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Realismo mágico ou «real sobrenatural»

2. O REALISMO MÁGICO E A LITERATURA PORTUGUESA

2.3. A proposta do «real sobrenatural»: Testemunhos de José Saramago

2.3.1. Realismo mágico ou «real sobrenatural»

Não acredito em magias ou feitiços de espécie alguma. Mas se somos todos diferentes, uns mais morenos do que outros, uns mais inteligentes do que outros, também posso conceber que haja pessoas que vêem o mundo como se estivessem simultaneamente dentro e fora dele101...

A afirmação é de José Saramago, numa entrevista de 1986. Para o autor, as capacidades excepcionais, singulares, não normais existem, mas são inerentes aos homens, não exteriores, não dadas por uma entidade superior ou estranha. Fazem parte deles – ou de alguns deles –, tal como outras características mais ou menos comuns. Ele próprio afirma ter uma certa predisposição para este tipo de percepções, mesmo não tendo uma explicação para elas. Decrevendo a sua entrada numa igreja onde decorre um funeral, escreve o narrador de Viagem a Portugal (um narrador que se pode mais

101 PEDROSA, Inês, «José Saramago. “A Península Ibérica nunca esteve ligada à Europa”». Lisboa: Jornal de Letras, 10 de Novembro de 1986.

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facilmente confundir com o autor por se tratar de uma crónica de viagens, embora sem lhe querermos retirar a componente ficcional que inevitavelmente um texto destes tem):

Já teme não passar da soleira [da porta da Igreja de São Lourenço, em Almansil] quando sente (não pode explicar como, mas sentiu) que ali ninguém se escandalizará se avançar um pouco, se deslizar por um lado e outro, com licença e [...] olhar os famosos azulejos [...]. E assim fez102.

Numa entrevista a Manuel Gusmão, Saramago – aqui, sem dúvida, o autor – confessa ter algo semelhante a visões ou projecções mentais que se tornam visuais e conta um episódio ocorrido quando passava de carro pelo Terreiro do Paço, em Lisboa, quando vê não a praça contemporânea, mas uma de séculos atrás:

[...] durante se calhar um décimo de segundo, ou centésimo de segundo, aquilo que eu vi, aquilo que eu julguei ver não foi de facto o Terreiro do Paço como ele é hoje mas foi um Terreiro do Paço que eu tinha construído dentro da minha cabeça através das pinturas e gravuras da época e, por um momento, um relâmpago, eu projectei sobre a realidade uma imagem mental que não durou mais que eu sei lá, eu chego a perguntar-me se existiu. Agora que eu tenho a impressão de que isso aconteceu, isso tenho103.

Não se trata de um confronto entre a realidade e a ilusão ou o extraordinário, mas uma convergência entre o mundo real e o mundo sobrenatural num mesmo ponto, como aliás acontece no realismo mágico. Como diz o escritor nessa entrevista, «sou mais realista do que todos os romancistas que há. Mesmo que eu ponha nos meus livros coisas fantásticas»104. Porque não há uma contradição entre os dois universos, mas sim uma interligação, uma teia que o narrador tece ao longo do texto, numa negação de fronteiras, num trânsito corrente e fluente entre dois mundos, que, afinal, talvez não sejam dois, mas apenas um, com facetas diferentes. Declara Saramago, em 1984, que procura fomentar precisamente essa indefinição nos seus leitores, num derrubar de demarcações que permite o acesso a novos sentidos do texto:

Gostaria que o leitor circulasse entre o real e o imaginário sem se interrogar se aquele imaginário é imaginário mesmo, se o real é mesmo real, e até que ponto ambos são aquilo que de facto se pode dizer que são.

102 SARAMAGO, José, Viagem a Portugal, 10.ª ed. Lisboa: Caminho, 1995, p. 378. Sublinhados nossos. 103 GUSMÃO, Manuel, «Entrevista com José Saramago». Lisboa: Vértice, n.º 14, Maio de 1989. 104 IDEM, ibidem.

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Podemos sempre distinguir o real e o imaginário. Mas o que gostaria é de ter criado um estado de fusão entre eles de modo a que a passagem de um para o outro não fosse sensível para o leitor, ou o fosse tarde de mais – quando já não pode dar pela transição e se acha já num lado ou no outro, vindo de um ou outro lado, e sem se aperceber como é que entrou105.

Falando especificamente de Memorial do Convento e de O Ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago refere a introdução de «elementos de fantástico», sendo este contudo objecto de um «processo de realização, no sentido de o tornar real». Trata-se, então, de um processo integral, a soma de diferentes partes de um todo uno. Nesse sentido, compreendem-se as palavras do autor, quando declara que nas suas obras está presente «não o fantástico pelo fantástico, mas o fantástico enquanto elemento do próprio real e integrando-se nele», um modo «de tornar mais rico, mais denso, mais florestal, o real». Compreende-se assim, igualmente, quando Saramago afirma, em 1995, que não há nada em Ensaio sobre a Cegueira «que não possa ser encontrado no mundo real»106.

Esta percepção do mundo vem-lhe dos tempos da infância e do contacto com os avós – à semelhança do que acontece com Gabriel García Márquez –, como recorda no próprio discurso na Academia Sueca, aquando do recebimento do Prémio Nobel da Literatura, em 1998. Lembrou então as histórias que o avô contava durante a noite: «[...] lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava»107. Sentia um misto de surpresa e de conforto e é esse universo que acabaria por passar para a sua obra, «como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver».

105 VALE, Francisco, «José Saramago sobre O Ano da Morte de Ricardo Reis. “Neste livro nada é

verdade e nada é mentira”». Lisboa: Jornal de Letras, 30 de Outubro de 1984.

106 NUNES, Maria Leonor, «José Saramago. O escritor vidente». Lisboa: Jornal de Letras, 25 de Outubro

de 1995.

107 SARAMAGO, José, «De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz». Lisboa: Vértice,

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