto pra eles pra que

eles não esqueçam. Mas na verdade era mostrar pra eles, pra eles praticar. Ensinar a minha filha fazer um pixé, fazer um kumĩ, um pyrfé. Minhas filhas moças agora não sabem fazer um pixé, um ëmĩ lá assim, fazer alguma coisa natural mesmo eles não sabem, tem coisas que a gente tem que

estar ensinando agora, mas é tudo comprado, pra poder mostrar. Lá nas reservas indígenas não precisava gastar, a gente mesmo plantava ou

conseguia as folhas por lá”.

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Neste depoimento um pai Kaingang expressa que a dinâmica do seu povo esteve vinculada à natureza ao afirmar que “eu tinha que estar mostrando pros meus

filhos”, e que suas filhas moças não sabem “fazer alguma coisa natural”, isto

demonstra a mudança de sua realidade com o passar dos tempos. Ele reside em São Leopoldo e, em sua memória está inscrito o que vivenciou quando residia na TI de Nonoai.

Afirma que, naquela época, “não precisava gastar” o que demonstra que não encontra na cidade seus alimentos tradicionais, e sente-se “atingido” em relação à escassez dos recursos alimentares advindos da natureza.

As lembranças falam de um tempo que não existe e das mudanças que ocorreram para os Kaingang, pois antes, alimentavam-se na natureza e agora, em meio urbano, compram os produtos e não podem ensinar aos filhos como colher da mata os alimentos necessários a sua subsistência. Em sua expressão, o participante Terra traz para o presente o que lhe foi ensinado:

[...] hoje eu passo pros meus filhos em palavra, em história agora. [...] Eu passo sempre pros meus filhos em palavra, em história o que ainda existe, o que nós fizemos, o que a gente faz, sempre falei, sempre conto pra eles pra que eles não esqueçam (Terra, 2009).

Para que os filhos não se esqueçam da cultura de seu povo, contam histórias, “passo sempre [...] em palavra, em história” evidenciando principalmente que é através da oralidade que essas culturas resistem.

Neste capítulo, apresentamos a análise dos dados, tendo como evidências as categorias apresentadas nos quadros três e quatro do capítulo 2. Ressaltamos que as falas dos gestores públicos (Verde, Marrom e Cinza) não estarão em itálico, optamos por inserir itálico apenas nas falas dos Kaingang (Vento, Chuva, Ar, Água, Fogo, Terra) por entendermos que desta forma facilita a leitura e identificação das expressões dos participantes na pesquisa.

Na pesquisa bibliográfica sobre as atividades produtivas desenvolvidas pelas crianças Kaingang, localizamos breves contribuições em estudos antropológicos (CHAGAS, 2006, 2007) e alguns artigos (BREGALDA; CHAGAS, 2008; MOTA 2000b). Há sim, estudos sobre educação, cultura, saúde, religiosidade, parentesco, referentes aos Kaingang residentes em Porto Alegre e região metropolitana (FREITAS, 2005; ROSA, 2005). Constatamos que, no RS, há carência de estudos

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sobre a presença da criança Kaingang, porém, Silva e Nunes (2002) afirmam que vêm crescendo o número de estudos acadêmicos sobre esta temática, no sentido de trazer os modos próprios das crianças, bem como suas visões de mundo, expectativas, experiências para a atenção das áreas do conhecimento.

Há avanço na produção de teses, dissertações sobre os Kaingang no RS, e, na última década, pesquisadores da UFRGS vêm pesquisando as três etnias64 que residem em Porto Alegre e região metropolitana, mas, especificamente sobre o tema – criança Kaingang em meio urbano em atividades produtivas - inexistem estudos e publicações.

Apresentamos a seguir os resultados do que coletamos, buscando socializar “nosso artesanato” que é esta dissertação, respeitando a complexidade que o tema apresenta.

