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CAPÍTULO I: SUBJETIVIDADE E TRANSCENDÊNCIA NA ORIENTAÇÃO

1.4. Realismo, metafísica e ceticismo

Devemos agora retornar à tese subjacente à orientação natural que, no primeiro tópico deste capítulo, identifiquei à tese do realismo metafísico. De acordo com esta interpretação, o realismo metafísico concerne tanto a afirmações sobre existência, quanto a afirmações sobre a independência do mundo e dos objetos em relação a nossas

atividades mentais. Este primeiro tipo de afirmação coincide com a concepção de metafísica que Husserl define nos Prolegômenos como sendo a "pressuposição" da "existência de um mundo exterior, que se estende no espaço e no tempo" (HUSSERL, 2009, p. 40). E na Introdução às Investigações Lógicas (HUSSERL 1999, p.46 [26]), ele caracteriza as afirmações 'metafísicas' como sendo todas as asserções referentes à natureza e à existência de um mundo externo.

Deste ponto de vista, podemos identificar a afirmação da tese do realismo metafísico como sendo uma pressuposição metafísica no sentido de Husserl. Mas há ainda a afirmação sobre a independência do mundo exterior, que Husserl não associa à metafísica e parece não coincidir com suas análises sobre as teorias do conhecimento naturais, na medida em que afirmam uma relativização do conhecimento. Com efeito, ele atribui esta concepção à orientação natural como um todo, mesmo referente a estas teorias, como pode ser interpretado da passagem que se segue:

No clima cético necessariamente criado pela reflexão crítica da teoria do conhecimento [...] o que se torna questionável é a possibilidade do conhecimento, mais precisamente, a possibilidade do conhecimento de atingir uma objetividade que é, afinal, o que é em si. No fundo, o que está em questão é o que o conhecimento realiza, o sentido de suas afirmações de validade ou justificação, o sentido da distinção entre conhecimento válido e mera pretensão à validade; como é, por outro lado, o sentido da objetividade, que é e é o que é se ela é conhecida ou não, e ainda, enquanto objetividade, é objetividade de um conhecimento possível, cognoscível por princípio, mesmo se ela não é ou será de fato conhecida, em princípio perceptível, imaginável e determinável por predicados em juízos possíveis, etc. (ibid., p.45[25]).

De acordo com isso, Husserl afirma como envolvidas nas reflexões das teorias do conhecimento naturais, tanto o que, de fato, são problemas epistemológicos - a validade e justificação do conhecimento, quanto problemas metafísicos - o sentido de uma objetividade que é "em si" independente de todo conhecimento. Podemos dizer, portanto, que as afirmações metafísicas envolvidas na posição realista, como pressupostas nas investigações psicologista e biologista, determinam seus impasses diante do conhecimento. É em consequência disso que elas resultam em diversas formas de ceticismo com o posicionamento filosófico perante o conhecimento.

Podemos interpretar que isto seja assim, se concebemos que o realismo metafísico pode ser associado a certa relatividade conceitual. De acordo com tal concepção, o realismo deixaria em aberto a possibilidade de uma dúvida cética radical. Putnam (1981, p. 49), em sua definição de realismo metafísico, associa a estas teses mencionadas as

concepções que vinculam esta forma de realismo a uma teoria da correspondência da verdade, bem como a assunção de que há uma única descrição verdadeira da realidade. De acordo com este último aspecto, as teorias do conhecimento natural pouco se afiguram numa concepção metafísica da realidade.

Num artigo sobre Putnam, Sosa (1993, p. 621) desvincula, no entanto, estas duas últimas, associando a tese realista da independência da realidade a certa relatividade conceitual. Ele esclarece, neste sentido, que para o realista metafísico "a existência relativa a um esquema conceitual não é equivalente à existência em virtude desse esquema". O autor conclui, assim, que o realista não precisaria recusar o princípio metafísico da independência da realidade para afirmar uma relativização de nossos esquemas conceituais e, correspondentemente, de nosso conhecimento.

Uma consequência desta distinção, Sosa reconhece como sendo a própria afirmação da independência da realidade. Como esclarece Sacrini (2007, p. 9):

Uma vez que qualquer descrição do mundo é relativa conceitualmente, parece que nada é conhecido em sua natureza própria (isto é, como um evento ou coisa verdadeiramente da menta humana), mas somente como fenômenos filtrados por nossos esquemas conceituais. Parece, assim, que a defesa realista da independência do mundo implica um ceticismo epistemológico radical.

Em concordância com a identificação feita por Sacrini (2007) entre orientação natural e realismo metafísico no sentido de Sosa, interpreto que este argumento em favor da relatividade conceitual do realismo metafísico estaria em pleno acordo com as descrições da orientação natural que Husserl realiza na Ideia da Fenomenologia. Esta interpretação se justifica em razão não apenas do que já foi exposto, mas pela observação de que a menção ao princípio da independência da realidade aparece vinculada à abordagem husserliana sobre o ceticismo nesta obra.

Husserl, no entanto, caminha em outra direção para resolver o problema: primeiramente deve-se efetuar uma dissociação entre teoria ou crítica do conhecimento e metafísica. Ele argumenta que é a "conexão natural e histórica" entre teoria do conhecimento e metafísica que impede o sucesso das duas disciplinas (HUSSERL, 1999, p. 18 [22]).

Uma vez que a teoria do conhecimento investiga justamente a possibilidade do conhecimento objetivo ou transcendente, ela deve se isentar de quaisquer afirmações sobre realidades que existem e são em si independentes do conhecimento. Diante dos

argumentos céticos contra a possibilidade do conhecimento, Husserl compreende que a filosofia, sob nenhum aspecto, deve ser assimilada às ciências exatas ou a qualquer outra ciência natural, como pretendia a tradição filosófica da Modernidade. Com isso, justifica-se a necessidade de uma crítica do conhecimento fenomenológica, enquanto método de ruptura com a orientação natural.