Na análise do material localizamos nos depoimentos dos indígenas sete categorias intermediárias 1 (p. 51), da mesma forma, nos depoimentos dos gestores públicos destacamos sete categorias intermediárias 1 (p. 52). Essas categorias foram reagrupadas em seis e finalmente em novo re-agrupamento para duas grandes categorias finais que são cultura e política pública.

Embora sejam as mesmas categorias (cultura e política pública) como explicitamos no próprio quadro, é possível observar a importância da cultura para a comunidade indígena, pois a maioria das categorias intermediárias vinculam-se a elas. O mesmo observamos na categoria política pública em relação aos gestores. Essa observação já aponta um dos caminhos necessários para o enfrentamento dessa realidade, que é a compreensão da importância da cultura para os indígenas. Mais do que políticas públicas e trabalho, os indígenas querem ser acolhidos e respeitados no que lhes diferencia e qualifica: a sua maneira singular de ser e viver.

Durante o processo de análise identificamos as seguintes categorias intermediárias 1 nas expressões dos Kaingang entrevistados em relação à categoria final, cultura: atividade produtiva, aprendizagem, artesanato, sustentabilidade, coleta/troca e vulnerabilidade. E em relação à categoria política pública, direitos diferenciados foi a categoria intermediária 1 que sobressaiu. Faremos a análise das

64Charrua, Kaingang e Guarani.

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mesmas de forma individual, mas estamos conscientes de que estão interligadas, da mesma forma que as fibras da taquara tramam-se entre si para resultar em um cesto, também aqui, as categorias interligam uma às outras no momento de refletirmos sobre o que cada uma representa para as famílias Kaingang que residem em meio urbano. Desta forma, descrevemos que:

a) as falas dos sujeitos evidenciam, no processo de construção da análise, que o artesanato é considerado o trabalho da comunidade Kaingang e que esse trabalho é, na cultura indígena, o processo de coleta, preparação, manuseio e confecção do artesanato em taquara e cipó, tendo relação com a aprendizagem das crianças, ou seja, a transmissão de hábitos e costumes. Tais categorias serão apresentadas no item 6.1 – Cultura: nas mãos que tramam a arte de ensinar. O subitem 6.1.1, versará sobre o sistema de coleta, troca, contato dos Kaingang com a cidade e as transformações do artesanato.

b) a categoria final, política pública, é destacada nas falas através de críticas que apontam fragilidade das ações desempenhadas e a falta de garantia para os indígenas. Ambos os grupos entendem que a legislação vigente não contempla a realidade dos Kaingang, e garantem que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)65 é inadequado à realidade Kaingang. No item 6.2, apresentaremos a

categoria políticas públicas e seus reflexos para os Kaingang. Problematizamos sobre a proteção, trazendo suas falas e dos gestores públicos entrevistados, a fragilidade da lei em relação às crianças Kaingang no meio urbano e os direitos diferenciados. Outra categoria que emergiu nos depoimentos foi preconceito, tanto nas falas dos Kaingang como na fala dos gestores públicos pesquisados. Indígenas afirmam que vivenciam preconceito no meio urbano; gestores afirmam que a sociedade envolvente não facilita as relações entre culturas diferentes.

Notamos que as categorias identificadas nos agrupamentos se interligam no momento da categorização e aqui optamos por não dividi-las em subitens para não corrermos o risco de fragmentá-las.

Em nossa análise preocupamo-nos em compreender os problemas que as crianças indígenas enfrentam com a confecção e a venda de artesanatos [...] “até porque eles são reais, por vezes dramáticos, e merecem toda a nossa atenção e

65Lei n°. 8.069, de 13 de julho de 1990.

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cuidados”(SILVA; NUNES, 2002, p. 17). Entendemos que as crianças indígenas, as situações de vulnerabilidade vivenciadas por elas e o acesso aos seus direitos representam, na contemporaneidade, uma expressão da questão social e denunciam o processo de exclusão social.

6.1 – CULTURA: NAS MÃOS QUE TRAMAM A ARTE DE ENSINAR